16 de julho de 2013

Em julho, Londres bandida nos visitava

Poucos períodos talvez sejam tão emblemáticos e representem melhor o meu caráter do que as férias de julho; ou férias de inverno no hemisfério sul deste planeta, próximo ao trópico de Capricórnio, 23° 41′ 38″ S, 46° 33′ 54″ W, onde fui criado e vivo.
Passado o entusiasmo inicial do primeiro dia de aula, em fevereiro, quando a saudade dos amigos nos fazia esquecer a maratona acadêmica que começava, logo vislumbrava no calendário o início de julho. Com os ouvidos embaçados à palestra inicial da diretora da escola, aquele sétimo quadrado, quadriculado, com números de 1 a 31, induzia meu pensamento à cama. Ao acordar sozinho na casa em silêncio, apenas sob uma leve névoa de inveja daqueles que, por não serem mais estudantes, logo cedo haviam virado fumaça.
No entanto, a mesma aspiração que me carregava ao descanso prescrito das manhãs, abduzia à minha razão um ponto fundamental: fazia frio. Bastante frio. E, com os amigos todos entocados, dissipar o entusiasmo vadio e energia de um menino de onze anos não era exercício trivial. Por isso, na primeira manhã de férias, vestia as meias de lã confeccionadas pela minha mãe e corria para a folhinha admirar e convocar o dia 1º de dezembro: férias de verão, de três meses; de rua com hidrante aberto esguichando água na molecada. Não aquela moeda gelada de um mês que o somítico calendário escolar oferecia.
Em julho o dia faz-se claro tarde, escurece muito cedo e a Serra do Mar, principalmente naqueles anos, soprava uma névoa de cegar todos os fins de tarde. E fazia frio; bastante frio. Mesmo que algumas festas juninas que não cabiam em seu mês invadissem o mês seguinte, geralmente, elas vinham acompanhadas das recuperações que eu e meus amigos trazíamos do semestre letivo. No entanto, mesmo com a resistência gelada, nunca faltou quórum para as brincadeiras de rua que terminavam com a fumaça, do cigarro imaginário, que nossos pulmões quentes ofegavam através de nossas bocas.
Do frio e do sereno, o que falava a nós era um não-sei-quê de Sherlock Holmes ou Scotland Yard no encalço de Jack, o Estripador. E, inconscientemente, nossas brincadeiras eram pautadas e se adaptavam a este cenário de romance policial.
A regra, ao contrário daqueles dias, sempre foi muito clara e não variava entre nenhuma mãe: escureceu tem que estar dentro de casa. O que variava era o castigo por seu descumprimento. Em geral, aos delinqüentes, sobravam umas palmadas e uma bela fração das férias trancado dentro de casa. Embora deva cometer justiça aqui: nunca levei as tais palmadas, tão pouco fiquei de castigo, mesmo desafiando a ordem regularmente. Mas sofria por tabela às punições aplicadas sobre meus amigos. Incontáveis foram as longas e cinzas tardes que passei conversando com eles pelo vão da porta ou da janela; eles presos dentro de casa e eu à necessidade de suas companhias.
E geralmente eram nesses dias que combinávamos o que faríamos durante o intervalo entre o castigo vigente e o próximo. Mulheres ainda não eram alvos de nossa atenção – eufemismo à parte. Nossas referências de pessoas respeitadas naquele tempo eram os garotos mais velhos que aterrorizam o bairro: ladrõezinhos de padaria com alvará do ensino formal. Juntando isso àquele cenário londrino, ou de Gothan City de Batman ausente, não era de se surpreender que nessas reuniões surgissem idéias de contravenções estapafúrdias.
Com os dias anoitecendo por volta das cinco da tarde e os pais, em sua maioria, dependendo do transporte público para voltarem do trabalho, tínhamos pelo menos duas horas para aproveitar a anárquica escuridão e o anonimato que ela oferecia. Então, assim que a névoa da tarde encerrava a guerra de pipas no céu, nossa diversão era invadir escolas, construções, bibliotecas e todo e qualquer lugar onde houvesse pelo menos um vigia.
Nosso lugar de incursão predileto era o Elis Regina. Um espaço grande, sem grades nos jardins e estacionamento que o cercavam, com biblioteca, teatro, e pelo menos três vigias por turno. Antes de invadir, identificávamos onde cada guarda fazia o sua ronda, traçávamos metas e a rota de nossa fuga. Não havia plano de vandalismo ou qualquer apropriação indébita. O objetivo era sempre o mesmo: invadir, ser descoberto e fugir sob o sons dos apitos dos guardas. Completamente alienados às emoções que os livros da biblioteca poderiam oferecer, ou as apresentações de teatro, íamos para o espaço cultural em busca da adrenalina mais básica -- das perseguições.  
Se os anos trouxeram algum bom senso que me afastou da delinqüência, sigo retratado naquele menino dos primeiros dias de aula. Anelando o alívio e a satisfação mais próxima, porém míope para o seu contexto amplo, acabo por ter que fantasiar sobre as imperfeições do objetivo alcançado e traço planos e projetos onde possa encontrar graça e me divertir sob a névoa onde existo.