Por muito tempo, meses, Nagu intercalou momentos de pé sem andar, com momentos deitado sem dormir. Embaixo de sua árvore favorita, preces e promessas impossíveis eram rogadas, em silêncio, sem parar. No entanto, se engana quem pensa que Nagu pedia a seu deus, Ganesha, felicidade ao lado de um aspirador de pó. Esta união, provavelmente, iria sugar toda a sua energia, principalmente por aspectos sociais. Qual elefante, em sã consciência, permitiria como membro da manada um aspirador de pó. E tinham outros ‘poréns’: diferenças culturais entre os imponentes elefantes e os submissos, por conseqüência, pouco confiáveis, aspiradores de pó. Estava apaixonado, mas ainda não tinha perdido totalmente seu bom-senso; por isso, demorou tanto a se render.
Antes, teve que certa eloqüência sentimental para convencer sua mente a liberar seu corpo a buscar sua felicidade: como poderiam – alma e carne e tromba e dentes de marfim – viver em paz com a inexplicável paixão dentro do peito e a memória com irritante competência a martelar o coração? Cada vez que se perguntava isso, sentia sua volta à grande casa dos fazendeiros mais próxima. “O que importa, sobre todas as coisas, é a minha plena felicidade e paz. Não serei feliz sem aquela estridente criaturinha, que alegra meus sentidos”. Despertado pela envolvente paixão, deixou que seu coração persuadisse sua mente e, sem saber que ao obedecer aquele impulso traia a si mesmo, foi para a casa-sede da gigantesca fazenda.
Fez todo o trajeto sem enxergar ao menos o chão. Noite sem lua; segui o faro de sua tromba. Quando chegou à casa, nem um som, além do produzido pela vegetação que apenas os elefantes podem escutar, escutava. Ainda estava escuro, sem sinais de que clarearia o céu novamente. Nagu, tocando apenas as pontas das patas, desviando de quaisquer folhas-secas que pudessem gritar o pisão e acordar a casa, contornou a sede metendo os olhos em cada fresta de vidraça. Não demorou muito, lá estava... As orelhas de Nagu se ergueram e, enquanto a vidraça da lavanderia se esforça para refletir a face de Nagu, em seus olhos era nítida a imagem do recipiente plástico com mangueira e cilindro cinza-pele-de-elefante.
A janela estava apenas encostada, os rolamentos estavam bem lubrificados com graxa e não fizeram barulho quando Nagu correu as portinholas. Com sua tromba, alcançou o aspirador de pó e partiram juntos para a floresta – mas, desta vez, Nagu foi ao sentido contrário de sua manada. Durante a caminhada, nem Nagu, nem aspirador, emitiram som algum. Dormiram próximos ao rio. Quando acordou, para não despertar o ilustre seqüestrado, tomou muito cuidado para não fazer barulho em seu banho de rio e estava distraído pensando em quê o futuro o reservava quando ouviu mais novamente o som estridente do aspirador. Num pulo, que esvazio o rio, o elefante correu à margem de onde vinha o som.
– Onde estamos?
Nagu não conseguiu deixar de sentir certo desconforto. Não eram estas as primeiras palavras que queria ouvir.
– Morro se cair na água. Pra isso que me trouxe aqui, quer me matar?
– Não quero te matar – começou Nagu –, te trouxe aqui porque me apaixonei por você.
– Ah, você por acaso não é o mesmo elefante que apareceu há umas semanas lá em casa?
– Isso foi há meses...
– Quase que mata a mim e a minha patroa com o barulho que fez. Minha garantia já acabou, se quebro, vou para a lata do lixo, sabia? Sem enterro, lágrimas, recordações, nada. Sabe quais foram as últimas palavras que meu irmão, um aspirador dois anos mais velho que eu, ouviu? “Maldita lata velha imprestável”! Pra você ver, nem de lata nós somos feitos.
As coisas não iam bem. Nada do sentimento que Nagu trazia pelo aspirador parecia ser recíproco. Também, pudera, desde quando aspirador se comove com juras e cenas de amor? O aspirador ligou e desembestou a falar, assim. “Aspirador gosta de aspirar”, veio a inspiração para Nagu. Ele pensou o que nenhum outro elefante apaixonado jamais pensou: para alguns o amor não existe. Afinal, comum é acreditar que, o que o indivíduo sente, motiva e norteia a vida de toda a comunidade. Nagu se aproximou do aspirador e, como quem oferece uma oportunidade, falou em tom sério:
– O que te proponho é uma vida que não acabará num latão de lixo. Se tua utilidade, para os homens, termina quando sua mangueira não suga mais o pó e a sujeira, para mim, que tenho tromba como mangueira, pouco importa esta sua utilidade. Vivendo ao meu lado, a principal característica que teve até hoje não valerá mais nada. Por outro lado, seu caráter efêmero de utilitário doméstico desaparece também. Percebe o que estou te propondo? ... Vida eterna!... Sem sua desgastante utilização, será eterno enquanto eu durar.
– Mas que razão tem viver um aspirador desligado?
– Não proponho que seja um aspirador totalmente desligado. Proponho a você que me utilize como seu aspirador. Dê ordens e eu as cumprirei. Diga: “sugue aqui; aspire ali; não deixe sujeira acumular no canto”, eu terei prazer em servir.
...
• • •
E foi assim que o elefante que se apaixonou por um aspirador de pó encontrou para viver o resto de sua vida ao lado de seu amor. Uma sucessão de pequenos enganos e enganações uniu dois personagens tão diferentes entre si. Mas para que esta história desse certo, elefante, que já fora imponente, precisou se render à insensibilidade eletrônica de aspirar e engolir seco toda a sujeira e pó de paixões mal resolvidas.
Viveram juntos para sempre.
31 de julho de 2007
6 de julho de 2007
O elefante que se apaixonou por um aspirador de pó
Não podemos dizer que estivesse na vida adulta há muito tempo, mas não era, absolutamente, jovem. Fazia algum tempo que caminhava sem a necessidade das orientações dos pais e, embora tivesse em seu pai o símbolo máximo de intelectualidade – sempre se lembrava dele por sua memória acima da média de toda a manada –, se sentia muito à vontade para decidir quais as melhores rotas e acomodações; escolher o melhor verde para se alimentar; saber qual parte do rio oferecia a água mais refrescante. Carregava uma experiência razoável para uma boa vida e um futuro tranqüilo; mesmo assim, não era desgarrado. Nem se quisesse poderia ser: como todos os seus companheiros de trombas, vivia na propriedade de um grande pecuarista numa gigantesca fazenda da África do Sul.
Quando analisamos um acontecimento por completo – com informações do princípio, meio e, principalmente, fim –, é praxe nos apropriarmos dos resultados de cada etapa para julgar qualquer suspiro de quem realizou a ação anterior. Nagu era um elefante como outro qualquer de sua idade. Carregava ainda nos olhos a obstinação por realizações que pudessem surpreender seus amigos e parentes, embora começasse a perder aquela inquietude por resultados imediatos. Era simples, sério, calmo e, acima de tudo, discreto. Um modelo como tantos outros ao seu redor. Ninguém que o conheceu, ou mesmo que tenha dividido intimamente sua companhia, seria honesto se viesse hoje apontar qualquer característica de Nagu como sinal para a desordem para o que seu coração de elefante aprontou.
Talvez movido por uma brisa de tédio – monotonia comum para bicho que vive resguardado pela segurança de território demarcado e vigiado –, resolveu que sua caminhada naquele fim de madrugada, começo de manhã, o levaria ao pomar próximo a sede da fazenda. Não era comum aquele passeio; tanto no que diz respeito ao horário, quanto à área a ser visitada. De fato, quando os donos da propriedade queriam ver seus elefantes, precisavam chamar um capataz com jipe e viajar, muitas vezes, por até meia-hora para encontrá-los. E, se fizessem questão que eles estivessem acordados (bem-dispostos), preferiam o fim de tarde.
Pretendia beliscar algumas jabuticabas do pomar, mas não era isso que motivava seu passeio. Para Nagu, as frutas que por lá brotavam não faziam sua retumbante tromba saracotear. Passeava por passear, já que os olhos teimaram em deixá-lo acordado mais cedo. Só.
Demorou muito para chegar. O céu clareou ao compasso lento dos passos pesados de Nagu e chegou ao azul definitivo – chamo de definitivo para intensificar a claridade da manhã; sem ser apocalíptico ou desrespeitoso às matizes azuis do céu – assim que ele parou para descansar, em frente a casa. Ouvia o barulho da vassoura e, de onde estava, via que, pelo corredor da esquerda, uma porta da casa espirrava o pó.
“Sede”. Havia se esquecido das sérias implicações que se afastar do rio oferecia. Isto era elementar para a sua sobrevivência. De repente, um choque! Pensou, “havia se esquecido das implicações que se afastar do rio causava”! Pensou que havia esquecido! Por ter a memória como principal fonte de orgulho, os elefantes esquecidos – e isso é raríssimo. Uns lembram mais que outros, mas poucos se esquecem – sentem a pior das angústias. Com as orelhas e a tromba – arqueada entre suas patas dianteiras – arrastando no chão, Nagu, cabisbaixo, caminhou até um enorme pneu de trator que estava apoiado num cercado e guardava um pouco de água da chuva.
Tomado por grande humilhação, mal conseguia forças para sugar o líquido. Distraído com a água que o pneu reteve da chuva, escutou um som inédito: chiado, com acelerações intercaladas, às vezes com o som abafado, às vezes mais estridente; resultado da luta entre gás-poeira e sólido-tapete. Nagu esqueceu, e desta vez fez bem, a tristeza para valer a curiosidade. Olhava através da circunferência de seu reservatório de roda gasta de trator para a casa, que havia se tornado, amplificadora daquele som.
Conforme o tempo passava, o som, que trazia a característica rara de ser tão monótono enquanto é imprevisível, ia aumentando. A porta principal da casa se abriu e surgiu uma jovem negra enrolada em panos, vermelho e branco, e carregava por uma alça um pequeno instrumento de onde vinha o som. A euforia causou em Nagu seu terceiro esquecimento da manhã, desta vez com conseqüências. Entretido, como estava, esqueceu sua tromba dentro da roda do trator e, resultado dos segundos sem respirar pela apreensão em conhecer o irreconhecível, quis sugar com força todo ar ao seu redor, mas sua tromba estava sob a água suja que o pneu guardou da chuva.
– (aumente o volume) *!!*!!!!*!!!!!*!!!!!!*!!!!!!!!*!!!!!!!!!!*!!!!. – Nagu acabava de lançar o (sem medo de errar) seu mais forte bramido.
O coração da jovem que aspirava a casa se absorveu por um sobressalto e o susto que a atirou ao chão; com o tranco causado pelo salto da moça, fugiu da tomada o cabo elétrico do aspirador que silenciou; os pássaros, que piavam em seus galhos, também decidiram pelo silêncio. Nagu tratou de se esconder numa árvore próxima que o tronco, de tão fino, mal escondia sua tromba. Alguns segundos passaram como que se o barulho do espirro do elefante tivesse feito o tempo parar por ali: nem sinal da governanta negra, pó em paz no carpete e nenhum pio os pássaros ousavam. De onde estava, olhava o aspirador deitado em silêncio no chão com sua mangueira apontada para ele. Ficou por volta de um minuto registrando cada detalhe do aspirador de pó. Até o capataz chegar de jipe com a espingarda carregada nas costas.
Um único disparo bastaria, mas o capataz deu pelo menos três tiros para cima enquanto Nagu adiantava seus passos de volta à manada. Completamente compenetrado em si, após sua longa caminhada, passou reto (sem ao menos ouvi-la) por sua mãe que queria saber por onde ele tinha andado e entregou seu corpo que fervia pela viagem a um banho de rio.
Demorou um pouco para se refazer. Conversou com a mãe sobre a longa viagem e quase fez de seu pai um elefante-branco ao perguntar se sabia o que era aquele objeto que o capataz trazia nas costas e que fazia um barulho de pequeno trovão. Mesmo estando em companhia mais que confiável e com o pensamento totalmente refém por aquele pequeno pedaço cúbico de plástico, mangueira, botões, fio e alça, em nenhum momento passou por sua cabeça falar sobre a outra máquina barulhenta que havia conhecido no mesmo dia.
Quando analisamos um acontecimento por completo – com informações do princípio, meio e, principalmente, fim –, é praxe nos apropriarmos dos resultados de cada etapa para julgar qualquer suspiro de quem realizou a ação anterior. Nagu era um elefante como outro qualquer de sua idade. Carregava ainda nos olhos a obstinação por realizações que pudessem surpreender seus amigos e parentes, embora começasse a perder aquela inquietude por resultados imediatos. Era simples, sério, calmo e, acima de tudo, discreto. Um modelo como tantos outros ao seu redor. Ninguém que o conheceu, ou mesmo que tenha dividido intimamente sua companhia, seria honesto se viesse hoje apontar qualquer característica de Nagu como sinal para a desordem para o que seu coração de elefante aprontou.
Talvez movido por uma brisa de tédio – monotonia comum para bicho que vive resguardado pela segurança de território demarcado e vigiado –, resolveu que sua caminhada naquele fim de madrugada, começo de manhã, o levaria ao pomar próximo a sede da fazenda. Não era comum aquele passeio; tanto no que diz respeito ao horário, quanto à área a ser visitada. De fato, quando os donos da propriedade queriam ver seus elefantes, precisavam chamar um capataz com jipe e viajar, muitas vezes, por até meia-hora para encontrá-los. E, se fizessem questão que eles estivessem acordados (bem-dispostos), preferiam o fim de tarde.
Pretendia beliscar algumas jabuticabas do pomar, mas não era isso que motivava seu passeio. Para Nagu, as frutas que por lá brotavam não faziam sua retumbante tromba saracotear. Passeava por passear, já que os olhos teimaram em deixá-lo acordado mais cedo. Só.
Demorou muito para chegar. O céu clareou ao compasso lento dos passos pesados de Nagu e chegou ao azul definitivo – chamo de definitivo para intensificar a claridade da manhã; sem ser apocalíptico ou desrespeitoso às matizes azuis do céu – assim que ele parou para descansar, em frente a casa. Ouvia o barulho da vassoura e, de onde estava, via que, pelo corredor da esquerda, uma porta da casa espirrava o pó.
“Sede”. Havia se esquecido das sérias implicações que se afastar do rio oferecia. Isto era elementar para a sua sobrevivência. De repente, um choque! Pensou, “havia se esquecido das implicações que se afastar do rio causava”! Pensou que havia esquecido! Por ter a memória como principal fonte de orgulho, os elefantes esquecidos – e isso é raríssimo. Uns lembram mais que outros, mas poucos se esquecem – sentem a pior das angústias. Com as orelhas e a tromba – arqueada entre suas patas dianteiras – arrastando no chão, Nagu, cabisbaixo, caminhou até um enorme pneu de trator que estava apoiado num cercado e guardava um pouco de água da chuva.
Tomado por grande humilhação, mal conseguia forças para sugar o líquido. Distraído com a água que o pneu reteve da chuva, escutou um som inédito: chiado, com acelerações intercaladas, às vezes com o som abafado, às vezes mais estridente; resultado da luta entre gás-poeira e sólido-tapete. Nagu esqueceu, e desta vez fez bem, a tristeza para valer a curiosidade. Olhava através da circunferência de seu reservatório de roda gasta de trator para a casa, que havia se tornado, amplificadora daquele som.
Conforme o tempo passava, o som, que trazia a característica rara de ser tão monótono enquanto é imprevisível, ia aumentando. A porta principal da casa se abriu e surgiu uma jovem negra enrolada em panos, vermelho e branco, e carregava por uma alça um pequeno instrumento de onde vinha o som. A euforia causou em Nagu seu terceiro esquecimento da manhã, desta vez com conseqüências. Entretido, como estava, esqueceu sua tromba dentro da roda do trator e, resultado dos segundos sem respirar pela apreensão em conhecer o irreconhecível, quis sugar com força todo ar ao seu redor, mas sua tromba estava sob a água suja que o pneu guardou da chuva.
– (aumente o volume) *!!*!!!!*!!!!!*!!!!!!*!!!!!!!!*!!!!!!!!!!*!!!!. – Nagu acabava de lançar o (sem medo de errar) seu mais forte bramido.
O coração da jovem que aspirava a casa se absorveu por um sobressalto e o susto que a atirou ao chão; com o tranco causado pelo salto da moça, fugiu da tomada o cabo elétrico do aspirador que silenciou; os pássaros, que piavam em seus galhos, também decidiram pelo silêncio. Nagu tratou de se esconder numa árvore próxima que o tronco, de tão fino, mal escondia sua tromba. Alguns segundos passaram como que se o barulho do espirro do elefante tivesse feito o tempo parar por ali: nem sinal da governanta negra, pó em paz no carpete e nenhum pio os pássaros ousavam. De onde estava, olhava o aspirador deitado em silêncio no chão com sua mangueira apontada para ele. Ficou por volta de um minuto registrando cada detalhe do aspirador de pó. Até o capataz chegar de jipe com a espingarda carregada nas costas.
• • •
Um único disparo bastaria, mas o capataz deu pelo menos três tiros para cima enquanto Nagu adiantava seus passos de volta à manada. Completamente compenetrado em si, após sua longa caminhada, passou reto (sem ao menos ouvi-la) por sua mãe que queria saber por onde ele tinha andado e entregou seu corpo que fervia pela viagem a um banho de rio.
Demorou um pouco para se refazer. Conversou com a mãe sobre a longa viagem e quase fez de seu pai um elefante-branco ao perguntar se sabia o que era aquele objeto que o capataz trazia nas costas e que fazia um barulho de pequeno trovão. Mesmo estando em companhia mais que confiável e com o pensamento totalmente refém por aquele pequeno pedaço cúbico de plástico, mangueira, botões, fio e alça, em nenhum momento passou por sua cabeça falar sobre a outra máquina barulhenta que havia conhecido no mesmo dia.
...continua
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