14 de janeiro de 2008

Jardim de pedras

Quando a casa foi arrendada, embora o céu cinza, havia azaléias brancas e vermelhas que impediam a entrada de quem quer que fosse. O portão era baixo e convidativo aos que desejavam na casa entrar. Uma casinha de desenho: como um V, às avessas, o telhado cobria a parede inicial – de frente pra rua – azul clarinha, com os intervalos em seu concreto onde cabiam a porta e a janela. Borboletas, também azuis, chegavam até a varanda de entrada.

A casa estava conservada. Uma moça morou lá pouco mais de um ano. Parece que mentiu ser feliz e as borboletas azuis e as azaléias brancas e vermelhas acreditaram e tornou, à vista, a casa um belo cartão de modéstia invejável. Pareceu tudo superficial ao novo morador. Vasculhou sótão e caixa d’água, reparou nas rachaduras da parede da lavanderia e no ruídos dos degraus de madeira da escada que leva ao segundo andar. Procurou vestígios de cupins, corredores de formigas, fezes de ratos e asas de baratas. Por fim, sua exigência encontrou o desespero do proprietário e fecharam negócio por um preço baixo.

Não havia completado duas semanas como morador da casinha e o pó que as janelas cuspiam engasgaram nas traquéias das borboletas e contaminaram o pólen das azaléias. Tudo jazia sob o pó e o tilintar de uma máquina registradora. Após um mês, nem mesmo mariposas arriscavam-se nas paredes da casa; as flores e plantas do jardim refletiam a cor cinza do céu que cobria tudo o que havia para se ver.

A madeira da escada não ousa mais gemer os pisões do proprietário, as formigas não fazem caravanas nas imediações da casa, nem sinal de ratos, baratas e asas voaram pra longe – junto com as borboletas –, azaléias sem pernas curvaram-se podres e foram arrancadas. O portão, que em outro tempo e era pequeno e mal se notava sua existência pelas flores brancas e vermelhas que invadiam suas frestas, hoje parece grande e tem semblante sério. Grande o suficiente para fazer sombra a um jardim de pedras, cujo único trabalho ao seu dono contente é o de carpir os capins que teimam em nascer por lá após os dias de chuva.

9 de janeiro de 2008

São Francisco, Estados Unidos, 28 de dezembro de 2002

Querido, irmão.

Causa tristeza acompanhar, pelas linhas que escreveu, o que tem passado em seu regresso à China. No entanto - talvez pela idade com que o abandonei -, não paro de pensar que a morte de nosso pai é menor que a separação que tive dele quando viemos pra cá; e, ainda menor, do que me separar de você agora. Com a mesma tristeza, sinto não poder ajudá-lo. Sinto falta de seu apoio na loja e de sua companhia nas noites com a tv. Sobre nosso pai, pobre, sôfrego que viu morrer mulher e filho morrerem, além de ter visto nós dois desperdiçá-lo pela fantasia de vida melhor na América, não me surpreende que trouxesse seu semblante fúnebre marcado.

Vejo em sua volta, após tantos e tantos anos, um grande desafio. Enterrar nosso pai, seus ensinamentos sóbrios e equilibrados, ao mesmo tempo severo na juventude que tive dele, é uma tarefa que eu não saberia cumprir. Ao mesmo tempo, encontro-me só. Separado de você. Com a loja, sua parte administrativa, me sinto confortável; na verdade, sua viagem, despertou em mim um prazer pelos afazeres da loja que até então não tinha. Espero que não se aborreça: mudei algumas prateleiras de lugar para enxergar melhor quem quer nos roubar, reajustei alguns preços de acordo com o uso bairro e coloquei placas que anunciam promoções na vidraça. A loja ainda fatura como antes, mas espero ter novidades logo.

Mas, irmão, o que tenho pensado dói diferente. Ao morrer – enquanto a alma de nosso pai se funde ao espírito universal e vislumbra a plenitude de seus karmas – nos deixa somente memórias distorcidas de sua filosofia, a influência wu wei e o exemplo de espiritualidade de desenvolvimento espiritual que carregou durante sua vida. Hoje somos comerciantes, meu irmão! Quais ensinamentos ele nos deixou? Acredita que o seu exemplo e a sua preocupação com nossa formação espiritual foi em vão?

E que diferença há entre a morte de nosso pai – para mim – e a separação pela qual sou submetido enquanto você está na China. O consulado diz que não será fácil que consiga voltar. Vivo a esperança de seu retorno como passo a viver a esperança que a minha morte me leve à companhia de meu pai outra vez. A separação, assim como a morte que dá vida à alma e enterra a carne, liberta um enquanto escraviza o outro. Estou como escravo de saudade, de passaporte, de dinheiro; sinto falta de sua companhia dura, de caminhar sob a supervisão de seu entendimento e de agir sempre com o aval de seu olhar.

Tenho freqüentado mais vezes as putas, e mesmo elas, sem você, não têm sido a mesma coisa. Tung, ao me ver só nestas visitas, não se aproximou. Acredito que minha presença sem você a incomode e cause algum constrangimento ao aproximar-se dela algum cliente. Mesmo assim, garanto ser vago caso ela pergunte por você.

Mande lembranças a Aiko.

Aguardo notícias suas.

Carregado pela saudade,

Tài Tai Li