No tempo em que fui repórter, acompanhei muitas histórias. Passei, e pastei, por quase todas as editorias: coloquei no jornal a história de muitos pilantras de colarinho branco; viajei junto com a delegação da seleção brasileira; cobri show de banda adolescente, festa italiana, marroquina e até aniversário de filha de celebridade.
Sabe como é em redação; de vez em quando, um jornalista fica emputecido e manda às favas o chefe de reportagem ou o editor: quem estiver mais a mão. De dentro do escritório, todo de vidro, do editor, a repórter de Cultura soltou um sonoro – para o quarteirão todo – “Vá à merda e enfie este jornal onde bem entender!”, bateu a porta e saiu. Os telefones da redação não se alteraram, continuaram a tocar; ninguém saiu para consolar a repórter.
Eu estava terminando o roteiro cultural do fim-de-semana. Com três processos que carregava do tempo de Política, me empurraram esta função até a poeira baixar. O editor abriu a porta do escritório e, com a delicadeza de um elefante numa loja de cristais, “Marcelo, deixa esta merda de roteiro para um foca qualquer e vem aqui”. Com um repórter a menos em Cultura, meus meses de ostracismo roteirizando cinema e teatro chegaram ao fim e uma matéria decente caiu no meu colo.
Um grã-fino causou o maior escarcéu quando descobriu que A donna d’Marselha – quadro do artista plástico Ângelo Quântico –, comprado num leilão, era falso. Quando desci da redação, que ficava no quinto andar de um prédio no centro, o motorista do jornal me aguardava com o motor ligado. Em mãos, carregava apenas um bloco de notas com o endereço da casa do artista. Fui sem saber o que esperar. Deve ter sido mais um desses casos onde algum amigo oculto cochicha nos ouvidos do editor, porque, quando cheguei a casa, vi a seguinte cena: o grã-fino com cara de pastel, o artista com um sorriso monalisa e o casal de leiloeiros, que, enquanto a mulher se desdobrava para massagear o ego do artista e garantir o ressarcimento de seu cliente, o homem franzia a testa e segurava um rapaz pelo braço; todos em volta de uma mesa retangular na grande varanda que fazia fronteira com a sala e o jardim. Conseguia ver e escutar tudo do portão baixo que dava pra rua. Não havia outros jornalistas.
Talvez pela confusão toda, não tive problema para entrar e fazer parte do grupo. Ninguém sabia ainda o paradeiro do quadro original, mas isso não era grande preocupação: o rapaz que o leiloeiro segurava pelo seu braço era seu filho e autor da falsificação. Provavelmente o original estivesse em seu quarto, queria apenas atenção com uma falsificação de bom nível. Quando cheguei, já estavam decididos a não envolver a polícia no caso – o que manteve a matéria na editoria de Cultura. O rapaz, de 20 anos, contou que, com a ajuda de um amigo, trocou os quadros após as três batidas do martelo, enquanto o quadro esperava pra ser encaixotado. Era apenas uma molecagem de garotos praticamente resolvida. No entanto, para o texto que ofereci aos leitores, meu caderno só anotou a emoção com que o artista se debruçou sobre a cópia. Enquanto o casal de dedicava em tecer mil elogios a uma obra “que jamais poderia ser copiada”, ele implicava com os leiloeiros; apreciava mais os falsários. Via os gananciosos leiloeiros a falar com os bolsos e tinha a certeza que, não fosse o trabalho do falsificador, que estudou cada pincelada na tela, ninguém teria observado tão bem sua arte.