31 de janeiro de 2007

Vizinhos

Eles dividem a mesma rua, as casas estão frente à frente uma da outra, e mal se cumprimentam. São duas famílias comuns formadas por dois casais: de pais e de filhos. Vou deixar claro que não estamos falando de vizinhos paulistanos. Moram numa cidade de pequeno, quase médio, porte. Eles se conhecem, sabem os nomes de uns dos outros, menos o dos filhos – dos outros –, e nunca dividiram xícara de açúcar, um guarda-chuva na ladeira ou a Kombi que leva a despesa do mês do mercadinho até a casa do cliente. A divisão destes vizinhos, nem cosmopolitas nem caipiras, não se limita a uns poucos metros de asfalto e concreto. Ninguém diz, é uma distinção velada como a maioria dos preconceitos brasileiros, mas são famílias separadas por questões sociais: uma é pobre e se acha pobre e a outra é pobre e se acha rica.
Os filhos estudam na mesma escolinha municipal: o menino pobre rico está na terceira séria e sua irmã na primeira, ambos nas turmas A. Os pobres pobres seguem os mesmos anos do vizinhos, mas estão em letras diferentes: o menino, na E; a menina, na D. A mãe pobre rica nunca se vangloriou, mas se delicia com o som dos As de seus filhos. Mesmo que este mesmo som não chegue às carteirinhas de notas, não importa, tem um casalzinho A! O pai pobre pobre não está nem aí – é vigia das sete às dezessete em uma firma que faz o lacre de segurança para a tampa de copo de requeijão –, sai do serviço, passa em casa e vai para o boteco onde joga caxeta. Às vezes ganha um dinheirinho que esconde dentro de um Santo Antônio oco e sua mulher nem sonha. Todo dia, no café da manhã, jura em silêncio que vai gastar com um presente para a mulher; à noite, quando volta do bar, faz as contas para ver se consegue fugir de casa. O pai pobre rico trabalha na empresa que faz a tampa para o copo de requeijão (nota: os donos das vacas que dão o leite para se fazer o requeijão é que são os ricos ricos da cidade). Ele opera uma pequena prensa que molda e faz o furo onde é encaixado o lacre de segurança. Acorda às quatro e meia todos os dias para ver o Telecurso na tv, não anota nada. Ensaia no espelho o pedido de promoção, talvez para se tornar encarregado em algum departamento. Quando bate o cartão, tem saudade e vai correndo para a casa; só diminui um pouco o passo quando lembra que não tem novidade. A mãe pobre pobre acha que está anêmica, teve rubéola, sarampo, catapora e o médico pediu para ela voltar semana que vem.
O Fox é o cachorro pobre rico, Costela é o pobre pobre e cada um tem seu buraco na grade para escapar para a rua. Seis da manhã, o Costela faz xixi no portão pobre rico, afinal, chumbo trocado não dói, e o Fox deixa sua marca no portão pobre pobre às cinco e meia enquanto se prepara para perseguir o leiteiro. Às nove, os dois se divertem rolando no gramado da pracinha do quarteirão de baixo.

29 de janeiro de 2007

Confissão

Outro dia emendei o almoço com o lanche da tarde, o lanche da tarde com o jantar e aproveitei meu fim de tarde para conversar com o Cristo, o carioca. Vinte minutos de caminhada dentro da maior floresta urbana do mundo, a da Tijuca, nenhum quilo a menos, uma sede danada, e chego aos pés do grande irmão. Observador incansável e confidente de milhões, há muito tempo tem como principal ofício prestar-se como pano de fundo para as fotografias de turistas vermelhos com camisas floridas.
Cheguei, a noite caía, tinha ainda uns 20 minutos de sol, e já tinha feito meu primeiro questionamento ao filho querido do pai de todos nós: – Com quê direito a combinação sol mais calor mais ladeira acima mais nosso senhor dá para um cidadão cobrar quatro pilas por uma garrafinha de água? (sem esquecer de mencionar, também em pensamento, o brilhantismo e competência de nosso senhor quando inventou este refresco natural) – quando resolvi olhar para o pedaço de terra que ele tem olhado nos últimos setenta e seis anos. Está lá, de frente para ele, Botafogo, a praia e o bairro, as casas, algumas árvores, as ruas, os moradores passeando, o mar e os barquinhos. Sua visão periférica, que se não for a melhor, sem dúvida é umas das melhores já criadas, ainda alcança Flamengo e Urca. Esta facilidade de alcançar as extremidades destra e canhota confunde muitos seguidores daquela região que acreditaram em sua onisciência e até mesmo exageraram sobre sua onipresença. “Como ele pode ter visto isso?” ou “Saber daquilo só estando lá e ele não saiu dali”. Mas ele não tem nada a ver com estas conclusões. Os fiéis, com os corações cheios de amor e fé, com espírito de Saulo, sempre tenderam a aumentar suas, reais, super qualidades. Ah, ajuda ainda sua visão o fato dos artistas, seus criadores, não terem pintado as retinas, assim o deixaram a vontade para olhar de soslaio.
Invejei a paisagem. “Quando o homem lá de cima quis, caprichou mesmo.” Dei a volta no monumento, olhei para as costas da estátua, fui ao pára-peito e respirei toda aquela mata verde. O céu lançava uma luz amarela de fim de tarde que quase deixou o verde da mata azul.
– Como está a vista? – eu ouvi e respondi sem tirar os olhos daquela selva que me convidava.
– É viciante.
– Tenho uma saudade da vista que tu tens agora. Quando minha cabeça foi posta sobre meus ombros e pescoço, fui abençoado pelo descuido de um dos funcionários que fê-la girar por duas vezes. Tenho em minha memória os poucos segundos que pude apreciar a imagem que você vê agora. Enquanto isso, sob os olhos tenho a confirmação lenta e gradativa da escalada de cimento e asfalto que invadem a cidade como lavas de um vulcão que resolveu despertar.
– Mas a vista que você aprecia, com a luz do luar e as lâmpadas da cidade, preenchem todas as vinte quatro horas do dia. Além disso, é rica em movimentos e ações do homem que tornam a sua monótona existência de concreto, figas de ferro e pedra sabão mais emocionante, não? Claro, algumas vezes estas ações são daninhas à natureza e ao próprio ser humano que, quer queira quer não, faz parte desta mesma natureza. E me desculpe a intromissão, não quero ser petulante, mas sempre me disseram que você veio pra cá justamente para olhar nós.
– Permita-me fazer uma confissão que só faço porque sei que nada poderá fazer com esta informação. Se contar para alguém, nada adiantará e ser ridicularizado será o máximo que conquistará. Já que levamos uma conversa informal deixarei o arcaiquismo de lado. O céu também traz sua organização e a manutenção deste planeta é sim prioridade de nosso patrão. Não estou desde o começo, mas o que consta foi que este modelo foi feito e precisou ser mantido sem nenhuma influência superior por muito tempo. Os homens se destacaram por conta própria e de poucos detalhes físicos, um deles a mão que pega o que quer e faz decidir o que fazer com o que pegou. Conforme os dias foram passando foi decidido pelo alto escalão que deveríamos dar mais atenção para o homem naquele momento. Sei que não foi consenso, os responsáveis pelos reinos dos minérios, vegetais e até mesmo um grupo dissidente do reino animal foi contra. Mas o chefe estava convencido que todos poderiam sair ganhando com uma raça inteligente que administrasse as coisas por aqui. Convenceu todos com a promessa de que o trabalho de todo mundo, ou melhor, de todo corpo celeste, para usar um termo que você compreenda, diminuiria. O problema era conduzir este povo todo para uma linha de conduta aceitável. Se vocês pudessem imaginar a quantidade de bons pastores que não conseguiram firmar. E fez-se a religião! – e ele faz com a boca um barulho de trovão bem mal feito – Grupos que facilitariam um entendimento coletivo de nossas propostas. No começo todo muito tribal sem o alcance desejado. Dava certo em pequena escala. Jogada de mestre do superior, sabendo do instinto competitivo de vocês, mandou pastores com propostas iguais, apenas caminhos distintos. Eu entro aí.
– Entre tantos outros? Incluindo alguns que não tem sequer uma página destinada nos livros de história, incluindo os que falharam?
– É um jogo de sorte ou azar. Num determinado momento, com o fracasso de alguns dos meus antecessores, mudadam algumas regras. Veja você o Buda, ele foi e voltou algumas vezes para conseguir provar seu ponto de vista e conquistar as pessoas. Eu falei, falei, falei, entreguei-me ao sacrifício humano, contei com um grupo de seguidores que divulgaram minhas idéias e mesmo assim me arrepio com as distorções que fazem com o que preguei. Já tive inclusive que prestar contas para meus superiores sobre o que meus fiéis estão fazendo com os meus ensinamentos. E, que fique entre nós, não reconheço quase nada de mim na boca dos pastores de hoje.
– Estamos perdidos... – murmurei.
– Não é pra tanto, mas as preocupações dos titereiros mudaram. Hoje priorizamos as árvores, as plantas e os animais que mantém o equilíbrio biológico. Precisamos que o mundo sobreviva e para que não tenhamos uma eternidade tediosa. Outros membros do comitê celestial ganharam força e o departamento em que trabalho, o dos homens, perdeu poder. Como o fluxo de trabalho diminuiu gostaria de poder voltar os olhos para o mato mais uma vez. Mesmo porque, com os pés cravados no concreto e os braços imobilizados com o peito à mostra, o máximo que posso fazer é escutar suas súplicas e chorar a impossibilidade de ajudá-los, mesmo em suas mesquinharias.
– Vocês perderam o interesse por nós.
– Não há santo que agüente a mesma ladainha, os mesmos erros, as mesmas inquietudes, os mesmos maus-tratos por tanto tempo. Claro, vocês vão sofrer com esta mudança política, mas a ignorância e arrogância estarão aí para que vocês continuem teimando serem senhores de si e acreditem que o mundo existe para contemplar seus interesses. Isso nem se quiséssemos conseguiríamos mudar. A mudança é gradual.
– O que devo fazer?
– O que você foi projetado para fazer, respire, recicle o ar para as árvores.

23 de janeiro de 2007

Careta é demais, careta é pouco

Se você não é um deles, sabe que eles estão aí e em bem maior número do que se imagina. Virou, mexeu esbarramos num gênio desses. Outro dia fui surpreendido, distraí e já estava no papo. É assim mesmo, em via de regra, eles começam devagar apresentam apressadamente certa preocupação humanitária e, lentamente, entram de cabeça numa loucura que, com um pouco de imaginação, parece com a do Dr. Richard, no filme Alta Ansiedade do diretor Mel Brooks. O personagem, por medo de altura, alucina e trava. Não consegue se mexer ou sair do lugar. Nosso companheiro trava nas idéias, inseguranças, preconceitos e, principalmente, medos.
O bar estava cheio e o escolhido para ouvir a ladainha, mais uma vez, como de costume, como não poderia ser diferente, fui eu.
O dono do bar que fez o favor de apontar esta bazuca-destra para o meu lado.
– O Zé – que mais tarde eu daria o sobrenome de Ruela – é casado pode falar melhor que eu.
– Comigo funcionou assim mesmo: sempre fui tranqüilo, respeito todo mundo, só não agüento quando vem me chamar de careta. – vale uma nota. Não estávamos falando de caretice. O dono do bar está pra casar e chamou o sabe-tudo para um depoimento – Pode ver, passo aqui no bar pra uma só. Antes das sete e quinze já estou a caminho de casa com o pãozinho e tudo. Agora minha mulher deu para me chamar do que? Careta! É impressionante como mulher gosta de ofender a gente justamente com...
– Você é casado há muito tempo?
– Toda mulher sonha com isso, viu? – a gente pergunta uma coisa e ele responde outra. Este é o outro sinal clássico desta tribo... sem ofensas aos índios – A mulher que fala que não está mentindo. Hoje falam que é meio... falam que é coisa do passado, né? Antiquado... um pouco. Mas vou falar, eu gostei. Demorei até me decidir e acertei, me casaria de novo. Todo mundo lá, a maior festa depois. Eu fui parar na piscina de roupa e tudo, depois não sobrou um seco. Só meu sogro que não deixou ninguém encostar. Ele fez exército, durão. Já tinha mais de sessenta quando nasceu minha mulher. Admiro a disciplina do exército, viu? Tudo funciona certinho. Não vou defender a ditadura aqui, sempre falam que eles exageraram na época, mas todo mundo andava na linha antigamente! Vê se você via bandido fumando maconha na rua. Fora esta moda agora de intelectual defendendo bandido. Direitos humanos... e a gente, quem defende? Eu não espero a polícia me defender. Daí aparece artista, que só visita favela com segurança, em carro blindado, falando em para votar a favor do desarmamento. O povo sabe das coisas, não cai nessa conversinha. Bandido fica armado e a gente, faz o que, ataca com estilingue?!? Não, não. Lá em casa, se eu ouço barulho no quintal, pego minha vinte e dois, corro para a janela do banheiro.
– Vinte e dois é arma de mulher – comentário de um espirituoso bêbado que aguardava ser atendido no balcão.
– Ninguém te chamou nesta conversa. (...) Cara folgado. (...) Então, como eu estava falando, sempre quis ter um casal de filhos, né? Primeiro um menino, pra defender a irmã. Falei isso para minha mulher ela me chamou de careta! (...) Não vou dizer que aprovo: quando casamos, na igreja, nós dois de branco e, isso é só entre nós, não gosto de falar das particularidades da família, ela não era virgem. Eu sabia, ela tinha me contado. Mesmo não fiz nada antes de casar, preferi esperar. Coisa minha, sabe? Acho bonito esperar pela benção do padre. (...) Mesmo assim eu aceitei casar com ela. Parece que ela não enxerga essas coisas quando me chama de careta. Eu não tenho coragem de colocar filha no mundo sem ninguém para defender... Cheio de vagabundo e pilantra solto aí. Se alguém ofende a menina não sei o que faço. Agora, se querer uma família mais protegida é ser careta, então deixa ela me chamar de careta. Daqui a pouco tenho que ir. Eu nem sei se ela vai ser uma boa mãe. Antes dela começar com o grupo da igreja, começar ler a bíblia, confessou que era viciada em maconha no colegial, fumou umas três vezes e até matou aula para isso. Esse negócio, e pode até parecer esses médicos que não sabem de nada dizendo que não, estraga os genes. Fora isso ela é muito mole. Ela assiste a esses programas que só vão vagabundas na televisão. Outro dia tinha uma mãe com o filho bicha. Acredita que ela falou que ia tratar como normal se tiver um filho assim? Prefiro meu filho bandido, roubando, que se enroscando com outro homem. Ela é muito nova, né? Com 19 anos eu também tinha umas idéias atrapalhadas. Depois dos 40 a gente enxerga melhor as coisas... Ela vai aprender. Tenho que ir, senão ela fica preocupada, nunca chego depois das sete e meia. Opa! Está bem? Que cara é essa? Nem bebeu, que porre é esse?
– Nada não, nove horas, já vai?

11 de janeiro de 2007

Cantina Italiana

Um amigo de longe, longa data, de passagem, chama para almoçar. O tempo em que estamos distantes é suficiente para cada um querer, à sua maneira, impressionar o colega. Os problemas preferidos, ressaca, falta do que fazer, fila de banco, não seriam os assuntos. Reclamar da vida, lembrar o engarrafamento de manhã, mulher – porque se você tem mulher, reclama, se não tem, reclama também – nem pensar. Era hora de relembrar aquele projeto feito há dois anos atrás que o gerente não corrigiu uma vírgula. Não elogiou, não dividiu os méritos, não citou seu nome na cerimônia de premiação, é verdade. Mas, tratando-se deste gerente, o silêncio é o maior elogio. Lembrar e contar o maior feito da vida.
E como animal acuado, tímido e inseguro, parto para o ataque.
– Conheço uma cantina italiana super bacana.
Está vendo, já começou mal. “Super bacana” é do tempo em que eu estava na escola e, no recreio, comia um enroladinho e tomava Fanta Uva... É do tempo do recreio. Depois do tempo do recreio a gente passa pela hora do lanche e intervalo antes de chegar a um almoço da vida adulta.
– Ótimo, adoro a culinária italiana. Em Roma eu provei o melhor pizzicotti ai carciofi da minha vida!
De três uma: virou fresco, está se mostrando ou é veado. Mas a cara de interrogação é por não conseguir ao menos imaginar que raio vem neste prato. Na verdade se ele pedir para repetir o nome do prato não sai nada. Ele ainda não percebeu, ou não quis perceber, que o vale-coxinha que eu recebo mal permite passar na frente deste restaurante. Pior ainda. Mal sabe que, para mim, comer massa italiana e mastigar toalha suja com molho de tomate dá na mesma. Sou xucro, vai encarar?
O cardápio está na mão e o suor da testa já foi limpo com o guardanapo de pano. Enquanto isso o colega, todo pomposo, a minha frente já ajeitou o guardanapo sobre as pernas e tira, com as costas da mão, uma sujeira que, de tão pequena, eu só posso imaginar que exista em seu paletó.
O restaurante é típico suficiente para se dar ao luxo de não explicar neca de pitibiriba daqueles palavrões de uma lista que aqui se chama menu.
– Ó, eu acho que aquele prato você vai achar só em Roma mesmo. – e chamo o garçom – Que cerveja você tem? – de volta ao amigo – Toma uma Brahma?
– Não consigo comer e beber cerveja, acho que é a idade. – e pergunta ao garçom – Boa tarde, vocês servem Barbaresco Gaja 95?
No que este cara se transformou? Não é a mesma pessoa que jogava cimento na privada da escola e escrevia baixarias nos cadernos das meninas. Virou CEO de uma empresa qualquer e já começou com esses drinques extravagantes. Mais tarde descobri que era apenas um vinho. Mais tarde ainda, na hora da conta, vi que não era um vinho qualquer, muito pelo contrário.
Já estava prestes a perguntar se eles serviam macarrão com molho de tomate e carne quanto o engomadinho pediu permissão – ele perguntou assim mesmo, permite que eu faça o pedido? – para escolher nossa gororoba.
– Prepare um risotto alla milanese, com zafferano e o scaloppine alla pizzaiola, por favor. Vocês não colocam cebola, né? – E virou sorrindo para mim. – Pode ficar tranqüilo que não tem cebola.
Pediu licença e foi ao banheiro. Eu estava perplexo. Só me senti melhor quando pensei que qualquer amigo meu, do convívio atual, estaria também. Além do cara pedir em italiano um prato com três nomes, lembrar que eu não como cebola e tomar a dianteira da situação, ele percebeu que se deixasse eu pedir prato provavelmente ia passar maus bocados. Perguntei para o garçom do que se tratava o prato enquanto o bom vivan não voltava.
Sabe como são os pratos italianos, né? Uma fartura. Comi, bebi, a fome passou, o humor voltou. A única coisa que ficou na minha cabeça era o que de tudo que o garçom falou que viria no prato só reconhecia o contra filé. Mas tudo bem... Pô, o cara não tinha nada de arrogante. Subiu na vida porque era competente mesmo. Cheio de diplomas: mba pra cá, pós pra lá. O problema esta em mim, neste complexo de inferioridade infantil. Ele sempre foi um bom amigo, companheiro leal. Era engraçado vê-lo com as menininhas. Cada hora com uma história diferente para impressioná-las. Ai, ai, ele sempre foi especial mesmo.
Chega a conta e, em meio a risadas das histórias passadas, diz ele.
– O que achou do pedido?
– Está de parabéns. Nada como andar com um profundo conhecedor da culinária, porque não dizer, universal! – e caímos às gargalhadas.
As lembranças me rejuvenesceram, lembrei do décimo terceiro salário – não tenho filho para presentear no Natal – e meio embriagado peguei a conta e num golpe rápido passei o cartão de crédito ao garçom.
– Que é isso – tentou reagir o melhor amigo que já tive – permita-me pagar?
– Permita-me pagar?!? Pra que este fruqui-fruqui, fala direito comigo! – brinquei – A próxima é sua. Reencontrá-lo me valeu muito mais, ainda vai me pagar em conhecimento, dando aulas sobre o mundo – falei um pouco emocionado.
Como é mesmo o nome desse mundaréu de comida que a gente pediu? Chamei o garçom.
– Companheiro, deixa só eu anotar o nome deste prato, vou ficar decorando em casa para, se deus permitir, algum dia eu possa impressionar alguém com o este pedido. – murmurei.
– O que acabamos de comer foi um risotto alla milanese, com zafferano e o scaloppine alla pizzaiola muito bem feito, aliás. – disse o poliglota, enquanto eu lia que o prato servido havia sido Escalope ao Málaga.
!
Ele não fazia idéia do que tinha pedido ou comido e vice-versa. Deve ter decorado o nome para impressionar alguém.
Lembrei de suas historinhas para conquistar as menininhas.