1 de novembro de 2013

Olhos ao mar

Pilantragem, pode até ser. Mas guarde a atiradeira no bolso de trás, como exige o figurino, porque ninguém há de lançar a pedra fundamental da discórdia quando afirmo: todo mundo já aplicou um versinho (que seja) de algum compositor nalguma quebrada das tortuosas e mal iluminadas vias da conquista. 
Chamar de pilantragem é sacanagem, embora possa até ser. 
Afinal, como se sabe, não é todo mundo (sim, é um eufemismo) que cai por aqui com o bojo de um Vinícius; de um Caetano; Chico; Tom; Lupicínio; Gil; e tantos outros fabricantes deste arsenal de flechas versadas que, pelo menos uma vez na vida, nem que seja por desespero, lançamos sem pudor.  Às vezes, incrementadas com um tom meio Seu Jorge, entre um gole e outro e olhar-43-cafa-Sinatra. 
Chame do que quiser, mas, você há de convir, casal que se presa tem trilha sonora. Musiquinhas que aumentam o som do rádio, do arcabouço, e põe aquele sorrisinho no canto da boca – abre a cova na bochecha, enquanto o coração caleja a caixa tentando se desenterrar de dentro do peito. 
Há, todavia, lei tácita que rege o bom uso dos poemas-cancioneiros-populares. Não pode, por exemplo, como fiz em meus primeiros e embaralhados passos, disparar Soneto do Amor Total, de Vinícius, a torto e a direito. Berrar no ouvido da pobrezinha que esbarrou em você na discoteca – isso mesmo, baladinha era chamada de discoteca –, no compasso, disputando com o puts-puts amplificado, “amo-te tanto, meu amor, não cante o humano coração com mais verdades. amo-te como amigo e como amante numa sempre e diversa realidade(...)”. Isso não pode dar certo. Na verdade, não deveria. Embora, às vezes... Enfim, antes “é preciso sagrar-se cavalheiro” e, não menos importante, respeitar o contexto. 
O tempo faz entender melhor os cenários. Coloca a prova qualquer recalco musical e prova que, para viver de biscate, o bom e velho “você é luz, é raio, estrela e luar”, pode sim, tem lugar e, muitas vezes, dá mais em ia-ia e iô-iô, que desmilinguir-se todo subindo a “(...) montanha, não como anda um corpo, mas um sentimento”. 
O tempo mostra o cenário, ensina, mas aos poucos. Num tic-tac de relógio de corda, segue-se a vida “aperfeiçoando o imperfeito, dando um tempo, dando um jeito, [muitas vezes] desprezando a perfeição”, meta defendida pelo goleiro da seleção, e sempre tem uma liçãozinha a mais. 
Superei há muitos anos o, tantas vezes reciclado, reutilizado, Soneto do Amor Total – guardado para, quem sabe no tálamo derradeiro, quem sabe precisando ajeitar seu tempo verbal, voltar a declamá-lo com a probidade que, tanto o poema e quanto a musa, merecem. Mas, se desta armadilha me preservo, outra chega a cavalo, ou no píer das desilusões. 
A clave de sol, no caso, era uma moça triste, de sobrancelhonas-pretas-e-zóiões-verdes-água. O namorado lançara-se ao mar, hóspede de um navio, e tardava a voltar. A conheci onde gente triste se conhece. Descobrimos um amigo em comum. Me angustiei com a sua angustia, me comovi com todo o seu sentimento e depois vi que tudo aquilo pertencia a nós dois e todo o mundo. Poesia solta do papel; sem compostura. 
“Morena dos olhos d’água, tire seus olhos do mar, vem ver que a vida ainda guarda o sorriso que eu tenho pra lhe dar”. Não levei mais de um minuto contando a história para o grande amigo César-engenheiro-Boy, e ele, displicentemente, Burt Bacharach enxerido no meu filme, impôs a trilha sonora. Impôs, digo, por precisão, competência. A letra de Caetano tinha a caligrafia daquela dissertação. 
O dilema moral estava travado: posso aplicar a poesia de um, que foi indicação de outro, na história que eu quero construir? Afinal, qual minha participação nesta história? Afinal-dois, o que o cara tinha que abrir a boca dele? Eu ia chegar à mesma música sozinho, certeza. “Certeza?... Certeza!”. Pode chamar de pilantra, com uma pitada de constrangimento, cantei a música. 
Lançados ao mar, todos os olhos são d’água. Às vezes, no entanto, emerge um continente, talvez Atlântida perdida, sobre as águas dos olhos. E a ordem só pode se restabelecer com o retorno do engenhoso, preciso e estável navio. Sem atraso, a nau ancorou de volta e os olhos dela embotaram. 
Eu sigo “caminhando e cantando e seguindo a canção”, Zé Qualquer conversando com Almirante de Tamandaré. “’Seu’ Marquês, ‘seu’ Almirante do semblante meio contrariado, que fazes parado no meio dessa nota de um cruzeiro rasgado. ‘Seu’ Marquês, ‘seu’ Almirante sei que antigamente era bem diferente, desculpe a liberdade e o samba sem maldade deste Zé qualquer. Perdão Marquês de Tamandaré. Pois é, Tamandaré, a maré não tá boa, vai virar a canoa e este mar não dá pé. Tamandaré cadê as batalhas? Cadê as medalhas? Cadê a nobreza? Cadê a marquesa, cadê? Não diga que o vento levou teu amor até...” e chutando pedrinhas em portos abandonados.

*Escrito para o tema Qual é a Música, para a página Situações Crônicas 

22 de agosto de 2013

O sagui de Paranoá

Agir pelo não agir; lei do mínimo esforço; ócio criativo; ou a máxima de Mário Quintana, que convence que “a preguiça é a mãe do progresso”, concluindo que “se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda“. Ah, poucas coisas podem nos acalentar melhor do que a recordação destas sentenças (e tantas outras) suspenso numa rede enquanto o chinelo estala a queda ao chão onde permanecerá. Ou, noutro cenário, noutro clima, na outra estação que, mesmo que não façamos nada, nunca deixou chegar: sob a coberta, sob o teto, sob as telhas sob o frio lá de fora; em frente à televisão; sobre o sofá que lamenta um pouquinho cada vez que o corpo se mexe.
Mas não vou aprofundar homenagens a esta ninfa morosa. Além da filosofia que a sustenta ser frágil, ela, a preguiça, não há de esperar que este fiel servo seja provocado a debates sobre a necessidade do trabalho, sua importância social, econômica, familiar. A quem se propuser, e levantar esta bandeira, as batatas. “Demasiadas palavras, fraco impulso de vida”, pode cantar.
Considero as observações necessárias, não como apologia à vadiagem. Seria contra-senso; desserviço. No entanto, é importante mostrar que a filosofia do ócio – repito aos debatentes de plantão, comprovadamente falida –, mesmo mal embasada, está enraizada e há muito tempo ocupa meus devaneios nesta espécie de alquimia, onde o tubo de ensaio é o sofá, de conquistas sem diligência; ou sob as leis do mínimo esforço.
Réu confesso. E não poderia ser diferente, dada a quantidade de testemunhas de meus não atos. Testemunha que tenho e posso evocar seu depoimento caso levantem suspeita sobre a veracidade da história que contarei.
À época namorada, ainda hoje grande amiga e companheira, cuja idoneidade dispensa qualquer defesa, com nome e sobrenome, Mariana Navarro, estava lá. Nós, em campana vadia, na varanda de uma casa em Paranoá, cidade satélite de Brasília, nos primeiros dias 2003. Tínhamos saído dias antes de São Paulo para acompanhar a posse do presidente Lula. A casa onde estávamos hospedados – talvez o certo fosse chamar de sítio – era visitada todos os finais de tarde por um grupo de sagüis interessados num pomar com jabuticabeiras e outras árvores de frutas que os anfitriões ofereciam. Logo adaptamos nossa rotina a observá-los em sua última refeição, enquanto tomávamos o café para rebater o que sobrara da noitada anterior.
Antes de prosseguir, explico que não me dispus a contar esta história para entrar na lista de desafetos do padre Quevedo, ou virar personagem dos programas da tarde que ele gosta de participar. Não tinha fita métrica, mas estava dentro do limite (a menos de cinquenta metros do alvo da manifestação) que ele, o padre-parapsicólogo, cobra como distância máxima antes de dizer “isso no ecxiste! este homem és una farsa!”.
Dito isso, voltamos à varanda. Eu e a Mari sentados nos degraus da escada; um ventinho bom levando a fumaça e espalhando o cheiro dos copos de café; os macaquinhos agindo como macaquinhos no pomar. O pensamento pulava de idéia em idéia no ritmo dos sagüis até quebrar o silêncio.
-- Má, você sabe que a nossa mente tem poder?
-- Hum.
-- É, se quisermos, podemos mexer objetos, atrair coisas só com o poder da mente.
-- Hum.
-- É, telecinese.
A verdade é que eu só queria puxar assunto, mesmo que o silêncio não incomodasse.
-- (...) Tá vendo aquele macaco?
Tinha um macaco longe do resto do grupo; numa árvore um pouco afastada.
-- (...) Então, se a gente quiser, a gente pode derrubá-lo apenas com a força do pensamento.
-- Hum.
-- Fica vendo.
Encarei o saguizinho, levei os dedos indicadores e médios das duas mãos às têmporas dando pequenas voltas e permaneci por não mais de cinco segundos. Como uma jaca amarelada pelo tempo, o macaco despencou da árvore e se estatelou no chão. Levantou, deu uma sacudida, coçou a nuca, olhou para os outros macacos para ver se algum caçoava e subiu ágil de volta às entranhas da jabuticabeira.
Se eu tivesse presença de espírito, seria minha consagração; Uri Geller teria um concorrente. Mas aquele macaco caiu e subiu muito mais rápido que as minhas fichas. Olhei para o lado e os olhos arregalados da minha companheira orientalizaram-se em comparação com os meus. Estava mais assustado que ela.
 O susto acalmou e os anos continuaram a passar pouco a pouco diluindo a esperança que aquele acontecimento nutriu em mim. Quantos exercícios em vão. Quantos filas em lotéricas. É verdade, aproveito para confessar, a vida me transformou num socialista de fila de lotérica. E, até agora, se somos mesmos dotados daquela habilidade, só serviu para derrubar o coitado do sagüi. Parapsicólogo de merda.

Agora, com licença, vou mandar uns currículos porque o dinheiro não está caindo de árvores. 

16 de julho de 2013

Em julho, Londres bandida nos visitava

Poucos períodos talvez sejam tão emblemáticos e representem melhor o meu caráter do que as férias de julho; ou férias de inverno no hemisfério sul deste planeta, próximo ao trópico de Capricórnio, 23° 41′ 38″ S, 46° 33′ 54″ W, onde fui criado e vivo.
Passado o entusiasmo inicial do primeiro dia de aula, em fevereiro, quando a saudade dos amigos nos fazia esquecer a maratona acadêmica que começava, logo vislumbrava no calendário o início de julho. Com os ouvidos embaçados à palestra inicial da diretora da escola, aquele sétimo quadrado, quadriculado, com números de 1 a 31, induzia meu pensamento à cama. Ao acordar sozinho na casa em silêncio, apenas sob uma leve névoa de inveja daqueles que, por não serem mais estudantes, logo cedo haviam virado fumaça.
No entanto, a mesma aspiração que me carregava ao descanso prescrito das manhãs, abduzia à minha razão um ponto fundamental: fazia frio. Bastante frio. E, com os amigos todos entocados, dissipar o entusiasmo vadio e energia de um menino de onze anos não era exercício trivial. Por isso, na primeira manhã de férias, vestia as meias de lã confeccionadas pela minha mãe e corria para a folhinha admirar e convocar o dia 1º de dezembro: férias de verão, de três meses; de rua com hidrante aberto esguichando água na molecada. Não aquela moeda gelada de um mês que o somítico calendário escolar oferecia.
Em julho o dia faz-se claro tarde, escurece muito cedo e a Serra do Mar, principalmente naqueles anos, soprava uma névoa de cegar todos os fins de tarde. E fazia frio; bastante frio. Mesmo que algumas festas juninas que não cabiam em seu mês invadissem o mês seguinte, geralmente, elas vinham acompanhadas das recuperações que eu e meus amigos trazíamos do semestre letivo. No entanto, mesmo com a resistência gelada, nunca faltou quórum para as brincadeiras de rua que terminavam com a fumaça, do cigarro imaginário, que nossos pulmões quentes ofegavam através de nossas bocas.
Do frio e do sereno, o que falava a nós era um não-sei-quê de Sherlock Holmes ou Scotland Yard no encalço de Jack, o Estripador. E, inconscientemente, nossas brincadeiras eram pautadas e se adaptavam a este cenário de romance policial.
A regra, ao contrário daqueles dias, sempre foi muito clara e não variava entre nenhuma mãe: escureceu tem que estar dentro de casa. O que variava era o castigo por seu descumprimento. Em geral, aos delinqüentes, sobravam umas palmadas e uma bela fração das férias trancado dentro de casa. Embora deva cometer justiça aqui: nunca levei as tais palmadas, tão pouco fiquei de castigo, mesmo desafiando a ordem regularmente. Mas sofria por tabela às punições aplicadas sobre meus amigos. Incontáveis foram as longas e cinzas tardes que passei conversando com eles pelo vão da porta ou da janela; eles presos dentro de casa e eu à necessidade de suas companhias.
E geralmente eram nesses dias que combinávamos o que faríamos durante o intervalo entre o castigo vigente e o próximo. Mulheres ainda não eram alvos de nossa atenção – eufemismo à parte. Nossas referências de pessoas respeitadas naquele tempo eram os garotos mais velhos que aterrorizam o bairro: ladrõezinhos de padaria com alvará do ensino formal. Juntando isso àquele cenário londrino, ou de Gothan City de Batman ausente, não era de se surpreender que nessas reuniões surgissem idéias de contravenções estapafúrdias.
Com os dias anoitecendo por volta das cinco da tarde e os pais, em sua maioria, dependendo do transporte público para voltarem do trabalho, tínhamos pelo menos duas horas para aproveitar a anárquica escuridão e o anonimato que ela oferecia. Então, assim que a névoa da tarde encerrava a guerra de pipas no céu, nossa diversão era invadir escolas, construções, bibliotecas e todo e qualquer lugar onde houvesse pelo menos um vigia.
Nosso lugar de incursão predileto era o Elis Regina. Um espaço grande, sem grades nos jardins e estacionamento que o cercavam, com biblioteca, teatro, e pelo menos três vigias por turno. Antes de invadir, identificávamos onde cada guarda fazia o sua ronda, traçávamos metas e a rota de nossa fuga. Não havia plano de vandalismo ou qualquer apropriação indébita. O objetivo era sempre o mesmo: invadir, ser descoberto e fugir sob o sons dos apitos dos guardas. Completamente alienados às emoções que os livros da biblioteca poderiam oferecer, ou as apresentações de teatro, íamos para o espaço cultural em busca da adrenalina mais básica -- das perseguições.  
Se os anos trouxeram algum bom senso que me afastou da delinqüência, sigo retratado naquele menino dos primeiros dias de aula. Anelando o alívio e a satisfação mais próxima, porém míope para o seu contexto amplo, acabo por ter que fantasiar sobre as imperfeições do objetivo alcançado e traço planos e projetos onde possa encontrar graça e me divertir sob a névoa onde existo.

5 de junho de 2013

Capitão Kong

“A memória é uma ilha de edição” pertence àquele grupo de sentenças certeiras que parecem ficar vagando, no oceano suspenso e invisível de idéias, ao redor de nós, até serem pescadas por alguém. Os preguiçosos difusores da coletânea-clichê “O primeiro (amor, transa, sutiã, carrinho de rolimã, talho na testa, ou seja lá o que for...) a gente nunca esquece”, devem ficar intrigados com a frase fisgada pelo anzol de Waly Salomão. Poucos são aqueles que, talvez por alguma disfunção neurológica, guardam cada detalhe de tudo o vivenciaram ou viram – fotógrafos de memórias. Mas para estes o exercício, recordar o primeiro amor, provavelmente não sirva. Estão condenados a viverem aprisionados junto às lembranças que não dão lacunas à poetização leviana que nós, com cérebros menos competentes, temos o prazer de oferecer às sessões imaginárias do grande filme que protagonizamos. A eles restam as certezas.
Assim enfloro, firulo, como subjugo, o resultado que está por vir. A história começa assim – ou melhor, começa um pouco antes, assim:  
Sentado no chão da sala de casa, tenho à minha frente uma grande arca suporta a TV e centenas de fitas VHS da JVC, ou Maxell, em sua maioria, já defloradas. Ao lado da TV, trabalham dois vídeos cacetes e um emaranhado de fios acostumados a desafiar FBI Warning que iniciam os filmes alugados e advertem sobre as punições aos piratas. Sexta-feira é dia de alugar três filmes pelo preço de dois e devolver só na segunda, rebobinados, evidentemente. Com quatro anos, sem saber ler ou escrever, meu pai sempre traz um filme dublado para o filho caçula.
Ao som do portão se abrindo, corro para receber meu pai. Os cumprimentos à sua chegada nesses dias são protocolares. As mãos e olhos logo correm para o pacote que carrega os filmes. “Este é o seu, Gugu”. E assim meus pais garantiam pelo menos duas horas de sossego.
Foi numa destas sextas-feiras que meu pai chegou com este filme. Na capa, um macaco enorme, lutando contra aviões e helicópteros, com um pé em cada uma das torres do que eu viria saber, anos tarde, chamar World Trade Center.
Aos meus olhos, a viagem exótica à ilha desconhecida, o barco, os nativos e o macaco logo sucumbem à personagem resgatada pelos exploradores em sua jornada. Os nativos logo perceberam que não haveria oferenda melhor para acalmar a fera que Dwan (Jessica Lange). Linda, entregue com todas as pompas de estrela hollywoodiana ao gorila gigante, em seu banho de cachoeira, além do coração do símio, desfibrilou também meu pequenino coração. Fiquei vidrado. Gastei a cópia que fizemos e nunca mais pude ser o mesmo; ou pensar em viver apenas comigo mesmo.
Mas há muito, mesmo para Platão, neste disparate que mereça receber o louro de “primeiro amor”. Como disse, comecei um pouco antes. Este preâmbulo serve apenas de embasamento para o que viria a ser minha primeira viagem aos meandros deste “comboio de cordas (‘que gira a entreter a razão’) chamado coração”.
Reinava hostilidade na EMEI Guilherme de Almeida, próxima a minha casa. Os alunos do pré I, II e III se dividiam em grupos e alguns territórios eram demarcados pelos grupos – Faixa-de-Gaza-Fraldinha. O grupo que liderava chamava-se Thundercats e nossa base era embaixo da “árvore do sangue-do-diado” – por causa da seiva vermelha que escorria em seu tronco. Mas o amor é mesmo o mais poderoso antídoto à violência. Em meio às articulações de guerras de mamonas, campanas e emboscadas, incursões às lancheiras inimigas e operações-tachinhas na volta do recreio, estava claro que não tinha mais o mesmo entusiasmo.
Apenas suspirava, “Ah, a Cris”. A Cris era uma japonesinha de calça azul, camiseta listrada, como exigia o uniforme, e lacinhos ora vermelhos, ora amarelos, ora azuis prendendo os cabelos. Além de dividir a mesma sala de aula e as atenções da tia Marli todas as manhãs, morava na mesma rua que eu. Mas, como se sabe, naquele tempo os portões eram muito mais altos, os cadeados não tinham chaves e a rua bem mais comprida. Restava, às matinês, buscá-la de binóculos pelo vão da grade de ferro de meu portão.
Dediquei desenhos. Sentei ao seu lado nos recreios. Suei frio atrás de assuntos que puxava. Ela seguia impassível.
Convoquei uma reunião entre os Thundercats.
Sob a árvore do sangue-do-diabo, expliquei o plano. Não iríamos atacar os meninos da Fubem, ou da vila Ferreira. Nossa cruzada naquela manhã tinha outro propósito: eu ia beijar a Cris. Dividimos a turma. Um grupo ficou responsável por distrair a tia Marli; outro armou a insídia. Coitadinha. Enquanto brincava, nos aproximamos. Meus comparsas fizeram a cobertura, tornando aquele espaço do pátio o altar de oferenda pagã. Rompi o bloqueio, lutamos um pouco e, no chão, não pôde evitar o selinho que lhe dei.  
Ela chorou; eu corri – já arrependimento. De volta à árvore do sangue-do-diabo, talvez eu fosse o mais constrangido nas comemorações com o grupo. E, para o remorso ser ainda maior, na saída, com as bochechas e narizinho vermelhos pelo choro, veio em minha direção, ao lado da mãe, para entregar o convite de seu aniversário. Com o braço estendido, quando peguei o convite – feito a mão –, vi que seu dedinho trazia agora um Band-Aid. O choro era pelo beijo roubado, ou por tê-la machucado? Nunca soube, embora creia que tenha sido pelos dois.
Mesmo assim, continuamos amigos até o primário (e um caminhão da Graneiro) nos separar.
Outros tiveram Clark Gable, Marlon Brando, James Dean, Sinatra. Tive o King Kong como modelo de conquistador de cinema. Acho que foi isso.
Embora consiga editar um pouquinho do que aconteceu naquele tempo, fora da tela não há como rebobinar. Talvez, se pudesse, ao contrário de King Kong, não caísse nas mesmas armadilhas todas as vezes. Talvez em outras; piores ou melhores. Mas decidi: não queria mais o protagonismo de macaco grande e bravo. Sigo desemaranhando os cordões do peito, pouco a pouco, capitão da nau, com o leme solto em busca da próxima ilha desconhecida.

6 de março de 2013

O Homenageado

Caminha sem pensar cada passo, mas nas pegadas sobre a neve que segue deitando. Não olha para as pegadas que deixa para trás, não pode vê-las; mas as cria na imaginação em formado ideal. De fato, sonha maiores que os calçados que veste. E segue seu registro em linha reta, no centro da rua, a esmo. Espólio que sucumbe lentamente sob cada floco que cai e retoma em planície o asfalto-branco.
Pensa compassado:
“Não devia ter ficado quieto”; “e ela”; “que burrice”; “consigo lembrar o cheiro”; “por que o pavor”; “saudade hoje?”; “que segurança a razão me dá?”; “ainda?”; “a bateria do telefone”; “velho?”; “gostei daquela mostarda”; “olhos verdes”; “há quantos anos foi isso?”; “não, eram de mel”; “acho que faria igual”; “falei ou só pensei?”; “deixei no criado-mudo”; “ninguém por perto”; “assim mesmo venci”; “uma janela aberta”; “qual era o nome daquela mostarda?”... dividem-se, entre os aflitos nervos do peito e as aflitas palpitações de seu cérebro, as pegadas no chão.
Sem cobrar de seu pescoço flácido mais que o trabalho de sustentar a cabeça levemente inclinada para baixo, os olhos caminharam à direita, depois à esquerda e retornaram a neve que precedia a cunha de seu pé – primeiro o direito, depois o esquerdo. Alguma melancolia fez subir uma das pontas de seu lábio: um sorriso? Um sorriso.
A neve parece preferir seus ombros ao grisalho do cabelo, barba, sobrancelhas e cílios, destoando do lôbrego paletó que também conota a cena.
“”Olhos macios e quase líquidos’, onde li isso?”. E sentindo marear os olhos duros, sentiu os passos mais vagarosos, o pensamento vago, os passos mais vagarosos, os cabelos pararem de crescer, os passos mais vagarosos, a barba enrijecer, os passos mais vagarosos, os olhos congelarem, os passos mais vagarosos, um arrepio, os passos mais vagarosos, os joelhos arranharem, os passos mais vagarosos, os lábios lívidos, os passos mais vagarosos, a mão esquerda fincada no bolso da calça, os passos mais vagarosos, arrepio nas costas, os passos mais vagarosos, os pêlos como agulhas... e estacionou. Prostrado em pé no cruzamento vazio.
A neve lenta, eficaz e constante, seguiria a apagar os passos que o conduziram até a manhã se precipitar junto com os passos da moça que pulou a janela e volta para casa antes de seus pais acordarem. Ela será a primeira a encontrá-lo estátua. E se, como um garantia Michelangelo, “não tem o ótimo artista algum conceito que o mármore não circunscreva”, o que se dirá deste homem, esculpido pela vida e estátua de fora para dentro, sem pegadas, sem história? Sei o que dirão. Os simpáticos, conformistas confortantes católicos, mantenedores da ordem que, em geral, mexem seus lábios em contraponto às suas ambições e pregam palavras de paz e ordem, repetirão até tornar-se verdade que aquele senhor bem vestido e sorridente morreu feliz. Que, homenageado por deus – que a todos oferece o merecido –, tornou-se a escultura que mereceu por uma vida digna; servidor modesto em ofício sepulcral.