18 de novembro de 2016

2016

Decorrente de uma crise econômica ardilosamente conduzida para uma crise política, e ao consequente desmonte do sistema democrático em nível federal ao empoderar um governo que não passou pelo crivo do voto, neste ano, 2016, senti a obrigação de me posicionar publicamente como ser político. E venho reforçar minha posição: sou de esquerda, sou democrático – mesmo que a esquerda e a democracia ainda estejam em processo de maturação; obras inacabadas, imperfeitas, mas em progresso.

Nos últimos meses estive nas ruas, em manifestações pró-democracia, e nas redes sociais defendendo as minhas convicções e posições sobre o atual cenário que o Brasil vive. E, ação e reação, levando algumas cacetadas por isso. (Cacetadas que, em sentido literal, vieram da PM de São Paulo, e, em sentido figurado, de nobres seguidores do meu Facebook.) Mesmo que exista campo para o diálogo entre aqueles que assumidamente são de direita e aqueles de esquerda, o que tenho visto em geral são manifestações cheias de preconceitos e de pequenas (ou falsas... ou rasas) moralidades.

No entanto, o que tem ficado cada vez mais evidente nas discussões que participo ou acompanho é que o nosso maior problema não está na dicotomia de viés político, mas na incompetência semântica dos fascistas. Termos como esquerda e direita, comunismo e capitalismo, são apenas etiquetas, ou, no máximo, conceitos muito nebulosos especialmente na mente daqueles que são os mais chiliquentos de plantão.

Tentarei ser o mais claro possível. Quando afirmo ser de esquerda, atribuo ao título a busca por uma sociedade com “olhar mais humano, menos elitista, menos classista”, como bem definiu Wagner Moura em entrevista recente. Este é o sentido amplo onde considero habitar o pensamento de esquerda. Esta posição não traz a solução de todos os males, mas tem me direcionado num caminho que visa alicerçar equilíbrio e justiça social.

Por esta justiça e equilíbrio, procuro exercitar (quase que em nível espiritual) um olhar respeitoso a quem traz convicções contrárias às quais acredito e defendo. Como num mantra, inspiro e expiro, “democraticamente, todos têm o direito a opinião que julgar mais correta, coerente e melhor para a sociedade”.

“Sou a favor que privatize tudo (...) da meritocracia (...) que família tem um homem e uma mulher, senão é antinatural (...) criança?!?, não foi criança para roubar, tem que pagar igual adulto (...) cadeira elétrica para um filha da puta que fez isso (...) intervenção militar”... ou ainda, quer  tirar selfie com a Polícia Militar em manifestação verde e amarela? ótimo, vai nessa! Discordo completamente e do fundo do meu coração de tudo isso (e de muito mais do que a direita conservadora prega e não tive coragem de escrever)! Daí, eu volto lá e tento inspirar e expirar, “democraticamente, todos têm o direito a opinião que julgar mais correta, coerente e melhor para a sociedade”.

Respeito a opinião, discordo e, se houver campo saudável, discuto os porquês.

E, às vezes, espano. Normal, ainda estou praticando o mantra – “aperfeiçoando o imperfeito”. Outro dia espanei com um cidadão que, democraticamente, cantava Para não dizer que não falei das flores em comemoração à vitória de um prefeito assumidamente de direita. Noutro com fulano (ex-ceo de uma multinacional, diga-se de passagem) que escolheu meticulosamente a palavra “revolução” para referir-se ao golpe militar de 64. Paciência tem limite.

Mas não quero discutir o sexo dos anjos. São incontáveis algoritmos que formam uma pessoa mais, ou menos, sensível às diversas realidades de uma sociedade tão complexa. De qualquer forma, como disse, tento, no mínimo, respeitar o direito a opiniões de cada um.

Falta (ou excesso) de sensibilidade é difícil de combater, mas a cegueira estúpida e seletiva, especialmente numa era em que temos acesso a informações, nós podemos tentar.

Basta olhar desarmado e seguir a narração.

Senadores (a serviço do golpe) após a votação do impedimento da presidenta Dilma, em entrevista à TV Senado, afirmaram que votaram por sua cassação não pelo crime de responsabilidade fiscal (que seria uma justificativa legal para tirá-la do cargo), mas para reestabelecer a economia. Acir Gurgacz (PDT-RO), disse textualmente: “Nós temos a convicção de que não houve crime de responsabilidade fiscal, mas não há governabilidade. E acreditamos que a volta da presidente Dilma complicaria ainda mais o nosso cenário econômico”.

Então, se é pelo bem geral da nação, guilhotina na presidenta. Vem o governo Temer e sua corja botar ordem na casa, certo? Mas o que este governo ilegítimo tinha feito dois meses antes dos senadores irem votar pelo impeachment? Aprovado um megapacote de reajuste para o funcionalismo federal – Executivo, Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público (coincidência ou não, articuladores do golpe) –, que, estima-se, terá impacto de pelo menos R$ 58 bilhões aos cofres públicos até 2019.

O governo que assumiu arrotando a necessidade de austeridade nas finanças públicas, ainda como interino aprovou, às pressas, na calada da noite, um reajuste a todos que estavam (e estariam) envolvidos no processo de impeachment que onerou nossos cofres em quase R$ 60 bilhões!

Para você ter uma ideia, em 2015, o governo federal desembolsou um pouco  menos de R$ 27 bilhões no programa social que tirou 40 milhões de pessoas da miséria no Brasil, o Bolsa Família.  O reajuste ao funcionalismo público (que beneficiará quantos?... talvez poucos milhares de pessoas) custa por ano mais do que o programa que oferece a possibilidade de comer a 40 milhões de pessoas – a população da Argentina, mais ou menos. Não fosse o ridículo que se tornou se manifestar batendo panela (em sacada gourmet), eu bateria panela contra esse absurdo.

Ainda sobre o compromisso com os gastos públicos que, segundo o discurso demagogo dos golpistas, levou esse bloco liderado pelo Temer ao poder.

O atual governo parece escolher a dedo onde é necessário fazer cortes e onde é necessário investir. A Folha/Uol, em quatro meses Temer, teve um repasse publicitário oriundo do governo federal 78% maior que no mesmo período do ano anterior. As organizações Globo, um aumento de 24%. A lista que segue com aumentos para Estadão, grupo Abril (da imoral revista Veja), SBT e por aí vai. Grupos de comunicação com uma única similaridade: todos atuaram juntos para que alguns (muitos) vissem sentido em vestir a camisa da CBF e ir para frente da Fiesp pedir a queda de um governo que, embora ruim, era legítimo.

A Globo em seu Jornal Nacional que ficou diariamente, semana após semana, só falando do tal tríplex no Guarujá e depois sítio em Atibaia, não deu 30 segundos para a denúncia dos R$ 23 milhões que José Serra teria recebido em caixa dois. Isso, honestamente, pode ser considerado jornalismo imparcial? Mas pelos R$ 15,8 milhões repassados com publicidade só pelo governo Temer entre maio e agosto deste ano, pode parecer fazer sentido ela tomar partido... ou seria pagamento pelos serviços prestados... Não quero especular muito.

(Há quem diga que os meios de comunicação de massa não tem mais tanto poder depois da internet. Sempre que ouço isso não consigo deixar de lembrar do provérbio que diz que “o maior truque já realizado pelo diabo foi convencer o mundo de que ele não existe”. Depois do resultado de nossas eleições para as prefeituras, da eleição de Trump (com o apoio da Fox, que é uma espécie de Globo dos EUA), dessa ascensão da direita, não duvido mais que as grandes mídias ainda exercem muito poder sobre nós.).

Mas voltando.

Enquanto isso, em nome da austeridade (sempre ela), precisamos aceitar a PEC 241 (hoje, no senado, 55), que estagnará os investimentos mais sensíveis à população, como o investimento na educação pública, por 20 anos! Ninguém sintetizou melhor as medidas deste governo nojento do que o deputado golpista Nelson Marquezelli (PTB/SP): “Meus filhos vão pagar universidade. Quem não tem dinheiro, não faz faculdade”.

Parabéns, golpistas, conseguiram retomar a soberania de nossa elite branca.

Outro exemplo.

Enquanto o procurador do Ministério Público Federal está com o seu power point e a pirotecnia midiática acusando o ex-presidente Lula de corrupção sem ter conseguido levantar uma (NENHUMA) prova, o ex-senador, hoje Ministro de Relações Exteriores, José Serra, atuava – sem que o William Bonner te contasse, telespectador da Globo – como um verdadeiro lobista das multinacionais do petróleo no congresso. A movimentação descarada começou no primeiro dia de afastamento da presidenta Dilma, enquanto o noticiário se preocupava em nos bitolar exclusivamente com o processo de impeachment. O objetivo do Serra é vender uma das maiores riquezas de nosso país. Não é só vender. É vender sem que as pessoas se deem conta do que estão vendendo. Sem diálogo com a sociedade. Sem expor os prós e os contras. Daí, vem aquela resposta tão banal quanto rasa: “mas com a roubalheira que estava na Petrobrás, melhor vender mesmo”. Companheiro, cuidado para não parecer o sujeito da anedota. Aquele que encontra a esposa com um amante no sofá de sua sala e, para que isso não volte a acontecer, joga fora o sofá.

Investigue e puna quem quer que tenha que ser punido. Reforço: investigue! Coloque a Polícia Federal, Ministério Público, Corregedoria – órgãos que eram uma piada até o início da década passada – para investigar e punir os corruptos. Enfim, ratos sempre podem aparecer. Contra isso, só nos resta manter os gatos soltos.  Agora, não use corrupção como justificativa para entregar a Petrobrás, que atrelava o seu lucro ao investimento direto em educação e saúde, aos interesses desumanos das multinacionais.

O maior perigo de ter um governo sem a legitimidade do voto popular é que ele não se sente com a obrigação de representar de ninguém. Quando alguns (muitos) foram às ruas para pedir a queda de um governo sem que o mesmo tivesse cometido qualquer crime que justificasse sua queda, sem perceber, eles estavam dando poder a um grupo que não mexe uma palha em nome dos interesses da sociedade.

Temos os lobos cuidando dos cordeiros. Um ministro da Educação ligado às instituições privadas de ensino; o da Saúde ligado aos planos de saúde; o ministro de Relações Exteriores ligado às multinacionais do petróleo. Isso não escandaliza você? Caminhamos para melhorar o nosso país ou torná-lo mais descente?

Governo ruim, como foi o caso da Dilma, não se sustenta numa nova eleição. E este deveria ter sido o seu caminho natural. Agora, com esse governo ilegítimo que não tem a menor pretensão de ser reeleito, demos a esses nojentos dois anos para fazerem tudo o que bem entenderem em benefícios próprios e de seus aliados e “parças”.

E, a propósito, feliz 2017. 

10 de novembro de 2016

Voltar a enxergar

"Caminhos para combater a intolerância religiosa". Este foi o tema proposto para a redação do Enem 2016. Compartilho aqui o rascunho de minha dissertação, que, respeitou dois limites: as 30 linhas máximas permitidas e, obviamente, ausência das engradecedoras consultas ao oráculo, Google... 
Rascunho, rascunho é. Mas a ideia geral do que foi o texto final está aí.



 transcrição...

Voltar a enxergar

Serve para todos: a compreensão míope, a lógica obscura, o olhar cerrado são parentes muito próximos de nossos piores males. Por vezes, quando se vê, são apenas as diferenças, não as semelhanças; são os ritos e roupas, não os votos. Análises e juízos que, aquém de suas fragilidades, servem de alicerces à construção do raciocínio preconceituoso.

Para alguns, nada parece unir. Mesmo tendo sido São Gabriel - aquele do catolicismo - quem "soprou" o Alcorão a Maomé. Ou que a Bíblia tenha como ponto de partida o principal livro do judaísmo. Ou que as principais datas e ritos da Igreja Católica venham de antigas religiões pagãs. Nada disso nos une.

A compreensão é míope. A lógica não podemos cobrar. Mas o olhar poderia ajudar.

E se um evangélico (ou vice e versa) pudesse enxergar num espírita ou umbandista as mesmas aflições, buscas e devoções que vê em seu templo? Ou que um ateu vislumbrasse que a sua busca pela verdade é tão vã quanto a de qualquer crente? Ou, ainda mais simples, se cada homem ou mulher seguissem os ensinamentos de seus líderes espirituais?

Todos os caminhos podem levar ao nirvana, diria o budista. Exigi-se apenas ao peregrino que busque a iluminação. Durante este caminho, o olhar atento e desarmado é a chave para despertar a empatia por nossos pares. E será através dela, da empatia, que poderemos "tocar" a tolerância plena.

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PS: não foi São Gabriel quem "soprou" o Alcorão ao Maomé, foi o anjo Gabriel.. confundi o "título"...rs

5 de fevereiro de 2016

O elefante que se apaixonou por um aspirador de pó

Não podemos dizer que estivesse na vida adulta há muito tempo, mas não era, absolutamente, jovem. Fazia algum tempo que caminhava sem a necessidade das orientações dos pais e, embora tivesse em seu pai o símbolo máximo de intelectualidade – reconhecido por sua memória acima da média de toda a manada –, se sentia muito à vontade para decidir quais melhores rotas e acomodações; escolher o melhor verde para se alimentar; saber qual parte do rio oferecia a água que mais o agradava. Carregava uma experiência razoável para uma boa vida e um futuro tranqüilo; mesmo assim, não era desgarrado. Nem se quisesse poderia ser: como todos os seus companheiros de trombas, vivia na propriedade de um grande pecuarista numa fazenda continental da África do Sul.
Quando analisamos um acontecimento por completo – com informações do princípio, meio e, principalmente, fim –, é praxe nos apropriarmos dos resultados de cada etapa para julgar qualquer suspiro de quem realizou a ação anterior. Nagu era um elefante como outro qualquer de sua idade. Carregava ainda nos olhos a obstinação por realizações que pudessem surpreender seus amigos e parentes, embora começasse a perder aquela inquietude por resultados imediatos. Era simples, sério, calmo e, acima de tudo, discreto. Um modelo como tantos outros ao seu redor. Ninguém que o conheceu, ou mesmo que tenha dividido intimamente sua companhia, seria honesto se viesse hoje apontar qualquer característica de Nagu como sinal para a desordem para o que sucedeu com o seu probo-coração.
Talvez movido por uma brisa de tédio – monotonia comum para bicho que vive resguardado pela segurança de território demarcado e vigiado –, resolveu que sua caminhada naquele fim de madrugada, começo de manhã, o levaria ao pomar próximo a sede da fazenda. Não era comum aquele passeio; tanto no que diz respeito ao horário, quanto à área a ser visitada. De fato, quando os donos da propriedade queriam ver seus elefantes, precisavam chamar um capataz com jipe e viajar, muitas vezes, por até meia-hora para encontrá-los. E, se fizessem questão que eles estivessem acordados e bem-dispostos, preferiam o fim de tarde.
Poderia beliscar algumas jabuticabas do pomar, mas esse não era o motivo. Para Nagu, as frutas que por lá brotavam não faziam sua retumbante tromba saracotear. Passeava por passear, já que os olhos teimaram em deixá-lo acordado mais cedo. Só.
Demorou muito para chegar. O céu clareou ao compasso lento e pesado de Nagu e chegou ao azul definitivo – chamo de definitivo para intensificar a claridade da manhã; sem ser apocalíptico ou desrespeitoso às matizes azuis do céu – assim que ele parou para descansar em frente à casa. Ouvia o barulho da vassoura e, de onde vinha o barulho, uma porta da casa espirrava o pó.
“Sede”. Estava distante do rio. Havia se esquecido do que implicava se afastar do rio, elementar. Um espasmo, um choque, pensou que havia “se esquecido”! Pensou que havia esquecido! Falha na memória, pontada aguda no orgulho proboscídeo. Evidentemente, uns lembram mais que outros (ou pelo menos se vangloriam mais que outros), mas poucos, ou nenhum, admitem o esquecimento – a pior de suas angústias. Com as orelhas e a tromba – arqueada entre suas patas dianteiras – arrastando no chão, Nagu, caminhou até um enorme pneu de trator que estava apoiado num cercado e guardava um pouco de água da chuva. Deprimido, Nagu mal encontrava forças para sugar o líquido.
Estava distraído entre o gosto amargo da água e o pneumático esquecimento quando escutou um som inédito: chiado, com acelerações intercaladas, às vezes com o som abafado, às vezes mais estridente; resultado da luta entre ar e poeira, poeira e tapete. Nagu esqueceu – e desta vez fez bem – a tristeza em detrimento à curiosidade. Olhava através da circunferência de seu reservatório de roda gasta de trator para a casa, que amplificava daquele som.
Conforme o tempo passava, o som, que trazia a união rara entre monotonia e imprevisibilidade, ia aumentando. A porta principal da casa se abriu e surgiu uma jovem negra enrolada em panos, vermelho e branco, e carregava por uma alça um pequeno instrumento de onde vinha o som. A euforia causou em Nagu seu terceiro esquecimento da manhã, desta vez com conseqüências. Completamente absorto ao chiliquento aparato, esqueceu-se que deixara sua tromba dentro da roda do trator. Quando o corpo lembrou-se a necessidade de ar, quis sugar com força todo ar ao seu redor, mas sua tromba estava sob a água suja que o pneu guardou da chuva.
 (aumente o volume)
-- *!!*!!!!*!!!!!*!!!!!!*!!!!!!!!*!!!!!!!!!!*!!!!. – Nagu acabara de lançar o seu mais forte bramido.
O susto atirou a jovem negra ao chão que, no solavanco, fez com que o cabo elétrico do aspirador fugisse da tomada. Estavam todos em silencio; os pássaros, que antes faziam sua algazarra, também decidiram pelo silêncio. Nagu tratou de se esconder numa árvore próxima, que o tronco, de tão fino, mal escondia sua tromba. Alguns segundos passaram parados, como se o espirro do elefante tivesse feito o tempo parar por ali: nem sinal da governanta negra, pó em paz no carpete e nenhum pio os pássaros ousavam. De onde estava, olhava o aspirador deitado em silêncio no chão com sua mangueira apontada para ele. Ficou por volta de um minuto registrando cada detalhe do aspirador de pó. Até o capataz chegar de jipe com a espingarda carregada nas costas.
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Um único disparo bastaria, mas o capataz deu pelo menos três tiros para cima enquanto Nagu adiantava seus passos de volta à manada. Completamente compenetrado em si, após sua longa caminhada, passou reto por sua mãe que queria saber por onde ele tinha andado e entregou seu corpo, que fervia, a um banho de rio.
Demorou um pouco para se refazer. Conversou com a mãe sobre a longa viagem e fez de seu pai um elefante-branco ao perguntar se ele sabia o que era aquele objeto que o capataz trazia nas costas e que fazia um barulho de pequeno trovão. Mesmo estando em companhia mais que confiável, em nenhum momento passou por sua cabeça falar sobre a outra máquina barulhenta que havia conhecido no mesmo dia.
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Bitolado por aquele objeto estridente, de tromba longa, alça, botões, fio e tomada, Nagu passou a intercalar momentos em que ficava em pé sem andar, com momentos deitado sem dormir. Embaixo de sua árvore favorita, preces e promessas eram rogadas, em silêncio, intermitentemente, quase desconexas. Mas Nagu não pedia a seu deus, Ganesha, felicidade ao lado do aspirador de pó. Essa união, provavelmente, iria sugar toda a sua energia, principalmente por aspectos sociais. Qual elefante, em perfeito atributo de suas memórias, permitiria como membro da manada um aspirador de pó. E tinham outros ‘poréns’: diferenças culturais entre os imponentes elefantes e os submissos, por conseqüência, pouco confiáveis, aspiradores de pó. Estava apaixonado, mas ainda não tinha perdido totalmente seu bom-senso; por isso, demorou tanto a se render.
Antes, teve que certa eloqüência sentimental para convencer sua mente a liberar seu corpo a buscar sua felicidade: como poderiam – alma e carne e tromba e dentes de marfim – viver em paz com a inexplicável paixão dentro do peito e a memória com irritante competência a martelar o coração?  Cada vez que se perguntava isso, sentia mais evidências de que voltaria à grande casa dos fazendeiros. Castigado pela paixão, deixou que seu coração persuadisse a sua mente e, traindo a si mesmo, foi para a casa-sede da gigantesca fazenda.
Fez todo o trajeto sem enxergar ao menos o chão. Noite sem lua. Seguiu o caminho a faro e tato de tromba. Quando chegou à casa, nem um som, além da brisa sobre as copas do pomar. Um som tão sutil que apenas o coração de Nagu poderia escutar. Ainda estava escuro quando Nagu, tocando apenas as pontas das patas, desviando de quaisquer folhas-secas que pudessem gritar o pisão e acordar a casa, contornou a sede metendo os olhos em cada fresta de vidraça. Não demorou muito, lá estava... As orelhas de Nagu se ergueram e, enquanto a vidraça da lavanderia se esforça para refletir a face de Nagu, em seus olhos era nítida a imagem do recipiente plástico com mangueira e cilindro cinza-pele-de-elefante. 
A janela estava apenas encostada, os rolamentos bem lubrificados não fizeram barulho quando Nagu correu as portinholas. Com sua tromba, alcançou o aspirador de pó e partiram juntos para a floresta. Mas desta vez Nagu foi ao sentido contrário de sua manada. Durante a caminhada, nem Nagu, nem aspirador, emitiram som algum. Dormiram próximos à margem do rio. Quando acordou, para não despertar o ilustre seqüestrado, tomou muito cuidado para não fazer barulho em seu banho de rio e estava distraído pensando em quê o futuro o reservava quando ouviu mais novamente o som estridente do aspirador. Num pulo, que esvaziou o rio e encheu as margens por um segundo, o elefante partiu em direção ao som.
– Onde estamos?
Nagu não conseguiu deixar de sentir certo desconforto.
– Morro se cair na água. Pra que me trouxe aqui? Não aspiro terra, não.
– Não quero te matar – começou Nagu –, estamos aqui porque me apaixonei por você.
– Ah, você por acaso não é o mesmo elefante que apareceu há umas semanas lá em casa?
– Isso foi há meses...
– Quase que mata a mim e a minha patroa com o barulho que fez. Minha garantia já acabou, se quebro, vou para a lata do lixo, sabia? Sem enterro, lágrimas, recordações, nada. Sabe o que falam quando morrem um dos nossos? “Maldita lata velha imprestável”! Pra você ver, nem de lata nós somos feitos.
As coisas não iam bem. A ilusão acompanhava apenas o elefante apaixonado. Talvez para alguns o amor não comova. “Mas o que isso importa?” Nagu se aproximou do aspirador; sério:
– Te proponho uma vida que não acabará em latão de lixo. Se tua utilidade, para os homens, termina quando sua mangueira não suga mais o pó e a sujeira, para mim, que tenho tromba como mangueira, pouco importa essa sua virtude.
– Mas que razão tem viver um aspirador desligado?
– Não estará desligado. Serei feliz em cumprir suas ordens. Dê as ordens e eu as cumprirei. “Assopre aqui; aspire ali; não deixe sujeira acumular no canto”, eu terei prazer em servir.
•          •          •
Assim, o elefante que se apaixonou por um aspirador de pó encontrou um meio para viver o resto de sua vida. Uma sucessão de pequenos enganos e engodos uniu os dois mambembes. E, para que essa história desse certo, elefante, antes imponente, rendeu-se à rotineira insensibilidade eletrônica de aspirar e engolir a seco toda a sujeira e pó das paixões irresolúveis.
Viveram juntos para sempre.