14 de outubro de 2011

Jarbas não quer morrer



Desperdiçando mais uma chance de garantir alguns tostões, entregando as pálpebras à gravidade do sono e o espírito à sua liberdade flutuante, enquanto dorme numa cadeira universitária, na sala de espera de uma empresa de telemarketing, Jarbas não escuta o chamado para o início da dinâmica entrevista em grupo que será na sala ao lado. Os outros poucos candidatos que também aguardam, acordados-sadios, levantam-se e vão. Jarbas dorme.
Dorme sem querer acordar; dorme sem querer dormir; sonha sem saber. Jarbas não pensa em morrer, ou que morre a cada intermitência de sua consciência. Às vezes, sonha sem saber, ou querer. Entorpecido a qualquer hora, como nesta sala de espera, enquanto faz jus ao nome da sala, entregando-se com esperança de ouvir o seu chamado.
Voltando para casa, andando na calçada, olhando à calçada, para as pessoas, para os sapatos ora desamarrados, não sabe dizer o que quer: olha tudo sem foco.  Mas, sem saber, quer o cadarço amarrado, quer o sapato calçado, quer uma chance; não desperta ou pensa em ter foco. Pensa na vontade, pensa na carteira. Anda e atravessa. Atravessa sem vontade.
Jarbas às vezes pensa em morrer. Não quer casar, não quer construir, não quer garantir, não quer filhos ou lar que valha. O carro não quer vender nem pode abastecer.
Mas mesmo sem pensar ou ambicionar, sabe aonde o leva os calçados desamarrados. Não ao lindo futuro. Não ao personagem que inspire ou sirva de exemplo em comerciais de margarina; tão pouco perfil de alvo da próxima campanha publicitária do novo sedan da Toyota. Vai para onde recebe a recompensa imediata – ao amigo, a qualquer mulher, ao botequim. Nessas horas, com seus pares, encontra-se consigo mesmo. Enxerga, argumenta, defende, se expõe; deixa de se sentir ficção.
Então, entusiasmado, eufórico, inventa o seu próprio futuro e suas únicas alternativas para refazer o seu destino. Inventa o aplicativo que oferece o playlist das rádios; o pão de que já vem em três fatias; a rede social que aproxima as pessoas que estão próximas umas das outras; um par de luvas-retrovisor, com um pequeno espelho flexível em cada palma; um quiosque numa praia poluída que se chama Impróprio para o Banho, a coleira-gps para ninguém mais perder seu animal de estimação ou seu companheiro.
E Jarbas não quer morrer.
Quando chega ao ápice, goza o pleno prazer e dorme. E goza os melhores sonhos. Por vezes têm super poderes: mediunidade, invisibilidade, pode voar, lê pensamentos, anima objetos. Mesmo quando morre, acorda com o tórax às vésperas da quarta-feira de cinzas, mas com a lua decrescente estampada nos lábios de seu rosto. É a sua vivência; a maior experiência que carrega.
Ao acordar volta ao seu estado letárgico e tudo volta a ser invenção em seus delírios; nada se materializa. E embora a vida lhe pareça um tanto inadequada, Jarbas não quer morrer. Míope, volta a procurar em sua ilha o espaço para a sua realização. A morte lhe chega como matéria produzida. Solução prática, mas pobre, comum demais – até um pouco brega. Prefere deixá-la apenas como substantivo para a sobrevivência de suas religiões.