17 de dezembro de 2007

Jilin, China, 02 de dezembro de 2002

Caros Lao Peng Li e Tài Tai Li.

O motivo desta carta é triste, portanto, serei breve, sem muitas considerações.

Venho informá-los que o pai de vocês faleceu, ontem à noite, devido a uma infecção generalizada, advinda de um corte no pé feito com a enxada, enquanto carpia a lavoura.

Friso, aqui, o quanto tentamos salvá-lo e, principalmente, o quanto ele foi valente, resistindo e lutando bravamente por quase um ano. Infelizmente, devido às sérias dificuldades que enfrentamos aqui não pudemos guarnecê-lo de todos os medicamentos e cuidados necessários.

Em seus últimos dias de vida ele pronunciava incessantemente o nome de sua mãe e, pouco antes de morrer, me fez um último pedido: “Procure meus filhos que estão longe e diga a eles que retornem... eu vivenciei e posso assegurar-lhe que a busca pela sobrevivência não vale a renúncia de uma vida inteira...”

Espero que estejam bem.

Meus sentimentos,

Aiko Koan

9 de dezembro de 2007

Velho amigo sem volta

A mulher que eu amo, foi um homem do mato quem me trouxe.

Não trouxe assim, numa apresentação, convite de felicidade; mas triste, de quem já viveu dor que não morre. Este homem do mato é um velho que, como a dor que carrega, teima com a morte, embora há muito tempo tenha decidido iniciar as despedidas entre os desconhecidos que acaba conhecendo – entre os quais, me incluo. Vê-se nele pouca educação, pouco manejo com as pessoas: criança não familiarizada com diplomacias de sociedade. Mesmo assim, não era inculto. Tenho a impressão que dedicou aos livros que leu seus melhores anos e aos poucos abandonou este hábito.

Atlântida, para ele, contou quando criamos certa intimidade, ninguém habitava; era terra deserta. Não encontrava um só por lá: filhos, mortos ou vivos; mulher, que tenha ou tivera; pai que valesse, ou mãe que pudesse ter a pretensão de contar com seu convite para fazer parte de sua saudade. Ninguém. Era um velho com uma única pretensão, satisfazer a morte. Para isso sim, também me contou, estava preparado. Há alguns anos, quase dez se ele não se engana, havia quitado um jazigo no cemitério municipal e carrega sempre no bolso instruções que indicam os procedimentos caso caia morto nalguma esquina. Este papel, nunca mostrou. Diz que serve apenas ao ocasional agente funerário para as suas formalidades cadavéricas, como descrevia. No entanto, dividiu comigo um trecho das instruções; justamente, o fim. Que, garantia, serve apenas para o “povo que é burro e tem mais medo de morto do que de vivo”.

Dizia como último suspiro dele, em registro vivo dele morto: Por fim, quis o destino que meus planos para a morte, registrados aqui neste documento que tens em mãos, ficassem sob sua responsabilidade. Não imagino que se sinta honrado com a tarefa. Provavelmente, nem mesmo nos conhecemos. Mas, para sua infelicidade, não há neste, ou em outro planeta, a quem possa transferir este compromisso reforçado a cada palavra que invade os seus olhos. Imagino que não seja fácil lidar com a confusão de sensações ao ler o pedido de um morto que planejou para ti que, neste exato momento, enquanto esfria minha carne, executasse minhas ambições para o descanso eterno. Tudo o que foi pedido acima pode ser realizado com certa facilidade, mesmo assim exige certa dose de atenção para que eu tenha minha justa recompensa pela vida que vive; pois, senão, sem paz, ou coisa melhor a fazer, estarei a atormentar você, que descumpriu meu desejo em vida, enquanto existir. Garanto o tormento eterno a quem não garantiu o descanso que mereço. Sem alternativas, aceite meu sincero agradecimento. De um ...

Não quis que eu lesse como se despediu.

Nós nos encontrávamos com certa freqüência. Mora afastado da cidade: ao lado de um asilo onde meu trabalho exigia que eu entregasse as refeições. Sou funcionário de uma empresa de alimentos. Sempre que saía pelos portões do asilo, às onze da manhã, encontrava com ele e sua cigarrilha de bermuda xadrez. A primeira vez que conversamos, foi por uma piada que ele fez:

– Se eu entrar aí saio assim, com essa cara de menino?

Confesso que pensei nos caixões que, com freqüência, costumam levar os recém libertos do Lar Vivência, mas correspondi à brincadeira.

– Só os que comem a comida feita pela Coma Bem com Saúde – uma piada sem graça, é verdade, mas de espiritualidade compatível ao salário que recebo.

Passamos a nos conhecer melhor e a nossas conversas foram se desenvolvendo. Talvez pela solidão – porque não parecia que ele costumava falar destes assuntos com muita freqüência – os assuntos de nossos encontros sempre giraram em torno de seus pessimismos com a vida; de como a vida mudou e da falta de sentido de tudo. Não me interessava muito o assunto dele, aquele momento passou a ser meu intervalo para o cigarro. Chegava, entregava as refeições do Lar e sentava ao lado dele, por uns quinze minutos, num gramado para fumar.

Se amar implica numa gama incontável de combinações, a mais estranha delas trouxe de volta quem há muito habitava minha Atlântida. Descobri quem amo num encontro com o homem do mato. Não, na verdade, acho que mais justo dizer que descobri o amor. Um velho sem coração, sem história, que nunca amou. Sem pais, durante a infância, recebeu educação, moradia e refeição num orfanato. Nada, além disso, lhe foi oferecido; nenhum amor, mas, principalmente, nenhum ódio. As crianças e jovens do orfanato eram criadas por freiras que pareciam marionetes de deus. Eram frias, mas nunca hostis. Quando ficou mais velho um pouco e estudou mais sobre os povos, deixou de recordá-las freiras e passou a imaginá-las na recordação como russas. Sem saudade.

Por outro lado, fui casado, por amor, um ano e meio da juventude. Dividíamos a cama mole e o pão quente com satisfação. Continuo jovem, mas o casamento acabou. O velho nunca soube disso; nunca questionou quem eu sou, ou fui, ou pretendo ser. Ele não soube que casei, nem do beijo que ela provou e provou que o amor só morre quando o apetite de nosso orgulho o engole. O velho seguia sua ladainha: e a vida, sugeria, era repetição, uma mesmice que vista sem emoção chega a soar ridícula; e por aí ia, como era o normal todos os dias.

Mas, neste dia, eu acho que havia sonhado com ela e pensava nela.

– Tudo acaba onde estamos. Este instante, agorinha mesmo, é a nossa morte! Talvez a única diferença que eu carregue é a de não aceitar como oportunidade de ressurreição os momentos que estão por vir.

Eu estava acordado? Estas frases do velho foram as únicas que ficaram de toda a conversa. Mesmo assim, não foi instantânea, absorvi enquanto ele absorvia a fumaça de sua cigarrilha numa pausa onde digeria com satisfação sua filosofia barata. Mas quando esta idéia fermentou-se com a saudade, e a felicidade reapareceu como sentimento a meu alcance, senti que estava em dívida comigo.

Pronto está o homem do mato, da vila, do bar, do mato. Eu não! Tentei pensar como seria, para ela, passar por todas as paixões que eu tive depois dela. Recusei o exercício contrário e saí, com pressa, sem me despedir.

8 de outubro de 2007

País do Sol

Mudei-me, aqui, para o País do Sol e as minhas pernas não cabem mais dentro das calças. Não sei se as pernas cresceram ou se foram as calças que diminuíram, mas parece não existir pernas que caibam em calça alguma no País do Sol. As calçadas estilhaçadas jogam as pessoas a caminhar nas ruas e as pessoas das ruas jogam os carros para as garagens. Esta gente que anda e pára para conversar na rua faz cheiro de feriado todo o dia no País do Sol. Cheiro de feriado e suor-salgado-bom-de-sol. Vim em busca de não sei o quê e acabei encontrando mais; muito mais.

Atmosfera boa e tem o cheiro da praia acompanhando as três primeiras ruas paralelas à orla do País do Sol. Quando cheguei, forasteiro de vida nômade em diversos países e continentes submersos, tive vontade e decidi ficar mais. Descobri, graças à generosidade dos cidadãos do País do Sol, que dividiam comigo a cada encontro um pouco da história deste país amarelo, que seu cidadão mais ilustre foi um homem que viveu com uma cabeça de papelão. A grande estátua da praça principal da capital do País do Sol passou a fazer sentido: na altura de minha cabeça, estavam os sapatos; conforme subia os olhos, calça, paletó, gravata e um saco de papelão com dois buracos no lugar dos olhos. Assim estava registrado em pedra sabão o grande homem deste povo. Hoje não existe mais ninguém para se admirar mais que os outros. Estão todos iguais e felizes e não precisam mais de paletós. Gosto de pensar que a estátua é uma recordação distante dos países sem sol que eu não precisarei mais visitar.

Fiz muitos amigos e uma amiga bonita que gosta de ver desenho em nuvens. Enquanto ando, com as mãos enfiadas nos bolsos da bermuda, e chuto os ramalhetes de plantas que ameaçam invadir a trilha da grande montanha do País do Sol, ela, linda, de saia azul com flores vermelhas, diz: tem um touro, com chifre e tudo, ali; uma tartaruga-marinha velha naquela outra, ou não, com aquele rabo comprido parece mais uma arraia; tá vendo? Ela deve perceber, só vejo manchas brancas boiando sobre nós.

– Vê? O vento está desfazendo o búfalo ali.

– Não era um touro?

– Touros viram búfalos num instante nas nuvens. – brinca comigo.

O vento, quanto estava a meu favor, não em sentido, em intenção, trazia o cheiro desta moça bonita. Sempre com um quê de suor e axila e cabelo e coxas. Às vezes, o vento amigo parecia visitar sua saia antes. Em geral, era quieto e calmo em sua companhia, mas, algumas vezes, deixava meu coração acelerar. No País do Sol chove de vez em quando. Quando chove, meus amigos não aparecem para conversar na praça e, num dia desses de dilúvio, minha amiga bonita pareceu bonita pra mais alguém. E, por sua vez, este alguém atendia a prece na qual minha amiga bonita pedia alguém que fosse bonito para ela também. Perdi o interesse pelos amigos e sentia cada vez mais saudade da lua: branca e silenciosa em noite escura.

Houve um tempo em que passava tardes inteiras sentado, ao lado da minha amiga bonita, numa rocha que ficava no ventre da grande montanha apontando para o mar. Pela primeira vez, fui até lá sozinho. Brinquei com as nuvens e, também pela primeira, vi minha primeira imagem branca: um jacaré. Passeei os olhos para uma mancha ao lado: formou-se, em três dimensões, um canguru com o filhote na bolsa do seu ventre. E as imagens foram surgindo uma a uma diante dos meus olhos, como se enxergasse com os olhos da amiga que perdi.

Pela primeira vez, anoiteceu no País do Sol e eu adormeci.

27 de agosto de 2007

Antônio não quer imaginar



Fotos: Calebe Simões





De olhos fechados, todas as imagens esperam chegar ao homem pela sua imaginação. Assim como o homem, de olhos fechados, espera que as imagens e sensações, antes registradas, transitem por suas correntes de nervos tensos e se formem bem ali, dentro dele. Antônio, não. Fecha os olhos e tem o som do vento que entra em seus ouvidos; com as mãos, tem a terra úmida, cachaça úmida, mulher úmida; respira e tem do mato, quando está no mato, da cachaça, quando está no bar, e da mulher, quando está na cama, o cheiro. Antônio, com olhos fechados, não pensa. Os cheiros e os ventos agradam, ele não imagina porquê.




* * *




O contraste, como é praxe, existe. Embora haja na cabeça de Antônio o monótono, porém confortante e, acima de tudo, tranqüilo marasmo de pensamentos, há em seu trabalho a exigência brutal de seus músculos. Mas ele também não sabe disso. Desprovido de qualquer questionamento, acorda, porque deve acordar, bebe o café e engole o pão, porque é assim que tem que ser, e parte para o canavial, porque é o seu dever. Antônio deve à vida e paga durante 12 horas todos os dias. A mulher de Antônio deve a Antônio e paga varrendo seu chão, preparando sua comida, lavando suas roupas e deitando ao seu lado nas noites que o esgotamento dele se esquece.





* * *




A cana era cortada, o chão era varrido e uma cova era aberta. A mulher de Antônio pensava e varria. Por anos, pensou no sacrifício do marido para colocar um punhado de comida para os dois; outros tantos anos, pensou no filho que não puderam ter; e, por fim, pensou que não devia nada para a vida. Entregou-se à turbulência que a descoberta trouxe. O dono da quitanda foi simpático atrás da balança vermelha com prato cobre e a mulher não foi mais de Antônio. No dominó sob a única luz amarela da varanda de madeira da vendinha da vila, a notícia se espalhou. Não fosse pela mãe de Antônio, que sofria, sob o cuidado de vizinhos, seus últimos dias, o marido seria o último saber: o que não quer dizer que demorou muito a saber.


* * *



Antônio deitou a mulher e a cobriu com terra. No dia seguinte, a terra do chão de sua casa roçou a sola dos sapatos de Antônio, que foi trabalhar sem café. Como pode perceber que imagina quem nunca imaginou? A cada piscar dos olhos de Antônio – que parecia dever ao dono imagens que não viu – saltava sua mulher nua com as mãos acariciando o peito e os pêlos do quitandeiro; calava a visão por mais um instante, ela jazia morta; novo beijo entre as pálpebras, lhe vinha o sorriso quinze anos atrás durante a festa junina.



Para o melhor manuseio da cana-de-açúcar do canavial ao depósito, o bóia-fria deve entregá-la inteira.



* * *
Às costas de Antônio, uma vida dedicada em terra fértil onde nunca existiu por que. Sua cabeça tirou a sua força e a cana triturada custou o sustento de quem não tem quem sustentar. “E agora, fazer o que?”.


16 de agosto de 2007

Confessionário de asfalto

Não dói. “Morrer não dói”, sempre me disseram. Quando ouvi o estampido e senti a carne de minhas costas sendo atravessada e minha costela estilhaçando, meu coração ameaçou acelerar seu exercício, como num susto; apenas ameaçou. Acho, mesmo, que sabia que logo não teria mais que trabalhar. Por isso, tratou de cadenciar suas batidas e irrigar pelos caminhos de minhas artérias grossas, em meu sangue grosso, pela última vez cada ramalhete de veias com um sentimento de paz.

Eu atravessava a rua para me apoiar na banca de jornais, onde costumava encontrar a minha criançada. Meu trabalho era encontrar crianças que foram abandonadas, ou que abandonaram suas famílias, e gerenciá-las. Por um pouco de cola, às vezes maconha, meninos e meninas espalhavam-se entre os carros, de janela em janela, e recolhiam – sempre com o consentimento do condutor – moedas de centavos. Às dez horas da noite, iam todos para a banca de jornais fechada e esvaziavam os bolsos – quando, em sua roupa, bolso cabia –, ou sacolas, nesta caixa de sapato que trago sob meu corpo, no asfalto.

Muita gente não gosta de mim. Sabia que alguém reservaria uma bala para mim desde que meus meninos apareceram na televisão explicando meu trabalho. A impressão que eu tenho é que os justiceiros estão pelos pequenos bares, sentados em círculo, batendo peças de dominó, com as televisões sintonizadas nos telejornais sempre no último volume. Há uma denúncia – sem contar as de Brasília – não demora aparecer um corpo; chegou a minha vez.

Agora, espero pelo o que está por vir e seja o que deus quiser. Nunca achei certa a vida que levei, mas ainda me recordo como entrei nela. Vivia de trabalhos temporários, bicos e, vez ou outra, pequenos assaltos. Quando menino, roubava latas de cola de meu pai, que tinha uma sapataria na garagem de casa, para cheirar com meus amigos, mas nunca me viciei. Um dia, sem dinheiro e com o estômago nas costas, parei em frente a um trailer de cachorro-quente, e um garoto, também faminto, me pediu algum trocado para um lanche. Não tinha pra mim, vai dizer pra ele. Vi a cena do menino esfomeado, que pedia dinheiro para comer, se repetir em vão de mesa em mesa e – por deus que esta é a verdade –, com um sentimento de piedade honesto, o chamei. Eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio.

Estávamos perto de casa. Desde a morte de meu pai, nunca mais havia entrado na nossa garagem e sabia que lá encontraria algum pote bem preservado de cola. Nós dois cheiramos e dormimos no chão da antiga sapataria. Quando acordei, o menino não estava mais lá. Voltou, dois dias depois, com outro amiguinho.

Pele esfriando no asfalto: confesso uma vida que desdenhou e se apropriou de tantas outras. Como ficarão meus meninos? Reconheci os erros que cometi, identifiquei como entrei nesta vida e não consegui me perdoar.

31 de julho de 2007

O elefante que se apaixonou por um aspirador de pó (fim)

Por muito tempo, meses, Nagu intercalou momentos de pé sem andar, com momentos deitado sem dormir. Embaixo de sua árvore favorita, preces e promessas impossíveis eram rogadas, em silêncio, sem parar. No entanto, se engana quem pensa que Nagu pedia a seu deus, Ganesha, felicidade ao lado de um aspirador de pó. Esta união, provavelmente, iria sugar toda a sua energia, principalmente por aspectos sociais. Qual elefante, em sã consciência, permitiria como membro da manada um aspirador de pó. E tinham outros ‘poréns’: diferenças culturais entre os imponentes elefantes e os submissos, por conseqüência, pouco confiáveis, aspiradores de pó. Estava apaixonado, mas ainda não tinha perdido totalmente seu bom-senso; por isso, demorou tanto a se render.

Antes, teve que certa eloqüência sentimental para convencer sua mente a liberar seu corpo a buscar sua felicidade: como poderiam – alma e carne e tromba e dentes de marfim – viver em paz com a inexplicável paixão dentro do peito e a memória com irritante competência a martelar o coração? Cada vez que se perguntava isso, sentia sua volta à grande casa dos fazendeiros mais próxima. “O que importa, sobre todas as coisas, é a minha plena felicidade e paz. Não serei feliz sem aquela estridente criaturinha, que alegra meus sentidos”. Despertado pela envolvente paixão, deixou que seu coração persuadisse sua mente e, sem saber que ao obedecer aquele impulso traia a si mesmo, foi para a casa-sede da gigantesca fazenda.

Fez todo o trajeto sem enxergar ao menos o chão. Noite sem lua; segui o faro de sua tromba. Quando chegou à casa, nem um som, além do produzido pela vegetação que apenas os elefantes podem escutar, escutava. Ainda estava escuro, sem sinais de que clarearia o céu novamente. Nagu, tocando apenas as pontas das patas, desviando de quaisquer folhas-secas que pudessem gritar o pisão e acordar a casa, contornou a sede metendo os olhos em cada fresta de vidraça. Não demorou muito, lá estava... As orelhas de Nagu se ergueram e, enquanto a vidraça da lavanderia se esforça para refletir a face de Nagu, em seus olhos era nítida a imagem do recipiente plástico com mangueira e cilindro cinza-pele-de-elefante.

A janela estava apenas encostada, os rolamentos estavam bem lubrificados com graxa e não fizeram barulho quando Nagu correu as portinholas. Com sua tromba, alcançou o aspirador de pó e partiram juntos para a floresta – mas, desta vez, Nagu foi ao sentido contrário de sua manada. Durante a caminhada, nem Nagu, nem aspirador, emitiram som algum. Dormiram próximos ao rio. Quando acordou, para não despertar o ilustre seqüestrado, tomou muito cuidado para não fazer barulho em seu banho de rio e estava distraído pensando em quê o futuro o reservava quando ouviu mais novamente o som estridente do aspirador. Num pulo, que esvazio o rio, o elefante correu à margem de onde vinha o som.

– Onde estamos?

Nagu não conseguiu deixar de sentir certo desconforto. Não eram estas as primeiras palavras que queria ouvir.

– Morro se cair na água. Pra isso que me trouxe aqui, quer me matar?

– Não quero te matar – começou Nagu –, te trouxe aqui porque me apaixonei por você.

– Ah, você por acaso não é o mesmo elefante que apareceu há umas semanas lá em casa?

– Isso foi há meses...

– Quase que mata a mim e a minha patroa com o barulho que fez. Minha garantia já acabou, se quebro, vou para a lata do lixo, sabia? Sem enterro, lágrimas, recordações, nada. Sabe quais foram as últimas palavras que meu irmão, um aspirador dois anos mais velho que eu, ouviu? “Maldita lata velha imprestável”! Pra você ver, nem de lata nós somos feitos.

As coisas não iam bem. Nada do sentimento que Nagu trazia pelo aspirador parecia ser recíproco. Também, pudera, desde quando aspirador se comove com juras e cenas de amor? O aspirador ligou e desembestou a falar, assim. “Aspirador gosta de aspirar”, veio a inspiração para Nagu. Ele pensou o que nenhum outro elefante apaixonado jamais pensou: para alguns o amor não existe. Afinal, comum é acreditar que, o que o indivíduo sente, motiva e norteia a vida de toda a comunidade. Nagu se aproximou do aspirador e, como quem oferece uma oportunidade, falou em tom sério:

– O que te proponho é uma vida que não acabará num latão de lixo. Se tua utilidade, para os homens, termina quando sua mangueira não suga mais o pó e a sujeira, para mim, que tenho tromba como mangueira, pouco importa esta sua utilidade. Vivendo ao meu lado, a principal característica que teve até hoje não valerá mais nada. Por outro lado, seu caráter efêmero de utilitário doméstico desaparece também. Percebe o que estou te propondo? ... Vida eterna!... Sem sua desgastante utilização, será eterno enquanto eu durar.

– Mas que razão tem viver um aspirador desligado?

– Não proponho que seja um aspirador totalmente desligado. Proponho a você que me utilize como seu aspirador. Dê ordens e eu as cumprirei. Diga: “sugue aqui; aspire ali; não deixe sujeira acumular no canto”, eu terei prazer em servir.
...

• • •

E foi assim que o elefante que se apaixonou por um aspirador de pó encontrou para viver o resto de sua vida ao lado de seu amor. Uma sucessão de pequenos enganos e enganações uniu dois personagens tão diferentes entre si. Mas para que esta história desse certo, elefante, que já fora imponente, precisou se render à insensibilidade eletrônica de aspirar e engolir seco toda a sujeira e pó de paixões mal resolvidas.
Viveram juntos para sempre.

6 de julho de 2007

O elefante que se apaixonou por um aspirador de pó

Não podemos dizer que estivesse na vida adulta há muito tempo, mas não era, absolutamente, jovem. Fazia algum tempo que caminhava sem a necessidade das orientações dos pais e, embora tivesse em seu pai o símbolo máximo de intelectualidade – sempre se lembrava dele por sua memória acima da média de toda a manada –, se sentia muito à vontade para decidir quais as melhores rotas e acomodações; escolher o melhor verde para se alimentar; saber qual parte do rio oferecia a água mais refrescante. Carregava uma experiência razoável para uma boa vida e um futuro tranqüilo; mesmo assim, não era desgarrado. Nem se quisesse poderia ser: como todos os seus companheiros de trombas, vivia na propriedade de um grande pecuarista numa gigantesca fazenda da África do Sul.

Quando analisamos um acontecimento por completo – com informações do princípio, meio e, principalmente, fim –, é praxe nos apropriarmos dos resultados de cada etapa para julgar qualquer suspiro de quem realizou a ação anterior. Nagu era um elefante como outro qualquer de sua idade. Carregava ainda nos olhos a obstinação por realizações que pudessem surpreender seus amigos e parentes, embora começasse a perder aquela inquietude por resultados imediatos. Era simples, sério, calmo e, acima de tudo, discreto. Um modelo como tantos outros ao seu redor. Ninguém que o conheceu, ou mesmo que tenha dividido intimamente sua companhia, seria honesto se viesse hoje apontar qualquer característica de Nagu como sinal para a desordem para o que seu coração de elefante aprontou.

Talvez movido por uma brisa de tédio – monotonia comum para bicho que vive resguardado pela segurança de território demarcado e vigiado –, resolveu que sua caminhada naquele fim de madrugada, começo de manhã, o levaria ao pomar próximo a sede da fazenda. Não era comum aquele passeio; tanto no que diz respeito ao horário, quanto à área a ser visitada. De fato, quando os donos da propriedade queriam ver seus elefantes, precisavam chamar um capataz com jipe e viajar, muitas vezes, por até meia-hora para encontrá-los. E, se fizessem questão que eles estivessem acordados (bem-dispostos), preferiam o fim de tarde.

Pretendia beliscar algumas jabuticabas do pomar, mas não era isso que motivava seu passeio. Para Nagu, as frutas que por lá brotavam não faziam sua retumbante tromba saracotear. Passeava por passear, já que os olhos teimaram em deixá-lo acordado mais cedo. Só.
Demorou muito para chegar. O céu clareou ao compasso lento dos passos pesados de Nagu e chegou ao azul definitivo – chamo de definitivo para intensificar a claridade da manhã; sem ser apocalíptico ou desrespeitoso às matizes azuis do céu – assim que ele parou para descansar, em frente a casa. Ouvia o barulho da vassoura e, de onde estava, via que, pelo corredor da esquerda, uma porta da casa espirrava o pó.

“Sede”. Havia se esquecido das sérias implicações que se afastar do rio oferecia. Isto era elementar para a sua sobrevivência. De repente, um choque! Pensou, “havia se esquecido das implicações que se afastar do rio causava”! Pensou que havia esquecido! Por ter a memória como principal fonte de orgulho, os elefantes esquecidos – e isso é raríssimo. Uns lembram mais que outros, mas poucos se esquecem – sentem a pior das angústias. Com as orelhas e a tromba – arqueada entre suas patas dianteiras – arrastando no chão, Nagu, cabisbaixo, caminhou até um enorme pneu de trator que estava apoiado num cercado e guardava um pouco de água da chuva.
Tomado por grande humilhação, mal conseguia forças para sugar o líquido. Distraído com a água que o pneu reteve da chuva, escutou um som inédito: chiado, com acelerações intercaladas, às vezes com o som abafado, às vezes mais estridente; resultado da luta entre gás-poeira e sólido-tapete. Nagu esqueceu, e desta vez fez bem, a tristeza para valer a curiosidade. Olhava através da circunferência de seu reservatório de roda gasta de trator para a casa, que havia se tornado, amplificadora daquele som.

Conforme o tempo passava, o som, que trazia a característica rara de ser tão monótono enquanto é imprevisível, ia aumentando. A porta principal da casa se abriu e surgiu uma jovem negra enrolada em panos, vermelho e branco, e carregava por uma alça um pequeno instrumento de onde vinha o som. A euforia causou em Nagu seu terceiro esquecimento da manhã, desta vez com conseqüências. Entretido, como estava, esqueceu sua tromba dentro da roda do trator e, resultado dos segundos sem respirar pela apreensão em conhecer o irreconhecível, quis sugar com força todo ar ao seu redor, mas sua tromba estava sob a água suja que o pneu guardou da chuva.

– (aumente o volume) *!!*!!!!*!!!!!*!!!!!!*!!!!!!!!*!!!!!!!!!!*!!!!. – Nagu acabava de lançar o (sem medo de errar) seu mais forte bramido.

O coração da jovem que aspirava a casa se absorveu por um sobressalto e o susto que a atirou ao chão; com o tranco causado pelo salto da moça, fugiu da tomada o cabo elétrico do aspirador que silenciou; os pássaros, que piavam em seus galhos, também decidiram pelo silêncio. Nagu tratou de se esconder numa árvore próxima que o tronco, de tão fino, mal escondia sua tromba. Alguns segundos passaram como que se o barulho do espirro do elefante tivesse feito o tempo parar por ali: nem sinal da governanta negra, pó em paz no carpete e nenhum pio os pássaros ousavam. De onde estava, olhava o aspirador deitado em silêncio no chão com sua mangueira apontada para ele. Ficou por volta de um minuto registrando cada detalhe do aspirador de pó. Até o capataz chegar de jipe com a espingarda carregada nas costas.



• • •

Um único disparo bastaria, mas o capataz deu pelo menos três tiros para cima enquanto Nagu adiantava seus passos de volta à manada. Completamente compenetrado em si, após sua longa caminhada, passou reto (sem ao menos ouvi-la) por sua mãe que queria saber por onde ele tinha andado e entregou seu corpo que fervia pela viagem a um banho de rio.

Demorou um pouco para se refazer. Conversou com a mãe sobre a longa viagem e quase fez de seu pai um elefante-branco ao perguntar se sabia o que era aquele objeto que o capataz trazia nas costas e que fazia um barulho de pequeno trovão. Mesmo estando em companhia mais que confiável e com o pensamento totalmente refém por aquele pequeno pedaço cúbico de plástico, mangueira, botões, fio e alça, em nenhum momento passou por sua cabeça falar sobre a outra máquina barulhenta que havia conhecido no mesmo dia.

...continua

8 de junho de 2007

Arte e apreço

No tempo em que fui repórter, acompanhei muitas histórias. Passei, e pastei, por quase todas as editorias: coloquei no jornal a história de muitos pilantras de colarinho branco; viajei junto com a delegação da seleção brasileira; cobri show de banda adolescente, festa italiana, marroquina e até aniversário de filha de celebridade.

Sabe como é em redação; de vez em quando, um jornalista fica emputecido e manda às favas o chefe de reportagem ou o editor: quem estiver mais a mão. De dentro do escritório, todo de vidro, do editor, a repórter de Cultura soltou um sonoro – para o quarteirão todo – “Vá à merda e enfie este jornal onde bem entender!”, bateu a porta e saiu. Os telefones da redação não se alteraram, continuaram a tocar; ninguém saiu para consolar a repórter.

Eu estava terminando o roteiro cultural do fim-de-semana. Com três processos que carregava do tempo de Política, me empurraram esta função até a poeira baixar. O editor abriu a porta do escritório e, com a delicadeza de um elefante numa loja de cristais, “Marcelo, deixa esta merda de roteiro para um foca qualquer e vem aqui”. Com um repórter a menos em Cultura, meus meses de ostracismo roteirizando cinema e teatro chegaram ao fim e uma matéria decente caiu no meu colo.

Um grã-fino causou o maior escarcéu quando descobriu que A donna d’Marselha – quadro do artista plástico Ângelo Quântico –, comprado num leilão, era falso. Quando desci da redação, que ficava no quinto andar de um prédio no centro, o motorista do jornal me aguardava com o motor ligado. Em mãos, carregava apenas um bloco de notas com o endereço da casa do artista. Fui sem saber o que esperar. Deve ter sido mais um desses casos onde algum amigo oculto cochicha nos ouvidos do editor, porque, quando cheguei a casa, vi a seguinte cena: o grã-fino com cara de pastel, o artista com um sorriso monalisa e o casal de leiloeiros, que, enquanto a mulher se desdobrava para massagear o ego do artista e garantir o ressarcimento de seu cliente, o homem franzia a testa e segurava um rapaz pelo braço; todos em volta de uma mesa retangular na grande varanda que fazia fronteira com a sala e o jardim. Conseguia ver e escutar tudo do portão baixo que dava pra rua. Não havia outros jornalistas.

Talvez pela confusão toda, não tive problema para entrar e fazer parte do grupo. Ninguém sabia ainda o paradeiro do quadro original, mas isso não era grande preocupação: o rapaz que o leiloeiro segurava pelo seu braço era seu filho e autor da falsificação. Provavelmente o original estivesse em seu quarto, queria apenas atenção com uma falsificação de bom nível. Quando cheguei, já estavam decididos a não envolver a polícia no caso – o que manteve a matéria na editoria de Cultura. O rapaz, de 20 anos, contou que, com a ajuda de um amigo, trocou os quadros após as três batidas do martelo, enquanto o quadro esperava pra ser encaixotado. Era apenas uma molecagem de garotos praticamente resolvida. No entanto, para o texto que ofereci aos leitores, meu caderno só anotou a emoção com que o artista se debruçou sobre a cópia. Enquanto o casal de dedicava em tecer mil elogios a uma obra “que jamais poderia ser copiada”, ele implicava com os leiloeiros; apreciava mais os falsários. Via os gananciosos leiloeiros a falar com os bolsos e tinha a certeza que, não fosse o trabalho do falsificador, que estudou cada pincelada na tela, ninguém teria observado tão bem sua arte.

30 de maio de 2007

Pântano

Assim como nos contos de bruxas ou assombrações, insinuar as diferenças dos ambientes transportava-nos a certo torpor. Aguardávamos os detalhes imaginários e o surgimento de algo sobrenatural que transformaria para sempre a nossa vida; ou um algoz, estático, que nos surpreenderia no reflexo do espelho do quarto de banho. Fugíamos da angustiante presença destes seres desconhecidos, moradores dos pântanos; dos pântanos e vales que a escada da casa da avó nos levava. Podíamos encontrá-los, no breu da noite, com suas faces mortas, através das vidraças da grande sala de jantar. Vidraças que, quando revelavam o reflexo de nossos rostos, aproveitavam para confundir nossas faces com a dos fantasmas. E nos tornávamos imagem que se atravessa servindo de espírito às almas penadas no espelho transparente. De certa forma, para os olhos de quem buscava através de seu reflexo o pântano e seus moradores, a existência de seus fantasmas se confundiam com a de nossas almas, ambas levemente encobertas pelo rosto de quem buscava o pântano de dentro da sala e encontrava o próprio rosto no vidro gelado. Não podíamos vê-los, não notávamos o medo estampado em nossa cara, eles sim. Eram espíritos querendo roubar a paz e pleitear a eternidade de nossas almas: para o bem ou para mal?

No reflexo da vidraça, meu olhar arriscava confrontar quem quer que flutuasse pela escadaria que levava ao pântano, enquanto evitava o olhar morto da moça pálida de cabelos castanhos, que começavam lisos e ralos em sua cabeça e acabavam em ondulações úmidas quase na cintura. Com grossas veias verdes no pescoço, dois passos atrás de mim, também no reflexo; me olhando pelo reflexo.

Alguns ramos da dama-da-noite foram empurrados por galhos maiores para dentro da copa e da lavanderia pelas frestas das vidraças. Seu cheiro nos tornava reféns durante a primavera; suas flores, caídas no outono, deixavam as crianças brincarem de bermuda na neve até o escurecer. Porque, desde que me conheço por gente, quando começava a anoitecer, todos da família se reuniam, faziam um pequeno lanche e, dentro do quarto sem janelas, se lavavam com um pano úmido.

Desde meu avô, quem construiu este quarto sem janela, fui o primeiro a sair durante a madrugada e perambular pelas outras partes da casa. Não sei dizer a idade que tinha, de repente senti que realizava um ritual sem pé nem cabeça. Todo dia, ou melhor, toda noite levava um grande copo de água, às vezes uma jarra, e algum livro e me trancava na câmara. Lá, a grossura das paredes e porta eram obstáculos intransponíveis a qualquer ruído do mundo externo. Era ensurdecedor; no entanto, sozinho dentro da câmara, após alguns segundos no silêncio absoluto e autocontrole, pode-se escutar o ar inflando nosso peito e alvéolos; depois gazes passeando pelas nossas vísceras; depois o coração; e após alguns minutos totalmente parado, toda a orquestra do corpo apresentava sua sinfonia.

E a noite passava e sempre passou. Quando saíamos, encontrávamos todos os móveis como havíamos deixado. Mas agora uma linda luz branca invadia a casa por todas suas frestas e vidraças refletindo com tanta força no assoalho que ninguém, ao acordar, conseguia andar cabisbaixo pela casa por causa do reflexo que vinha do chão. Era rotina naquelas manhãs de férias a guerra nos jardins verdes escaldantes: bem-te-vis e pardais reclamavam as agressões dos marimbondos nas jabuticabeiras, as esquivas de insetos e o sol a arder suas vistas. Pela manhã ainda, o pântano encerrava o terreno da propriedade na figura de um belo lago. Via-se durante todo o dia alguns botes com pescadores amistosos, namorados com seus poemas escondidos, estudantes com seus livros e silêncio. De vez enquanto, autoridades apareciam por lá chamando a atenção e curiosidade de todos ao redor do lago: sempre que a cidade perdia um de seus carros, objetos grandes, ou até mesmo alguém, mergulhadores se atiravam revirando as águas e entocando os peixes para desespero dos amantes da paz.

* * *

Foi por causa de um livro – onde a fluência das palavras do escritor suplantou o número de páginas que sua história exigiu e a leitura acabou antes do previsto – que fui estimulado a sair do quarto. Ainda estava com os argumentos do autor, que havia apresentado em sua prosa a enfadonha metade boa e a terrível metade má de um visconde cortado em duas partes, quando a insônia insinuou mais uma noite longa.

Mesmo com o anúncio da jornada solitária da madrugada, a princípio, nem mesmo cogitei a possibilidade de sair do quarto sem janelas. Nos breves intervalos das inúmeras sensações despertadas por lembranças, conclusões precipitadas, projeções para o futuro, metades de visconde e música das engrenagens do meu corpo, lamentava ter levado apenas um livro. Dei conta do absurdo que era me manter enclausurado quando me lembrei criança naquela casa. Lembrei do medo das histórias que meu avô gostava de contar enquanto a gente se vestia para ir à igreja; do medo dos fantasmas da família que, supostamente, protegiam o tesouro escondido no porão; e do medo dos cantos e das melodias religiosas a Nossa Senhora quase inaudíveis que eu escutava quando encostava o ouvido nas paredes ásperas do casarão. Todas, sensações incabíveis à pessoa que me tornei: entre outras coisas, um comunista-ateu convicto.

Levantei do colchão duro de estrado num solavanco só. Não tinha medo. Era um adulto que resolveu sair do quarto, sem janelas, para buscar um livro na biblioteca e um copo d’água na cozinha. Lembrava que tinha entrado calçando chinelos no quarto, mas agora não os encontrava. Pé ante pé, pelo chão de assoalho sem janelas, cheguei à porta. A chave resistiu a girar, forcei um pouco e a fechadura destravou. Mão na maçaneta. Fazia – se é que silêncio se faz – um silêncio paradisíaco; quando a primeira fresta da porta abriu, um sopro ártico invadiu e sussurrou entre os botões do pijama algo que fez meu coração soluçar; passeou como peão pelos pêlos do meu peito, barba, espinha, lombo; desatou os cordões da barriga até se concentrar, como gaze úmida, nos calcanhares dos pés.

A casa estava outra vez habitada. Sob a influência de todo o ritual que estava sendo quebrado a cada passo que dava, meus pés gelados, com as solas molhadas de suor, grudavam no chão de madeira. A madeira reclamava meu peso, de vez em quando, com leves gemidos que preenchiam toda casa. Não tinha medo. Enquanto atravessava de um ambiente para outro, era a criança que nunca desafiou o avô por medo. Agora eu já não tinha medo, já não tinha avô.

No meio do caminho, antes de virar à esquerda, tocar os interruptores de luz e chegar à estante de livros, estava a enorme porta de vidro. Em noite como aquela, sem lua, não enxergava o lago. Era meu rosto refletido outra vez no espelho transparente e o cheiro mais puro que a dama-da-noite já havia oferecido. A única luz vinha do final do corredor, da porta entreaberta do quarto sem janelas, e iluminava a metade direita do meu rosto. Sabia que atrás da imagem que se formava na porta de vidro os degraus levavam ao jardim, onde meus fantasmas da infância habitavam; mas, olhando através do meu reflexo, aqueles degraus me levaram para outro pântano. Hipnotizado, todos os fantasmas que visitavam aquela vidraça quando eu era pequeno se uniram e formaram, sobre o meu rosto, o reflexo que parecia o do meu avô. O reflexo era meu e eu estava velho.

Pelo medo das assombrações que moravam no pântano da minha infância me prendi no quarto sem janela. Por quanto tempo?

15 de maio de 2007

Teresa, a mãe da puta


Lá vai Teresa trabalhar.
Pobre, negra da favela, gorda. Gorda, com metade do peso seria saudável. A vida complicada ainda não conseguiu tirar dela alguma esperança que não se sabe do que. Para muitos, em seu lugar, sorte seria morrer na próxima esquina. Ela rezava: por sua saúde e de seu filho menino. Quando lembrava – ou esquecia tudo que ele já cometeu –, rezava pelo marido, padrasto de seu filho, que roubava o pouco de dignidade que a paz na família – se existisse – poderia oferecer.
Sabia da vida de seu filho e das sainhas que ele gostava de usar. Mas o que acontecia depois que ele saía do barraco, Teresa ouviu falar numa dessas reportagens especiais de programas marrons que tornam celebres as ruínas sociais. O apresentador, com voz de penumbra, levou até os olhos, ouvidos e coração da mãe Teresa o espetáculo de crianças e adolescentes que viviam à beira da estrada submetendo suas mãos, bocas e bundas em postos das auto-estradas. Pobre, negro da favela, magro. Magro, de pedra e agulha, quinze de idade, era pele, osso e cabelo alisado com pontas que pinicavam a clavícula.
Lá vai Teresa trabalhar.
Carrega, em seu enorme corpo redondo, vergões nas costas e nos braços das frustrações de seu marido. Carrega ainda a saudade do filho que, violentado pelo padrasto, há quinze dias não aparece em casa. Enquanto caminha é a atração passageira nos becos e vielas. As bocas banguelas e os olhares contentes, dissimulados, dizem em sussurros altos:
– Lá vai Teresa, a mãe da putinha.
O serviço é a terapia. Pia com esponja, sabão, água, porcelanas, talheres e copos. Lava, seca e guarda. De certa forma, uma analogia com o que quer para a sua vida. Antes disso, chega às sete da manhã na casa que ainda dorme. Prepara café, busca jornal, o patrão sai correndo, esquenta o café para a patroa que só acorda às nove, tira a mesa, coloca as roupas no tanque, limpa o quintal e prepara o almoço. Enquanto limpa as sobras do almoço, está no momento mais distante de seus problemas. Saiu de casa, da comunidade, do marido, da espera do filho travesti há quase seis horas e está a mais de cinco de voltar para lá. Divide sua atenção entre a espera do caminhão de gás, o cachorro que late sem parar e o ventre molhado na pia. O cachorro latia à chegada do filho de seus patrões – dois anos mais velho que o seu – que não consegue almoçar com os pais por causa do curso para o vestibular.
– Olá, Teresa, sobrou alguma coisa ou só vou almoçar o jantar? – e a Teresa sorri a piada simpática.
O prato costuma estar separado quando ele chega. Às vezes conversam um pouco sobre alguma notícia que una seus mundos: a morte de algum famoso, a chuva que vem, o sol que não sai, a falta de água na rua.
Hoje, Teresa trouxe uma carta e, analfabeta, perguntou se ele poderia ler.

* * *

– “Mãe, espero que as coisas estejam melhores em casa. Desculpe escrever. Sei de sua dificuldade com as palavras escritas, mas não encontrei outro jeito de entrar em contato. Agradeço quem lê para você, como agradeço a Roberta, que escreve e organiza minhas palavras nesta carta. Peço desculpas também por expô-los a um problema que não lhes diz respeito”.
O garoto parou, olhou para a empregada que sorria e continuou.
– “Moro com ela agora. Pelo menos por um tempo. Não tenho tido problemas com roupa, comida ou segurança para viver. Tenho medo que aquele homem encontre esta carta antes de você e me persiga, por isso não conto onde moramos. Quero que você saiba que está tudo bom.
Não sei se nos veremos outra vez; não sei como terei notícias suas; não posso voltar para casa. Sei que não fui um bom filho, mas durante toda minha vida você foi a única pessoa que realmente amei e que realmente me amou. Fiz, com a minha demência, com a minha doença, com o meu corpo e comportamento, com as minhas roupas, cabelo e vício, do meu caminhar a sua caminhada mais longa e triste. Coloquei sua reputação de mulher simples e forte, pobre e honesta, na boca daqueles miseráveis que não sabem do amor. Fiz seu marido desrespeitar você como mulher que não serve para parir. Lamento a falta de forças para tirar você daquele cafajeste. Assim como lamento a força que me faltou este tempo todo para tirar ele de cima de mim. Não sei algum dia vou me recuperar da idéia de ter sido mulher dele. Não sei se o asco foi maior por ter sido refém do homem que eu, ainda criança, já chamei de pai, ou por ter me tornado mulher e, de alguma forma mesmo que rendida, ter sido cúmplice da traição de seu marido. Mãe, pelo amor de deus, perdoe o que aconteceu aquele dia. Eu nunca me insinuei para este homem. Sabe bem que minha força perto da dele não serviria para nada. As vizinhas, que ouviram e bisbilhotaram entre as tábuas do barraco, devem hoje estar a te ofender também. Desculpe mãe, desculpe. Sei como as notícias correm por lá.
Queria que esta carta falasse só do amor que a despedida me fez lembrar. Pelo menos assim, poderia deixar palavras de saudades. Talvez falar um pouco mais dos meus planos; talvez prometer que vou mudar. Mas esta é uma carta de desculpas e despedida. Para a única pessoa que me ama e sempre cuidou de mim. Para a pessoa que, entre tantas, eu ajudei a desgraçar a vida. Para o meu maior exemplo e amor.
Fique em paz, sabendo que o filho está bem e que pretende te buscar quando tiver condições.
Assinado: seu filho, Vandré”
Há muito tempo o garoto havia reduzido seu tempo de leitura para evitar o momento em que teria que olhar para a Teresa outra vez. E ela sorriu; ele sabia mesmo antes de levantar os olhos e a primeira lágrima se desprender dos cílios laterais:
– Vou tentar me lembrar de cada palavra que o senhor leu pra mim. Se meu menino disse que vai voltar, ele volta mesmo.

26 de abril de 2007

O Metrô e o Túnel do Tempo - Fim

Parte cinco - fim

As portas dos vagões abriram e fecharam sem que ele entrasse, mas o trem não partiu. As portas voltaram a se abrir, desta vez, exclusivamente ao único que permaneceu na plataforma: ele entrou. As velhinhas acostumadas a se arrastar estavam sentadas nos assentos reservados; os turistas de cadarços desamarrados com mapas e caras de interrogação intercalavam os olhares entre o quadro viário na parede interna do vagão e os guias de rua que carregavam; e os deficientes já estavam em casa nessa hora.
Pensava na razão daquela viagem. Para onde estava indo, quem iria encontrar e porque iria encontrar; não queria chegar há lugar nenhum. Mal as portas se fecharam, abriram na estação seguinte. Quem tinha que descer, desceu; quem tinha que entrar, entrou. Em nenhum outro passageiro notava-se espanto ou perplexidade pela rapidez com que a estação seguinte havia chegado. E o processo se repetiu na estação seguinte: as portas mal se tocaram e já abriram na estação seguinte. O artista que viajava até sua primeira exposição olhou sobre os ombros, encarou os outros passageiros, coçou a cabeça, puxou a gola da camisa, esfregou os dois olhos com as mãos. Um casal que estava sentado a sua frente, enquanto conversava, de rabo-de-olho encarava com espanto o artista. Não estava a quarenta e cinco segundos dentro do trem e já tinha percorrido três estações. As senhoras desceram com seus passos arrastados, as portas aguardaram com toda paciência do mundo, dois segundos depois delas descerem o auto-falante do metrô anunciava a chegada na estação seguinte.
Quando chegou à Serge Lê Tendre, saltou do trem e ficou encarando a trajetória da locomotiva à estação seguinte. Partiu lento, como era normal, e foi ganhando velocidade gradativamente conforme anunciavam os ruídos provocados pelo atrito entre metais. Acompanhou com os olhos até que ele desaparece na escuridão do túnel. Lembrou da última vez que havia descido ali. Parado, na plataforma via passageiros dos dois sentidos da linha chegando e se acomodando à espera do próximo metrô. Longe, no fim do corredor, estavam os degraus das escadas que, em outro tempo, ele subia aos saltos. Seus pensamentos, seu supercílio esquerdo, seu coração, os dedos das mãos e dos pés pulsavam. Como velocidade da viagem colocou em ordem o atraso para a exposição, tomado por um alvoroço de sentimentos e sensações – tristeza profunda, correntes de vento, saudade, rostos estranhos e nostalgia, obsorto pelo absurdo metrô e o seu túnel do tempo – decidiu fazer a viagem de volta. E o fenômeno se repetiu: em menos de dois minutos estava na Régis Loisel.

* * *

O artista não compareceu à sua exposição de estréia e a excêntrica ausência soou bem às madames e aos barões. Nas semanas que seguiram os visitantes esvaziaram seus bolsos e compraram todas as obras que estavam à venda. Os organizadores e responsáveis pelo evento não tinham notícia sobre o expositor desde a véspera da inauguração da exposição, há trinta e cinco dias. As autoridades estavam avisadas, cartazes com seu retrato foram colocados nos parques, praças e alguns estabelecimentos comerciais. Quando o encontraram, não puderam reconhecer.
Roto, extremamente magro e de barba suja, mas incrivelmente cheiroso. Sentava sempre nos últimos acentos dos vagões: observava e rabiscava um caderno de ilustrações. Geralmente os outros passageiros não se aproximavam muito. Muitas vezes faziam caretas como se pudessem sentir o mau-cheiro do traste e, ao se aproximarem, sentiam vontade de roçar sua barba para saber se era dela aquele cheiro bom. Cheiro de casa da avó. Na Serge Lê Tendre entrava no trem, na Régis Loisel descia e vice-e-versa. Exercitava-se nas baldeações, gargalhava da velocidade da viagem que por muito tempo foi a mais lenta do mundo. Não entendia a indiferença dos outros passageiros no começo, depois ficou indiferente a todos: só olhava e rabiscava.
Motivado por uma denúncia, um segurança do metrô foi ao encalço do mendigo. Compenetrado em seu caderno, não notou a aproximação. Sentiu um choque quando o calor da palma da mão direita do guarda segurou seu pulso, há muito tempo ninguém encostava nele. Arrastado para fora do vagão, numa estação intermediária de seu trajeto, não tinha força para lutar. Batia com a mão solta na cabeça, dobrou os joelhos e gritou com mais força enquanto era arrastado. Teve a idéia: enfiou a mão no bolso, encontrou seu lápis, a ponta bem apontada do lápis encontrou a coxa e riscou o fêmur do segurança que, espantado, apoiou numa placa de publicidade e deixou seu corpo deslizar até o chão onde permaneceu sentado. Quieto. O agressor andou, com passos firmes de assassino, ao encontro do segurança pálido, arrancou de sua perna o lápis e se jogou na vala onde só os trens podem caminhar. Sumiu na escuridão do túnel.
Foram formados grupos que vasculharam cada centímetro da Linha Urutau e nunca encontraram ninguém. Mas ainda hoje, algumas vezes, quando um trem parte e deixa seu vácuo sugar o ar dos corredores subterrâneo, suga também algumas folhas de jornal e rascunhos – a lápis – de desenhos encantadores.

Fim.

20 de abril de 2007

O Metrô e o Túnel do Tempo - parte 4



Parte quatro

Estavam juntos há três anos, sem brigas, desconfianças, ciúmes, rancores. Viviam a relação adulta que os casais de final feliz em novelas anunciam. Primeiro foram amigos, não se desgrudavam; logo passaram a namorar e não se desgrudaram mais. Irretocáveis amantes cobertos pela dádiva de não causar inveja nos amigos: mesmo as vizinhas beatas aplaudiam a esta união que ignorava e suplantava qualquer manifestação de deus ou de seus tantos representantes na terra. Mas houve quem dissesse que foi a falta de deus que separou esses dois. Todos lamentaram. O que se seguiu na vida talvez tenha sido a única maneira do amor entre eles ser derrotado: chegou a morte. Chegou lenta, com olheiras, com cansaço, cólicas, com o amarelo apático, diarréia, sono, muito sono, andar arrastado, tosse no corredor, tosse no banheiro, desmaio no banheiro, banho na cama, médico no quarto, janelas do chão ao teto fechadas, mãe chorando enrolada na cortina bordô, panos úmidos na testa, poucas visitas e a última visita, último aperto na mão, última jura do namorado, uma lágrima, um sorriso, um suspiro.

* * *
Nos meses seguintes o ex-namorado seguiu sua rotina de cursos e os encontros vespertinos com seu amor deram lugar a choros, desenhos e poemas no parque de lembrar. Encontrava-se com os amigos de vez em quando, mas nenhum que conseguisse olhar nos seus olhos. Eles conversavam com o amigo em luto olhando à sua direita, como os modelos que conversavam com o desenhista sem conseguir tirar os olhos da namorada que apontava seus lápis de grafite 6B ao lado.
Não fazia mais o caminho sobre-trilhos até a estação Serge Lê Tendre. Praticamente não submergia mais pelo concreto das linhas de metrô. Os dias só, de reclusão – estivesse no parque de lembrar, estivesse na escrivaninha do quarto ou nas salas lotadas de seus cursos –, tornaram suas imagens mais ricas, seu lápis mais sensível, sua olhar mais preciso, a sensação de perspectiva de seus retratos ultrapassavam as dimensões geométricas: retratavam também a alma que o artista emprestava a seus personagens.
O sucesso passou a rondar o seu trabalho e o olhar do desenhista continuava a se entreter nos detalhes. Sua mente continuava distraída com uma saudade que parecia se misturar com anestésicos. Alguns admiradores organizaram uma exposição de seus rascunhos, afinal, nunca admitiu que uma obra sua estivesse terminada. No marasmo quase demente em que vivia, se vestiu com o que estava mais à mão, desceu as escadas da estação Régis Loisel, viu o horário no relógio pendurado do corredor principal, pensou no atraso que a viagem de dezessete minutos causaria e travou na frente do trem que o levaria à Serge Lê Tendre.

(continua...)

13 de abril de 2007

O Metrô e o Túnel do Tempo - parte 3

Pode não parecer, mas caminhamos para um fim próximo. Provavelmente serão mais dois capítulos para o fim da saga...rs... Se você não leu a parte 1, CLIQUE AQUI, se não leu a parte 2, É AQUI.
Parte três

A namorada era artesã e morava num sítio que ficava a quatro quilômetros da zona urbana da cidade. Acordava cedo e fazia o que se faz quem não tem o que fazer até a hora do almoço, quando se reunia com os pais. Comiam e conversavam numa copa de enorme com janelas, que pareciam ir do chão ao teto, sempre abertas à luz e ao retrato do quintal, com cortinas pesadas de pano cor de bordô. Sempre às onze e quarenta. Come devagar, pausando entre uma garfada e outra para concordar com o que o dizia, mesmo assim o almoço acabava rápido: meio-dia já estava se preparava para ir ao encontro de seu amor na estação Serge Lê Tendre. Montava em sua bicicleta, atravessa lentamente o jardim das hortênsias e azaléias e apressava suas pedalas quando dobrava o à esquerda depois da porteira sempre aberta. Chegava sempre no mesmo horário e precisava esperar pelo namorado. Às vezes sentia vontade de folhear revistas com dicas de beleza e comportamento feminino, mas embora soubesse que a espera por seu menino duraria quinze minutos – ou cinco enxurradas de passageiros –, ansiosa, não tirava os olhos das catracas e acompanhava com atenção as pessoas que transbordavam de três em três minutos.
Ele chegava correndo dos cursos de artes que ocupam todas suas manhãs. Quando se encontravam se abraçavam e se beijavam com paixão e, freqüentemente, certa força desproporcional. De vez em quando, a namorada era surpreendida por pequenos pingentes, colares de miçangas, bijuterias ou retratos feitos por ele.
Não demorava para que o calor do reencontro desse lugar às reclamações e impaciências do rapaz: a falta de dinheiro, a casa dos pais, a vida corrida, os anjinhos urinando em seus sonhos. Nada disso incomodava o a moça. Pouco depois das reclamações, assistia ao seu almoço apressado e, nos dias de bom-humor, escutava seus esperançosos planos para independência financeira rápida. Nas quartas-feiras reclamava da professora de aquarela, nas quintas da aula de anatomia e quando chegava sexta sempre dizia que “se já não tivesse jogado uma grana fora nestes cursos, já teria um atelier com o Birô”. Os almoços seguiam com as suas mãos se acariciando sobre a mesa e olhares de admiração da moça. Quando se levantavam e davam lugar aos outros clientes, iam a uma praça de se beijar. O namorado então perdia o peso de sua jornada, lamentava desejar a morte de todos que atrasaram sua viagem e assumia seu carma.

(continua...)

9 de abril de 2007

O Metrô e o Túnel do Tempo - parte 2

* Esta é o segundo capítulo de um texto que eu honestamente não sei para onde vai. Se você não viu a primeira parte, CLIQUE AQUI e acompanhe.
Parte dois

A viagem entre as sete estações durava exatamente dezessete minutos. Alguns passageiros deste trecho achavam que era pouco tempo para se dedicar, por exemplo, às linhas de Érico Veríssimo ou faixas de Manu Chao. Passageiros que utilizavam o metrô durante a madrugada não conseguiam chegar ao fim em seus sonhos e freqüentemente levantavam aos solavancos para alcançar a porta antes de fechar. A moça que fazia compras num supermercado próximo da estação Serge Lê Tendre e morava seis andares acima da Régis Loisel também queria uma viagem maior para esquecer-se de seu marido, da amante que ele tem e do amante que ela perdeu. Mas para o namorado era tempo demais! Seu espírito não há de ter perdão para as maldições rogadas contra as senhoras de lentidão cadavérica, os turistas desencontrados com cadarços desamarrados, os deficientes que se enroscam a cada passo: todos que atrasassem a sua jornada a caminho de sua namorada eram malvistos, malquistos pelo apaixonado. Não importavam os motivos ou infortúnios que a vida oferecia à pessoa que atrapalhasse sua viagem, nada justificava.

* * *

Gostava de fazer caricaturas. Queria ganhar a vida como artista, mas não entendia bem como ia ganhar dinheiro assim. Enquanto isso, conseguia uns trocos fazendo retratos nas praças em dia de grande movimento. Sempre que podia ia ao Parque Dom, onde havia um grande chafariz cercado por oito anjinhos que afastavam qualquer pretendente a banhista apontando-lhes seus jatos de urina. O caricaturista, que se vendia como retratista no Dom, sentia-se enojado com aquele pano de fundo angelical que seus, não tão fiéis, clientes adoravam. No entanto, como havia estudado um pouco sobre sinais e mensagens subliminares, gostava de pensar que apontando os riscos urina dos anjos às costas do retratado estaria criando uma mensagem oculta em sua obra. Ou, igual fez com a garçonete mal-educada, colocar os mensageiros divinos ao fundo, e ao mesmo tempo ao lado do rosto de sardas e sorriso metálico, guerreando com suas espadas, ao sair do lápis do artista, iguais as de Luke Skywalker e Darth Vader.
O nome do parque, Dom, merece uma menção. O prefeito resolveu fazer uma grande quantidade de parques e praças públicas para tornar a cidade mais terrestre. Criou-se uma mega operação envolvendo as secretarias de Infra-estrutura, Cultura, Transporte, Segurança, Educação, Saúde e Comunicação. Como estratégia de marketing, ficou decidido que durante o mês de agostos – quando a cidade comemora seu aniversário – todo fim-de-semana um parque e duas – às vezes três – praças seriam inauguradas. Tudo muito bem planejado e distribuído de maneira apropriada para atender e dar fácil acesso ao maior número de moradores. Doze praças e cinco parques foram inaugurados. Para as praças, por serem obras menores, que podiam levar o nome de ilustres cidadãos de menor expressão como homenagem, não tiveram problemas de batismo. Os parques seguiam o mesmo caminho: um levaria o nome de um político estadunidense que havia morrido e comovido alguns colonos; outros dois levaram nomes de atores nascidos na cidade que ficaram famosos em novelas e teatro; o governador, que liberou uma verba para as obras, também mereceu seu nome numa placa; e o último, que fica no centro, chamaria Dom Freitas. Padre e, especialmente, agente social adorado pelas inúmeras famílias que viviam afastadas dos córregos de dinheiro da cidade que havia sido, misteriosamente até então, morto a tiros. Acontece que, um dia antes da inauguração do parque, a perícia da polícia apresentou seu relatório sobre o crime bárbaro: d. Freitas se envolveu numa espécie de grupo subversivo que pretendia parar uma grande indústria que despejava seu lixo no rio que abastecia a cidade vizinha e que era comandada por um grande coronel, não do exército, da região. A notícia de que um capanga – por motivação própria. Sem que seu patrão houvesse pedido, segundo o relatório final – do coronel havia matado o padre causou enorme mal-estar entre industriários, intelectuais, representantes da esquerda, religiosos e população em geral. O governo não quis entrar nesta briga de foice e, sob o argumento de prudência, de não tornar aquele espaço um campo de batalha e manifestações, decidiu tirar o nome do líder religioso. Mas neste momento todas as placas já estavam postas os textos de divulgação para imprensa já rodavam nas caixas de mensagem dos assessores e jornalistas. Os jornais que, também nesta cidade, davam as mãos ao governo já editavam suas capas quando receberam a ligação de uma autoridade qualquer:
– Tire o nome do Freitas desta matéria
– O que coloco no lugar?
– (...) Deixe o Dom, acho bonito... Dom!
As placas que estampavam o nome do parque foram raspadas onde trazia a palavra Freitas. Até o engenheiro da obra, Antônio Goulard Freitas, na pressa da maquiagem toda, perdeu seu último sobrenome.

(continua...)

28 de março de 2007

O Metrô e o Túnel do Tempo: a Divina Misericórdia

Era rotina de toda a cidade, por volta de duzentas mil pessoas, acordar, espreguiçar, café preto e correr para o Metrô. Fosse só por diversão, pular dentro trem só para passear pelas galerias do centro, pelas compras e pelos bares; fosse para trabalhar - uma minoria dependia do serviço com pontualidade. Sem horários de picos ou filas intermináveis. Pensando bem, existia pelo menos uma bilheteria por estação, no entanto nunca vi ninguém trocar suas moedas pelos passes. A impressão é que, ainda criança, um micro chip era inserido em cada cidadão nascido na cidade e a passagem era livre e gratuita pelas catracas. Mas isso não era verdade.
Lá não andava carro, seria extravagância. Pelas ruas apenas alguns ciclistas e muitos pedestres. Nenhum ônibus. De resto, para ir de um lado ou de outro, só metrô. Todos os dias, todos os horários. Durante a madrugada, metade dos vagões eram destinados ao transporte de mercadorias e materiais às indústrias – que não eram muitas e tinham suas próprias estações – e ao comércio. Nenhum caminhão.
O secretário de Transportes Públicos e Infra-Estrutura Urbana era deus, ou melhor, o atual era neto de deus. Seu avô foi quem colocou toda sua energia costurando cada quarteirão da cidade com linhas do trem subterrâneo. E acabou instituindo a tendência das urnas nas últimas quatro décadas: se você for o secretário de Transportes e Infra-Estrutura, sem dúvida será o próximo prefeito. O prefeito da cidade, ex-secretário de Transportes, quando acabar o mandato volta ao antigo cargo. E é assim até que a morte interrompa o processo. Às vezes por causas não naturais ou muito suspeitas; historicamente, isso não é tão incomum.
Nas antigas ruas de passear carro, nas manhãs e tardes de domingo, as mesas das sorveterias, lanchonetes, pastelarias e botequins invadem. Durante a semana, servem de passarela em eventos culturais, discursos públicos, maratonas públicas; eventos públicos previamente agendados na Secretaria de Cultura, Esporte e Lazer, SECEL, responsável por todo asfalto ao ar livre. Por iniciativa desta Secretaria, todas as ruas eram pintadas por grafiteiros e alunos do ensino público.

* * *

Era tradição, que virou lei, dar nomes de pássaros aos corredores subsolos. Uns acreditam que era uma gozação destinada aos moradores que haviam sido contra as construções. Diziam, os opositores, que iam tornar aquela cidade em uma cidade de minhocas, enquanto o resto do mundo era formado por gaviões – referência à popularização dos aviões na mesma época – que voavam; outros, mais velhos, dizem se lembrar de ver o primeiro engenheiro das obras com pássaros engaiolados e, nas horas vagas, armar lunetas para apreciar os que ainda voavam soltos. Era um gringo, com cara vermelha e cabelo amarelo. Quando ele colocava o terno azul, era um Pica-pau (nome da primeira linha) escrito.
No entanto os nomes de pássaros se restringiam às linhas, as estações podiam levar qualquer nome. Nos bairros industriais as estações homenageavam grandes nomes da revolução industrial, grandes empreendedores, e, pela pressão de líderes da esquerda representativa da cidade, alguns filósofos comunistas batizavam os pontos. No canto cultural da cidade muitos eram os homenageados também, alguns merecedores da menção outros, por falta de nome melhores, apareciam porque precisava de um nome simplesmente como referência. Jamais uma estação sem nome serviria de indicação para alguém. E a história toda começou neste bairro.
Na última linha construída, a Linha Urutau, entre as estações Régis Loisel e Serge Lê Tendre, um percurso de três quilômetros, ou sete estações – como manda a métrica popular local: qualquer distância se mede por número de estações –, um namorado ansioso para encontrar seu par teve a impressão de que o tempo passava mais rápido. Quem não tem um peito de lata ou um nó de gravata no coração sabe que não é normal isso acontecer. Sabe que o tempo é obstáculo que se supera com muito custo e talha o coração de quem ama e encontra na recompensa de seu amor sua Divina Misericórdia.
(continua...)

16 de março de 2007

O crocodilo e o ditado óbvio

Outro dia conheci um senhor que domesticou um crocodilo. Para mim bicho que se domestica é cachorro. Nem gato eu considero. Gato é bonitinho, mia pra lá, se lambe pra cá, vomita bola de pêlo; no mais, ele só convive com você, só isso. Não espere que ele pule na cabeça do ladrão para defender sua família. Mas isso não vem ao caso. Estamos falando de um crocodilo! Praticamente uma história sobre dinossauro.
O dono insistiu, pagou a conta, disse que era seguro e eu, que não estava nem aí praquele samba, fui conhecer o animal tão estimado. Confirmei minhas suspeitas logo que cheguei. O crocodilo era domesticado daquele jeito (...). O dono entrou no cercadinho, mas não ficava muito de costas praquela boca cheia de dentes. Entrava, oferecia ao anfitrião de sangue frio um frango, carne ou ração que o valha e saía andando em marcha ré. Estava há duas semanas com o animal. Explicou que havia encontrado numa estrada no interior do interior de uma cidade qualquer.
– Estava indo caçar tatu quando vi o que parecia um tronco na estrada. Ainda não tinha amanhecido direito e a luz do céu não ajudava muito, mesmo assim era melhor que a do carro. Desci da minha Variant e, quando dei com a sola do sapato para liberar a estrada, levei uma rasteira que não sei nem de onde veio.
Até este momento, eu só não estava mais vidrado na conversa porque a grade do cercadinho não inspirava a menor confiança. Mas não interrompi a explicação; ansiava por seu desfecho e ele continuou:
– Minha sorte foi que quando ele deu a rasteira, que só pode ter sido com o rabo, eu caí num pequeno barranco com uma vegetação parecida com a de manguezal quando está seco. Acho que ele ficou com preguiça de descer a atrás de mim. Lembrei que tinha no carro uma lanterna e uns barbantes. Joguei a luz no olho dele, ele ficou estático. Quando estava a meio metro de distância que fui pensar o que eu queria indo até lá. Você deve imaginar que naquele momento a história do tatu tinha ficado bem sem graça pra mim, né? – falou sorrindo. – Ainda não sabia se ia enfeitar a sala de casa com sua cabeça e fazer ensopado com sua carne, ou vendê-lo para algum excêntrico... – parou um pouco constrangido, havia percebido que tinha armado sua própria arapuca e – ainda não imaginava que o excêntrico seria eu. Cinco horas depois o bichão estava dentro da Variantizinha.
– A vá! Vamos ver se eu entendi o que você está me dizendo. Você está me dizendo que meteu o pé num crocodilo achando que era tronco; com uma lanterna de bolso e uns barbantes o rendeu e, sozinho, colocou esta besta dentro da sua Variant(!!!) e trouxe para o quintal da sua casa, é isso?
– É. – seco.
Pensei em um ensinamento, provavelmente de algum velho mestre chinês, que diz: nunca provoque um homem que sozinho já capturou, conviveu ou dormiu com crocodilos.
– Está aí uma histórias para os seus netos e bisnetos. – falei e não questionei mais um detalhe da história do adestrador.

1 de março de 2007

E começa mais um grande amor

Quando acordei pela primeira vez não reconheci o quarto onde estava. Enxergava através do rosto do homem uma velha lâmpada amarela com sardas verde-oliva: frutos da última pintura no teto. Ainda não havia notado que o homem também via através de mim descrevendo seus sonhos em verdana 10. Deixei minha atenção passear por uma prateleira com troféus baratos, com uma velha foto e com alguns livros e cd’s. À esquerda da prateleira não entedia bem o que era um amontoado num baú entreaberto. Meses mais tarde, descobri ser uma pilha de lp’s, que aguardavam agulhas de vitrola para vaciná-los contra o ostracismo, e recortes de jornal, que sonhavam com a encadernação e a vida longe das traças. Havia ainda uma luminária à minha direita que, ao apagar da luz amarela do central do teto, acendia para dar vida a um fantástico mundo de sombras e penumbras no universo do quarto.
Finalmente detive minha atenção ao homem que me lançava um olhar profundo e sem pedir licença roçava a minha barriga. Quando deixava de lado o ventre, com a ponta dos dedos, suavemente, tocava com uma regularidade, quase mecânica, partes diferentes de meu corpo. O semblante do invasor era assustadoramente sério e compenetrado. No entanto, com certa freqüência atirava suas costas ao encosto da cadeira, colocava as duas mãos na nuca ¬– geralmente sem tirar os olhos de mim – e, mesmo alterando tão levemente as expressões de rosto que eu mal posso dizer quais eram, demonstrava uma profunda satisfação. Às vezes repetia a massagem, com a ponta macia de seu dedo anular da mão direita, três vezes no mesmo lugar e lançava sorrisos (que eu julgava) maliciosos e me davam calafrios...
Talvez ainda estivesse em estado de embriaguez pela ofuscante sensação de nascer pensando. De nascer com memória, saber exatamente a minha capacidade e o que poderia suportar por toda minha vida. Ter que conviver com as limitações de meu tempo e com uma consciência a me abortar a todo instante qualquer vestígio de esperança que pudesse apontar a um futuro mais evoluído. A esperança e busca interior para me tornar mais capaz nunca existiu ou existirá em mim. Posso aprender até um limite e, pesquisando a história de meus antepassados, sei que é pouco provável aproveitar minha capacidade máxima. Depende do dia, fico feliz ou triste pensando nisto.
Mas com o passar dos meses acredito ter evoluído espiritualmente. Talvez junto de meu dono, que adora me convidar para pesquisas filosóficas-religiosas. Hoje nada me dá mais prazer do que acompanhar e servir às brincadeiras do meu patrão. Sinto-me aproximar do estado de nirvana quando correspondo às ordens de meu único e absoluto senhor. A estranheza inicial, que ia do teto verde-oliva até a fisionomia áspera daquele homem, se tornou dependência mútua. Como em alguns casamentos tradicionais, o brilho dos olhos que me olham com o passar do tempo não era mais o mesmo. Como em alguns casamentos tradicionais, ainda não me trocou porque, quando se mora junto, a união vai além do físico. A união se fortalece com os segredos, planos e ambições compartilhados. E isto nós temos de sobra. Sou seu confidente mais confiável e posso dizer que sem ele minha existência perde qualquer sentido.
Não me importa que em dois anos tenha deixado de ser atraente para ele e passado a ser um objeto de utilidade básica. Não me importa que a cada dia se tornem mais recorrentes tapas em minha carcaça quando empaco pelo excesso de trabalho ao mesmo tempo. Eu não posso fugir dele, mas ele não pode fugir de mim. Sei de sua vida e sei o que ele ganhou com a dedicação que aplicamos em nossas madrugadas de trabalho... Nada! Conquistar modelos da moda custa caro.
Ele já me chamou de máquina poderosa, hoje sou máquina de escrever.

14 de fevereiro de 2007

Atlântida

Este continente lendário, que durante a minha infância era ilha e eu visitava vez ou outra dentro de meu carrinho-submarino, me recebeu em excursão com minha caravana de pensamentos insones. Atlântida – suas estórias e mitos – fascina e de certa forma representa uma laguna entre a África, as Américas, a Europa e a Ásia e poderia pertencer à Oceania se não tivesse se rendido ao oceano. Tanto faz crédulos ou incrédulos, Atlantis é uma presença ausente, assim como a saudade. Consta que as primeiras menções sobre Atlântida foram feitas pelo filósofo grego Platão; a palavra saudade, ou outra compatível, nunca existiu para Platão e gregos. Talvez esta vala no vocabulário, a ausência de uma palavra que dissesse tudo que a saudade nos diz tenha impedido que a Saudade tivesse sua própria deusa, que chamaria Atlântida.
Desta vez não foi como na minha infância, onde os dinossauros habitavam este antigo continente. Onde, mesmo sem saber, seu misterioso sumiço não representava uma tragédia sísmica. Quando ia para Atlântida, voltava no tempo e ingressava numa terra que misturava os Sacis-Pererês com as sereias e a rosa-dos-ventos perdia suas pontas. Para voltar para lá quase vinte anos mais tarde, não comprei passagem, não tirei passaporte ou recebi carta de cor violeta – como em As Intermitências da Morte de Saramago. Fiquei no mesmo lugar enquanto outros partiam: uns com bilhete de volta, outros sem. E quando cheguei, na terra onde antes o tempo custava a passar, tive a impressão que ele – o tempo – havia se adiantado. Atlântida surgiu sob meus pés e carregava muita ternura com cheiro de crisântemo. Na mesma concha que vi pela última vez um casal de sereias negras, tem uma cadeira de madeira com meu avô sentado. Sorrindo. Na moita em que saci morava e saia todo fim de tarde, tenho nove anos, o rosto sujo, e a camiseta do São Paulo rasgada por ter enroscado num galho quando tentei recuperar minha primeira bola de capotão. Tem o vizinho que devolvia a bola quando caía em seu quintal, tem o vizinho que rasgava a bola. Mas nenhum deles se mexe. Pertencem à minha Atlântida e à Atlântida de todos que os conheceram.
No entanto, nem tudo na minha terra oceânica parecia museu de cera. Há os que compraram passagem, voaram, foram e me trouxeram até aqui. Eles andam e correm e divertem-se entre si. Alguns estão felizes, outros nem tanto. Devem me encontrar em suas Atlântidas também, mas, só, só posso imaginar como me vêem. Os mais velhos podem preferir me encontrar criança, talvez um bebê estático, sem os vícios do que eu sou. E sem um retrato – como o de Dorian Gray – que estampe as marcas de meus atos imorais mostrando com clareza o que me tornei, apenas lamento lembrar que eu mandei alguns a Atlântida e com o passar do tempo eles me expulsaram de seu continente.

31 de janeiro de 2007

Vizinhos

Eles dividem a mesma rua, as casas estão frente à frente uma da outra, e mal se cumprimentam. São duas famílias comuns formadas por dois casais: de pais e de filhos. Vou deixar claro que não estamos falando de vizinhos paulistanos. Moram numa cidade de pequeno, quase médio, porte. Eles se conhecem, sabem os nomes de uns dos outros, menos o dos filhos – dos outros –, e nunca dividiram xícara de açúcar, um guarda-chuva na ladeira ou a Kombi que leva a despesa do mês do mercadinho até a casa do cliente. A divisão destes vizinhos, nem cosmopolitas nem caipiras, não se limita a uns poucos metros de asfalto e concreto. Ninguém diz, é uma distinção velada como a maioria dos preconceitos brasileiros, mas são famílias separadas por questões sociais: uma é pobre e se acha pobre e a outra é pobre e se acha rica.
Os filhos estudam na mesma escolinha municipal: o menino pobre rico está na terceira séria e sua irmã na primeira, ambos nas turmas A. Os pobres pobres seguem os mesmos anos do vizinhos, mas estão em letras diferentes: o menino, na E; a menina, na D. A mãe pobre rica nunca se vangloriou, mas se delicia com o som dos As de seus filhos. Mesmo que este mesmo som não chegue às carteirinhas de notas, não importa, tem um casalzinho A! O pai pobre pobre não está nem aí – é vigia das sete às dezessete em uma firma que faz o lacre de segurança para a tampa de copo de requeijão –, sai do serviço, passa em casa e vai para o boteco onde joga caxeta. Às vezes ganha um dinheirinho que esconde dentro de um Santo Antônio oco e sua mulher nem sonha. Todo dia, no café da manhã, jura em silêncio que vai gastar com um presente para a mulher; à noite, quando volta do bar, faz as contas para ver se consegue fugir de casa. O pai pobre rico trabalha na empresa que faz a tampa para o copo de requeijão (nota: os donos das vacas que dão o leite para se fazer o requeijão é que são os ricos ricos da cidade). Ele opera uma pequena prensa que molda e faz o furo onde é encaixado o lacre de segurança. Acorda às quatro e meia todos os dias para ver o Telecurso na tv, não anota nada. Ensaia no espelho o pedido de promoção, talvez para se tornar encarregado em algum departamento. Quando bate o cartão, tem saudade e vai correndo para a casa; só diminui um pouco o passo quando lembra que não tem novidade. A mãe pobre pobre acha que está anêmica, teve rubéola, sarampo, catapora e o médico pediu para ela voltar semana que vem.
O Fox é o cachorro pobre rico, Costela é o pobre pobre e cada um tem seu buraco na grade para escapar para a rua. Seis da manhã, o Costela faz xixi no portão pobre rico, afinal, chumbo trocado não dói, e o Fox deixa sua marca no portão pobre pobre às cinco e meia enquanto se prepara para perseguir o leiteiro. Às nove, os dois se divertem rolando no gramado da pracinha do quarteirão de baixo.

29 de janeiro de 2007

Confissão

Outro dia emendei o almoço com o lanche da tarde, o lanche da tarde com o jantar e aproveitei meu fim de tarde para conversar com o Cristo, o carioca. Vinte minutos de caminhada dentro da maior floresta urbana do mundo, a da Tijuca, nenhum quilo a menos, uma sede danada, e chego aos pés do grande irmão. Observador incansável e confidente de milhões, há muito tempo tem como principal ofício prestar-se como pano de fundo para as fotografias de turistas vermelhos com camisas floridas.
Cheguei, a noite caía, tinha ainda uns 20 minutos de sol, e já tinha feito meu primeiro questionamento ao filho querido do pai de todos nós: – Com quê direito a combinação sol mais calor mais ladeira acima mais nosso senhor dá para um cidadão cobrar quatro pilas por uma garrafinha de água? (sem esquecer de mencionar, também em pensamento, o brilhantismo e competência de nosso senhor quando inventou este refresco natural) – quando resolvi olhar para o pedaço de terra que ele tem olhado nos últimos setenta e seis anos. Está lá, de frente para ele, Botafogo, a praia e o bairro, as casas, algumas árvores, as ruas, os moradores passeando, o mar e os barquinhos. Sua visão periférica, que se não for a melhor, sem dúvida é umas das melhores já criadas, ainda alcança Flamengo e Urca. Esta facilidade de alcançar as extremidades destra e canhota confunde muitos seguidores daquela região que acreditaram em sua onisciência e até mesmo exageraram sobre sua onipresença. “Como ele pode ter visto isso?” ou “Saber daquilo só estando lá e ele não saiu dali”. Mas ele não tem nada a ver com estas conclusões. Os fiéis, com os corações cheios de amor e fé, com espírito de Saulo, sempre tenderam a aumentar suas, reais, super qualidades. Ah, ajuda ainda sua visão o fato dos artistas, seus criadores, não terem pintado as retinas, assim o deixaram a vontade para olhar de soslaio.
Invejei a paisagem. “Quando o homem lá de cima quis, caprichou mesmo.” Dei a volta no monumento, olhei para as costas da estátua, fui ao pára-peito e respirei toda aquela mata verde. O céu lançava uma luz amarela de fim de tarde que quase deixou o verde da mata azul.
– Como está a vista? – eu ouvi e respondi sem tirar os olhos daquela selva que me convidava.
– É viciante.
– Tenho uma saudade da vista que tu tens agora. Quando minha cabeça foi posta sobre meus ombros e pescoço, fui abençoado pelo descuido de um dos funcionários que fê-la girar por duas vezes. Tenho em minha memória os poucos segundos que pude apreciar a imagem que você vê agora. Enquanto isso, sob os olhos tenho a confirmação lenta e gradativa da escalada de cimento e asfalto que invadem a cidade como lavas de um vulcão que resolveu despertar.
– Mas a vista que você aprecia, com a luz do luar e as lâmpadas da cidade, preenchem todas as vinte quatro horas do dia. Além disso, é rica em movimentos e ações do homem que tornam a sua monótona existência de concreto, figas de ferro e pedra sabão mais emocionante, não? Claro, algumas vezes estas ações são daninhas à natureza e ao próprio ser humano que, quer queira quer não, faz parte desta mesma natureza. E me desculpe a intromissão, não quero ser petulante, mas sempre me disseram que você veio pra cá justamente para olhar nós.
– Permita-me fazer uma confissão que só faço porque sei que nada poderá fazer com esta informação. Se contar para alguém, nada adiantará e ser ridicularizado será o máximo que conquistará. Já que levamos uma conversa informal deixarei o arcaiquismo de lado. O céu também traz sua organização e a manutenção deste planeta é sim prioridade de nosso patrão. Não estou desde o começo, mas o que consta foi que este modelo foi feito e precisou ser mantido sem nenhuma influência superior por muito tempo. Os homens se destacaram por conta própria e de poucos detalhes físicos, um deles a mão que pega o que quer e faz decidir o que fazer com o que pegou. Conforme os dias foram passando foi decidido pelo alto escalão que deveríamos dar mais atenção para o homem naquele momento. Sei que não foi consenso, os responsáveis pelos reinos dos minérios, vegetais e até mesmo um grupo dissidente do reino animal foi contra. Mas o chefe estava convencido que todos poderiam sair ganhando com uma raça inteligente que administrasse as coisas por aqui. Convenceu todos com a promessa de que o trabalho de todo mundo, ou melhor, de todo corpo celeste, para usar um termo que você compreenda, diminuiria. O problema era conduzir este povo todo para uma linha de conduta aceitável. Se vocês pudessem imaginar a quantidade de bons pastores que não conseguiram firmar. E fez-se a religião! – e ele faz com a boca um barulho de trovão bem mal feito – Grupos que facilitariam um entendimento coletivo de nossas propostas. No começo todo muito tribal sem o alcance desejado. Dava certo em pequena escala. Jogada de mestre do superior, sabendo do instinto competitivo de vocês, mandou pastores com propostas iguais, apenas caminhos distintos. Eu entro aí.
– Entre tantos outros? Incluindo alguns que não tem sequer uma página destinada nos livros de história, incluindo os que falharam?
– É um jogo de sorte ou azar. Num determinado momento, com o fracasso de alguns dos meus antecessores, mudadam algumas regras. Veja você o Buda, ele foi e voltou algumas vezes para conseguir provar seu ponto de vista e conquistar as pessoas. Eu falei, falei, falei, entreguei-me ao sacrifício humano, contei com um grupo de seguidores que divulgaram minhas idéias e mesmo assim me arrepio com as distorções que fazem com o que preguei. Já tive inclusive que prestar contas para meus superiores sobre o que meus fiéis estão fazendo com os meus ensinamentos. E, que fique entre nós, não reconheço quase nada de mim na boca dos pastores de hoje.
– Estamos perdidos... – murmurei.
– Não é pra tanto, mas as preocupações dos titereiros mudaram. Hoje priorizamos as árvores, as plantas e os animais que mantém o equilíbrio biológico. Precisamos que o mundo sobreviva e para que não tenhamos uma eternidade tediosa. Outros membros do comitê celestial ganharam força e o departamento em que trabalho, o dos homens, perdeu poder. Como o fluxo de trabalho diminuiu gostaria de poder voltar os olhos para o mato mais uma vez. Mesmo porque, com os pés cravados no concreto e os braços imobilizados com o peito à mostra, o máximo que posso fazer é escutar suas súplicas e chorar a impossibilidade de ajudá-los, mesmo em suas mesquinharias.
– Vocês perderam o interesse por nós.
– Não há santo que agüente a mesma ladainha, os mesmos erros, as mesmas inquietudes, os mesmos maus-tratos por tanto tempo. Claro, vocês vão sofrer com esta mudança política, mas a ignorância e arrogância estarão aí para que vocês continuem teimando serem senhores de si e acreditem que o mundo existe para contemplar seus interesses. Isso nem se quiséssemos conseguiríamos mudar. A mudança é gradual.
– O que devo fazer?
– O que você foi projetado para fazer, respire, recicle o ar para as árvores.

23 de janeiro de 2007

Careta é demais, careta é pouco

Se você não é um deles, sabe que eles estão aí e em bem maior número do que se imagina. Virou, mexeu esbarramos num gênio desses. Outro dia fui surpreendido, distraí e já estava no papo. É assim mesmo, em via de regra, eles começam devagar apresentam apressadamente certa preocupação humanitária e, lentamente, entram de cabeça numa loucura que, com um pouco de imaginação, parece com a do Dr. Richard, no filme Alta Ansiedade do diretor Mel Brooks. O personagem, por medo de altura, alucina e trava. Não consegue se mexer ou sair do lugar. Nosso companheiro trava nas idéias, inseguranças, preconceitos e, principalmente, medos.
O bar estava cheio e o escolhido para ouvir a ladainha, mais uma vez, como de costume, como não poderia ser diferente, fui eu.
O dono do bar que fez o favor de apontar esta bazuca-destra para o meu lado.
– O Zé – que mais tarde eu daria o sobrenome de Ruela – é casado pode falar melhor que eu.
– Comigo funcionou assim mesmo: sempre fui tranqüilo, respeito todo mundo, só não agüento quando vem me chamar de careta. – vale uma nota. Não estávamos falando de caretice. O dono do bar está pra casar e chamou o sabe-tudo para um depoimento – Pode ver, passo aqui no bar pra uma só. Antes das sete e quinze já estou a caminho de casa com o pãozinho e tudo. Agora minha mulher deu para me chamar do que? Careta! É impressionante como mulher gosta de ofender a gente justamente com...
– Você é casado há muito tempo?
– Toda mulher sonha com isso, viu? – a gente pergunta uma coisa e ele responde outra. Este é o outro sinal clássico desta tribo... sem ofensas aos índios – A mulher que fala que não está mentindo. Hoje falam que é meio... falam que é coisa do passado, né? Antiquado... um pouco. Mas vou falar, eu gostei. Demorei até me decidir e acertei, me casaria de novo. Todo mundo lá, a maior festa depois. Eu fui parar na piscina de roupa e tudo, depois não sobrou um seco. Só meu sogro que não deixou ninguém encostar. Ele fez exército, durão. Já tinha mais de sessenta quando nasceu minha mulher. Admiro a disciplina do exército, viu? Tudo funciona certinho. Não vou defender a ditadura aqui, sempre falam que eles exageraram na época, mas todo mundo andava na linha antigamente! Vê se você via bandido fumando maconha na rua. Fora esta moda agora de intelectual defendendo bandido. Direitos humanos... e a gente, quem defende? Eu não espero a polícia me defender. Daí aparece artista, que só visita favela com segurança, em carro blindado, falando em para votar a favor do desarmamento. O povo sabe das coisas, não cai nessa conversinha. Bandido fica armado e a gente, faz o que, ataca com estilingue?!? Não, não. Lá em casa, se eu ouço barulho no quintal, pego minha vinte e dois, corro para a janela do banheiro.
– Vinte e dois é arma de mulher – comentário de um espirituoso bêbado que aguardava ser atendido no balcão.
– Ninguém te chamou nesta conversa. (...) Cara folgado. (...) Então, como eu estava falando, sempre quis ter um casal de filhos, né? Primeiro um menino, pra defender a irmã. Falei isso para minha mulher ela me chamou de careta! (...) Não vou dizer que aprovo: quando casamos, na igreja, nós dois de branco e, isso é só entre nós, não gosto de falar das particularidades da família, ela não era virgem. Eu sabia, ela tinha me contado. Mesmo não fiz nada antes de casar, preferi esperar. Coisa minha, sabe? Acho bonito esperar pela benção do padre. (...) Mesmo assim eu aceitei casar com ela. Parece que ela não enxerga essas coisas quando me chama de careta. Eu não tenho coragem de colocar filha no mundo sem ninguém para defender... Cheio de vagabundo e pilantra solto aí. Se alguém ofende a menina não sei o que faço. Agora, se querer uma família mais protegida é ser careta, então deixa ela me chamar de careta. Daqui a pouco tenho que ir. Eu nem sei se ela vai ser uma boa mãe. Antes dela começar com o grupo da igreja, começar ler a bíblia, confessou que era viciada em maconha no colegial, fumou umas três vezes e até matou aula para isso. Esse negócio, e pode até parecer esses médicos que não sabem de nada dizendo que não, estraga os genes. Fora isso ela é muito mole. Ela assiste a esses programas que só vão vagabundas na televisão. Outro dia tinha uma mãe com o filho bicha. Acredita que ela falou que ia tratar como normal se tiver um filho assim? Prefiro meu filho bandido, roubando, que se enroscando com outro homem. Ela é muito nova, né? Com 19 anos eu também tinha umas idéias atrapalhadas. Depois dos 40 a gente enxerga melhor as coisas... Ela vai aprender. Tenho que ir, senão ela fica preocupada, nunca chego depois das sete e meia. Opa! Está bem? Que cara é essa? Nem bebeu, que porre é esse?
– Nada não, nove horas, já vai?

11 de janeiro de 2007

Cantina Italiana

Um amigo de longe, longa data, de passagem, chama para almoçar. O tempo em que estamos distantes é suficiente para cada um querer, à sua maneira, impressionar o colega. Os problemas preferidos, ressaca, falta do que fazer, fila de banco, não seriam os assuntos. Reclamar da vida, lembrar o engarrafamento de manhã, mulher – porque se você tem mulher, reclama, se não tem, reclama também – nem pensar. Era hora de relembrar aquele projeto feito há dois anos atrás que o gerente não corrigiu uma vírgula. Não elogiou, não dividiu os méritos, não citou seu nome na cerimônia de premiação, é verdade. Mas, tratando-se deste gerente, o silêncio é o maior elogio. Lembrar e contar o maior feito da vida.
E como animal acuado, tímido e inseguro, parto para o ataque.
– Conheço uma cantina italiana super bacana.
Está vendo, já começou mal. “Super bacana” é do tempo em que eu estava na escola e, no recreio, comia um enroladinho e tomava Fanta Uva... É do tempo do recreio. Depois do tempo do recreio a gente passa pela hora do lanche e intervalo antes de chegar a um almoço da vida adulta.
– Ótimo, adoro a culinária italiana. Em Roma eu provei o melhor pizzicotti ai carciofi da minha vida!
De três uma: virou fresco, está se mostrando ou é veado. Mas a cara de interrogação é por não conseguir ao menos imaginar que raio vem neste prato. Na verdade se ele pedir para repetir o nome do prato não sai nada. Ele ainda não percebeu, ou não quis perceber, que o vale-coxinha que eu recebo mal permite passar na frente deste restaurante. Pior ainda. Mal sabe que, para mim, comer massa italiana e mastigar toalha suja com molho de tomate dá na mesma. Sou xucro, vai encarar?
O cardápio está na mão e o suor da testa já foi limpo com o guardanapo de pano. Enquanto isso o colega, todo pomposo, a minha frente já ajeitou o guardanapo sobre as pernas e tira, com as costas da mão, uma sujeira que, de tão pequena, eu só posso imaginar que exista em seu paletó.
O restaurante é típico suficiente para se dar ao luxo de não explicar neca de pitibiriba daqueles palavrões de uma lista que aqui se chama menu.
– Ó, eu acho que aquele prato você vai achar só em Roma mesmo. – e chamo o garçom – Que cerveja você tem? – de volta ao amigo – Toma uma Brahma?
– Não consigo comer e beber cerveja, acho que é a idade. – e pergunta ao garçom – Boa tarde, vocês servem Barbaresco Gaja 95?
No que este cara se transformou? Não é a mesma pessoa que jogava cimento na privada da escola e escrevia baixarias nos cadernos das meninas. Virou CEO de uma empresa qualquer e já começou com esses drinques extravagantes. Mais tarde descobri que era apenas um vinho. Mais tarde ainda, na hora da conta, vi que não era um vinho qualquer, muito pelo contrário.
Já estava prestes a perguntar se eles serviam macarrão com molho de tomate e carne quanto o engomadinho pediu permissão – ele perguntou assim mesmo, permite que eu faça o pedido? – para escolher nossa gororoba.
– Prepare um risotto alla milanese, com zafferano e o scaloppine alla pizzaiola, por favor. Vocês não colocam cebola, né? – E virou sorrindo para mim. – Pode ficar tranqüilo que não tem cebola.
Pediu licença e foi ao banheiro. Eu estava perplexo. Só me senti melhor quando pensei que qualquer amigo meu, do convívio atual, estaria também. Além do cara pedir em italiano um prato com três nomes, lembrar que eu não como cebola e tomar a dianteira da situação, ele percebeu que se deixasse eu pedir prato provavelmente ia passar maus bocados. Perguntei para o garçom do que se tratava o prato enquanto o bom vivan não voltava.
Sabe como são os pratos italianos, né? Uma fartura. Comi, bebi, a fome passou, o humor voltou. A única coisa que ficou na minha cabeça era o que de tudo que o garçom falou que viria no prato só reconhecia o contra filé. Mas tudo bem... Pô, o cara não tinha nada de arrogante. Subiu na vida porque era competente mesmo. Cheio de diplomas: mba pra cá, pós pra lá. O problema esta em mim, neste complexo de inferioridade infantil. Ele sempre foi um bom amigo, companheiro leal. Era engraçado vê-lo com as menininhas. Cada hora com uma história diferente para impressioná-las. Ai, ai, ele sempre foi especial mesmo.
Chega a conta e, em meio a risadas das histórias passadas, diz ele.
– O que achou do pedido?
– Está de parabéns. Nada como andar com um profundo conhecedor da culinária, porque não dizer, universal! – e caímos às gargalhadas.
As lembranças me rejuvenesceram, lembrei do décimo terceiro salário – não tenho filho para presentear no Natal – e meio embriagado peguei a conta e num golpe rápido passei o cartão de crédito ao garçom.
– Que é isso – tentou reagir o melhor amigo que já tive – permita-me pagar?
– Permita-me pagar?!? Pra que este fruqui-fruqui, fala direito comigo! – brinquei – A próxima é sua. Reencontrá-lo me valeu muito mais, ainda vai me pagar em conhecimento, dando aulas sobre o mundo – falei um pouco emocionado.
Como é mesmo o nome desse mundaréu de comida que a gente pediu? Chamei o garçom.
– Companheiro, deixa só eu anotar o nome deste prato, vou ficar decorando em casa para, se deus permitir, algum dia eu possa impressionar alguém com o este pedido. – murmurei.
– O que acabamos de comer foi um risotto alla milanese, com zafferano e o scaloppine alla pizzaiola muito bem feito, aliás. – disse o poliglota, enquanto eu lia que o prato servido havia sido Escalope ao Málaga.
!
Ele não fazia idéia do que tinha pedido ou comido e vice-versa. Deve ter decorado o nome para impressionar alguém.
Lembrei de suas historinhas para conquistar as menininhas.