23 de abril de 2008

São Francisco, Estados Unidos, 13 de janeiro de 2003

Esta é a sexta carta entre dois irmãos chineses: um (eu - Tài Tai Li) de São Francisco (EUA), outro (Lao Peng Li) que foi à China devido a morte do pai. Acompanhe as cartas anteriores: primeira, de Aiko Koan, avisando a morte do pai; segunda, de Lao Peng Li, assim que chegou na China; terceira, de Tài Tai; quarta e quinta, Lao Peng.


São Francisco, Estados Unidos, 13 de janeiro de 2003


Como os fatos que sucedem algumas de nossas iniciativas podem ser cruéis. Você, por exemplo, escreve – sem ao menos saber se voltaremos a nos ver – com a mesma petulância, e aplicando a mesma força, com a qual me educou e manteve sob seu domínio durante a vida. A diferença desta vez, irmão, é que você está longe. Não que a distância me tire o respeito por você; mas agora, que não o tenho por perto para proteger-me, não posso tê-lo para temer. Sua ida para a China me colocou de frente com a vida que eu sempre evitei encarar amparado em sua proteção. Espero não causar má impressão: é, para mim, a referência de segurança, equilibro e razão – mas quando está por perto! Dar ouvidos às suas implicâncias, seria como prostituta pagar aposentadoria a cafetão; se permite a analogia.

Voltando ao início da carta. Por descuido, muitas vezes começamos processos que desencadeiam em situações que até então pareciam improváveis. Meu irmão, entre os dias que sucederam – entre a penúltima e a última carta que me enviou – aconteceram mais coisas que o seu arrependimento pelas duras palavras que me dedicou. Como pode imaginar, o entusiasmo por receber uma carta sua e a decepção pelo conteúdo de suas palavras muito me se sensibilizaram. Como pôde questionar meus princípios, ou bagagem que carrego da minha cultura e de meus antepassados? Como ousa projetar sobre mim, as comemorações dos ritos da passagem de ano ocidental se – e sabe bem disso - pouco ligo para o calendário que eles adotam. E se a curiosidade persiste a tirar-lhe o sono e queira saber como comemorarei o a entrada do ano-chinês 4637, no início de fevereiro, cuido para acalmá-lo: respeitarei os quinze dias de nossa cultura; não comerei carne no primeiro; rezarei por nosso pai, mãe, irmão e todos nossos antepassados no segundo dia; ficarei em casa, enclausurado, no quinto; lamentarei a distância de você - meu único parente vivo - no oitavo dia; e acompanharei a procissão das crianças com as velas e lamparinas para iluminar o ano do carneiro que se inicia no décimo quinto dia. Mas como dizia, três dias foi tempo demais entre suas ofensas e os pedidos de desculpas. Embora estivesse entusiasmado pela postagem, só a abri após fechar a lojinha – precisava do silêncio para absorver melhor suas palavras; nisso, infelizmente, fui feliz. Não preciso dizer que o golpe foi duro demais. Anestesiado, saí pela rua em direção de casa... passei, como que flutuando, por sua entrada; fui dar-me no balcão da boate das putas. Não queria conversa, nem programa. Queria beber onde estivesse escuro o suficiente para me sentir invisível: mesmo sabendo – e atestando mais tarde – que não era. O movimento da clientela, que se amontoava conforme a noite corria, me empurrou para uma mesinha redonda no fundo da casa. Eu estava para ir embora quando Tung chegou. Ela se sentou sem ao menos pedir licença; talvez estivesse um pouco bêbada, talvez apenas exausta. Pediu ao garçom duas doses de vodca, disse que era “por conta da casa”. Ficamos em silêncio até as bebidas chegarem. Quando o garçom as trouxe, Tung – com o copo em mãos, em riste – fixou os olhos em mim como te visse, ou quisesse ver. Pode ser que eu tenha olhado para ela com este mesmo anseio, vê-lo. Assim, os anseios de ambos – eu e ela –, formaram um espelho de teu rosto na mesa daquele cabaré. Viramos nossos copos. Meu irmão, não pude controlar a tristeza; as lágrimas tomaram conta quando ela me perguntou por você. “Como ele está?”, só isso. Diante do frangalho que me tornei com a pergunta, me debulhando em lágrimas, aquela mulher foi a pessoa mais gentil e generosa de toda a minha vida. Com a cabeça entre seus seios chorei como nunca antes. Comecei por chorar de raiva – em homenagem a carta que você havia escrito –, depois aproveitei o colo para chorar nosso pai, nossa mãe e irmão, e, por fim, (não se percebi ou) passei a chorar por mim mesmo. Ela ofereceu sua cama para que eu dormisse, rejeitei; no entanto, permiti me acompanhar até nosso apartamento. Eu ainda enxugava os olhos com as mangas, quando chegamos ao prédio. Foi com um beijo, de mãe que se despede do filho, que nos despedimos selando nossos lábios. Senti aliviado quando entrei em casa. No entanto, fervi durante toda a madrugada dando outra conotação àquele beijo. Durante os sonhos daquela mesma noite, éramos homem e mulher, eu e Tung, apenas. Nos dias seguintes, quarta – dia 8 – e quinta, não nos vimos. Apareceu, coincidentemente, com o carteiro que trouxe sua segunda carta, sexta-feira. Num almoço rápido, onde mal tivemos tempo para conversar, decidimos que ela tiraria a noite de folga na boate e iríamos nos encontrar para conversar. Sua carta, por sua vez, dormiu lacrada de sexta para sábado na loja: pode ser por medo de você e suas arrogantes insinuações e insultos; pode ser por medo de despertar uma consciência que eu não queria ter no desfecho daquele meu dia. Conto, até aqui, com detalhes, meu irmão, para diminuir as margens à sua imaginação pessimista, daninha. O que descobrimos, eu e Tung, na noite de sexta, é que somos carentes, de maneiras de distintas, de compaixão; de maneiras distintas, por amarmos você. Descobrimos, ou desconfiamos, que este fim-de-semana, que acabamos passando juntos, foi pouco; deu vontade de descobrir mais. Pensando bem, acho que faz mais sentido dizer que a primeira (das duas últimas cartas) carta chegou cedo demais, não foi a segunda que chegou muito tarde.

Após questionar minha origem, meu comportamento, meu sangue, e o sobrenome que carrego, não é difícil entender que tenha deixado a sua carta seguinte esfriar um pouco sobre o criado-mudo do escritório na loja. Esbocei, inclusive, um sorriso ao passar os olhos nas primeiras linhas – em seu pedido de desculpas. Mas não são desculpas de arrependimento; são de ocasião. Haja vista, como continua “Reafirmo que, do que disse, muito é verdade. Acredito, porém, que nossa união nesse momento de conturbação é mais importante que as prateleiras da loja ou seu comportamento ocidental”. Caso eu aceite, sem antes questionar, seu pedido de desculpa, terei que aceitar que envergonho nossa família e antepassados. E isso, em minha opinião, os últimos acontecimentos tratam de contrariar. Lamento, após tantos anos, discordar de você: acho que neste período devemos deixar nossa relação em ordem, mas isso não se dá passando por cima de todas as diferenças que nos cercam. A única coisa de bom que resta de sua última mensagem é que ela carrega notícias suas; não começa e termina em críticas gratuitas.

Sei que será difícil digerir todas as informações que esta carta carrega. Espero que saiba que nada faço para te prejudicar. Sinto-me liberto e talvez ainda não tenha aprendido a agir com tamanha liberdade. Ao mesmo tempo, não sinto te trair ao me aproximar de Tung, ou realizar mudanças na administração da loja. A propósito, ainda não fechei o caixa deste mês, mas, ao que tudo indica, ela dobrará sua receita este mês.

Desejo, do fundo do coração, que encontre a paz necessária para realizar a nobre empreitada que o levou de volta à China.

Fico contente que após todos os anos de distância você e Aiko estejam se entendendo. Espero que o encontro tenha sido agradável. Caso a reencontre outra vez, estenda meus cumprimentos, assim como estenderei os seus a Tung.

Rezo para que esteja iluminado para responder esta mensagem; rezo por você.



Tài Tai Li.