30 de maio de 2007

Pântano

Assim como nos contos de bruxas ou assombrações, insinuar as diferenças dos ambientes transportava-nos a certo torpor. Aguardávamos os detalhes imaginários e o surgimento de algo sobrenatural que transformaria para sempre a nossa vida; ou um algoz, estático, que nos surpreenderia no reflexo do espelho do quarto de banho. Fugíamos da angustiante presença destes seres desconhecidos, moradores dos pântanos; dos pântanos e vales que a escada da casa da avó nos levava. Podíamos encontrá-los, no breu da noite, com suas faces mortas, através das vidraças da grande sala de jantar. Vidraças que, quando revelavam o reflexo de nossos rostos, aproveitavam para confundir nossas faces com a dos fantasmas. E nos tornávamos imagem que se atravessa servindo de espírito às almas penadas no espelho transparente. De certa forma, para os olhos de quem buscava através de seu reflexo o pântano e seus moradores, a existência de seus fantasmas se confundiam com a de nossas almas, ambas levemente encobertas pelo rosto de quem buscava o pântano de dentro da sala e encontrava o próprio rosto no vidro gelado. Não podíamos vê-los, não notávamos o medo estampado em nossa cara, eles sim. Eram espíritos querendo roubar a paz e pleitear a eternidade de nossas almas: para o bem ou para mal?

No reflexo da vidraça, meu olhar arriscava confrontar quem quer que flutuasse pela escadaria que levava ao pântano, enquanto evitava o olhar morto da moça pálida de cabelos castanhos, que começavam lisos e ralos em sua cabeça e acabavam em ondulações úmidas quase na cintura. Com grossas veias verdes no pescoço, dois passos atrás de mim, também no reflexo; me olhando pelo reflexo.

Alguns ramos da dama-da-noite foram empurrados por galhos maiores para dentro da copa e da lavanderia pelas frestas das vidraças. Seu cheiro nos tornava reféns durante a primavera; suas flores, caídas no outono, deixavam as crianças brincarem de bermuda na neve até o escurecer. Porque, desde que me conheço por gente, quando começava a anoitecer, todos da família se reuniam, faziam um pequeno lanche e, dentro do quarto sem janelas, se lavavam com um pano úmido.

Desde meu avô, quem construiu este quarto sem janela, fui o primeiro a sair durante a madrugada e perambular pelas outras partes da casa. Não sei dizer a idade que tinha, de repente senti que realizava um ritual sem pé nem cabeça. Todo dia, ou melhor, toda noite levava um grande copo de água, às vezes uma jarra, e algum livro e me trancava na câmara. Lá, a grossura das paredes e porta eram obstáculos intransponíveis a qualquer ruído do mundo externo. Era ensurdecedor; no entanto, sozinho dentro da câmara, após alguns segundos no silêncio absoluto e autocontrole, pode-se escutar o ar inflando nosso peito e alvéolos; depois gazes passeando pelas nossas vísceras; depois o coração; e após alguns minutos totalmente parado, toda a orquestra do corpo apresentava sua sinfonia.

E a noite passava e sempre passou. Quando saíamos, encontrávamos todos os móveis como havíamos deixado. Mas agora uma linda luz branca invadia a casa por todas suas frestas e vidraças refletindo com tanta força no assoalho que ninguém, ao acordar, conseguia andar cabisbaixo pela casa por causa do reflexo que vinha do chão. Era rotina naquelas manhãs de férias a guerra nos jardins verdes escaldantes: bem-te-vis e pardais reclamavam as agressões dos marimbondos nas jabuticabeiras, as esquivas de insetos e o sol a arder suas vistas. Pela manhã ainda, o pântano encerrava o terreno da propriedade na figura de um belo lago. Via-se durante todo o dia alguns botes com pescadores amistosos, namorados com seus poemas escondidos, estudantes com seus livros e silêncio. De vez enquanto, autoridades apareciam por lá chamando a atenção e curiosidade de todos ao redor do lago: sempre que a cidade perdia um de seus carros, objetos grandes, ou até mesmo alguém, mergulhadores se atiravam revirando as águas e entocando os peixes para desespero dos amantes da paz.

* * *

Foi por causa de um livro – onde a fluência das palavras do escritor suplantou o número de páginas que sua história exigiu e a leitura acabou antes do previsto – que fui estimulado a sair do quarto. Ainda estava com os argumentos do autor, que havia apresentado em sua prosa a enfadonha metade boa e a terrível metade má de um visconde cortado em duas partes, quando a insônia insinuou mais uma noite longa.

Mesmo com o anúncio da jornada solitária da madrugada, a princípio, nem mesmo cogitei a possibilidade de sair do quarto sem janelas. Nos breves intervalos das inúmeras sensações despertadas por lembranças, conclusões precipitadas, projeções para o futuro, metades de visconde e música das engrenagens do meu corpo, lamentava ter levado apenas um livro. Dei conta do absurdo que era me manter enclausurado quando me lembrei criança naquela casa. Lembrei do medo das histórias que meu avô gostava de contar enquanto a gente se vestia para ir à igreja; do medo dos fantasmas da família que, supostamente, protegiam o tesouro escondido no porão; e do medo dos cantos e das melodias religiosas a Nossa Senhora quase inaudíveis que eu escutava quando encostava o ouvido nas paredes ásperas do casarão. Todas, sensações incabíveis à pessoa que me tornei: entre outras coisas, um comunista-ateu convicto.

Levantei do colchão duro de estrado num solavanco só. Não tinha medo. Era um adulto que resolveu sair do quarto, sem janelas, para buscar um livro na biblioteca e um copo d’água na cozinha. Lembrava que tinha entrado calçando chinelos no quarto, mas agora não os encontrava. Pé ante pé, pelo chão de assoalho sem janelas, cheguei à porta. A chave resistiu a girar, forcei um pouco e a fechadura destravou. Mão na maçaneta. Fazia – se é que silêncio se faz – um silêncio paradisíaco; quando a primeira fresta da porta abriu, um sopro ártico invadiu e sussurrou entre os botões do pijama algo que fez meu coração soluçar; passeou como peão pelos pêlos do meu peito, barba, espinha, lombo; desatou os cordões da barriga até se concentrar, como gaze úmida, nos calcanhares dos pés.

A casa estava outra vez habitada. Sob a influência de todo o ritual que estava sendo quebrado a cada passo que dava, meus pés gelados, com as solas molhadas de suor, grudavam no chão de madeira. A madeira reclamava meu peso, de vez em quando, com leves gemidos que preenchiam toda casa. Não tinha medo. Enquanto atravessava de um ambiente para outro, era a criança que nunca desafiou o avô por medo. Agora eu já não tinha medo, já não tinha avô.

No meio do caminho, antes de virar à esquerda, tocar os interruptores de luz e chegar à estante de livros, estava a enorme porta de vidro. Em noite como aquela, sem lua, não enxergava o lago. Era meu rosto refletido outra vez no espelho transparente e o cheiro mais puro que a dama-da-noite já havia oferecido. A única luz vinha do final do corredor, da porta entreaberta do quarto sem janelas, e iluminava a metade direita do meu rosto. Sabia que atrás da imagem que se formava na porta de vidro os degraus levavam ao jardim, onde meus fantasmas da infância habitavam; mas, olhando através do meu reflexo, aqueles degraus me levaram para outro pântano. Hipnotizado, todos os fantasmas que visitavam aquela vidraça quando eu era pequeno se uniram e formaram, sobre o meu rosto, o reflexo que parecia o do meu avô. O reflexo era meu e eu estava velho.

Pelo medo das assombrações que moravam no pântano da minha infância me prendi no quarto sem janela. Por quanto tempo?

15 de maio de 2007

Teresa, a mãe da puta


Lá vai Teresa trabalhar.
Pobre, negra da favela, gorda. Gorda, com metade do peso seria saudável. A vida complicada ainda não conseguiu tirar dela alguma esperança que não se sabe do que. Para muitos, em seu lugar, sorte seria morrer na próxima esquina. Ela rezava: por sua saúde e de seu filho menino. Quando lembrava – ou esquecia tudo que ele já cometeu –, rezava pelo marido, padrasto de seu filho, que roubava o pouco de dignidade que a paz na família – se existisse – poderia oferecer.
Sabia da vida de seu filho e das sainhas que ele gostava de usar. Mas o que acontecia depois que ele saía do barraco, Teresa ouviu falar numa dessas reportagens especiais de programas marrons que tornam celebres as ruínas sociais. O apresentador, com voz de penumbra, levou até os olhos, ouvidos e coração da mãe Teresa o espetáculo de crianças e adolescentes que viviam à beira da estrada submetendo suas mãos, bocas e bundas em postos das auto-estradas. Pobre, negro da favela, magro. Magro, de pedra e agulha, quinze de idade, era pele, osso e cabelo alisado com pontas que pinicavam a clavícula.
Lá vai Teresa trabalhar.
Carrega, em seu enorme corpo redondo, vergões nas costas e nos braços das frustrações de seu marido. Carrega ainda a saudade do filho que, violentado pelo padrasto, há quinze dias não aparece em casa. Enquanto caminha é a atração passageira nos becos e vielas. As bocas banguelas e os olhares contentes, dissimulados, dizem em sussurros altos:
– Lá vai Teresa, a mãe da putinha.
O serviço é a terapia. Pia com esponja, sabão, água, porcelanas, talheres e copos. Lava, seca e guarda. De certa forma, uma analogia com o que quer para a sua vida. Antes disso, chega às sete da manhã na casa que ainda dorme. Prepara café, busca jornal, o patrão sai correndo, esquenta o café para a patroa que só acorda às nove, tira a mesa, coloca as roupas no tanque, limpa o quintal e prepara o almoço. Enquanto limpa as sobras do almoço, está no momento mais distante de seus problemas. Saiu de casa, da comunidade, do marido, da espera do filho travesti há quase seis horas e está a mais de cinco de voltar para lá. Divide sua atenção entre a espera do caminhão de gás, o cachorro que late sem parar e o ventre molhado na pia. O cachorro latia à chegada do filho de seus patrões – dois anos mais velho que o seu – que não consegue almoçar com os pais por causa do curso para o vestibular.
– Olá, Teresa, sobrou alguma coisa ou só vou almoçar o jantar? – e a Teresa sorri a piada simpática.
O prato costuma estar separado quando ele chega. Às vezes conversam um pouco sobre alguma notícia que una seus mundos: a morte de algum famoso, a chuva que vem, o sol que não sai, a falta de água na rua.
Hoje, Teresa trouxe uma carta e, analfabeta, perguntou se ele poderia ler.

* * *

– “Mãe, espero que as coisas estejam melhores em casa. Desculpe escrever. Sei de sua dificuldade com as palavras escritas, mas não encontrei outro jeito de entrar em contato. Agradeço quem lê para você, como agradeço a Roberta, que escreve e organiza minhas palavras nesta carta. Peço desculpas também por expô-los a um problema que não lhes diz respeito”.
O garoto parou, olhou para a empregada que sorria e continuou.
– “Moro com ela agora. Pelo menos por um tempo. Não tenho tido problemas com roupa, comida ou segurança para viver. Tenho medo que aquele homem encontre esta carta antes de você e me persiga, por isso não conto onde moramos. Quero que você saiba que está tudo bom.
Não sei se nos veremos outra vez; não sei como terei notícias suas; não posso voltar para casa. Sei que não fui um bom filho, mas durante toda minha vida você foi a única pessoa que realmente amei e que realmente me amou. Fiz, com a minha demência, com a minha doença, com o meu corpo e comportamento, com as minhas roupas, cabelo e vício, do meu caminhar a sua caminhada mais longa e triste. Coloquei sua reputação de mulher simples e forte, pobre e honesta, na boca daqueles miseráveis que não sabem do amor. Fiz seu marido desrespeitar você como mulher que não serve para parir. Lamento a falta de forças para tirar você daquele cafajeste. Assim como lamento a força que me faltou este tempo todo para tirar ele de cima de mim. Não sei algum dia vou me recuperar da idéia de ter sido mulher dele. Não sei se o asco foi maior por ter sido refém do homem que eu, ainda criança, já chamei de pai, ou por ter me tornado mulher e, de alguma forma mesmo que rendida, ter sido cúmplice da traição de seu marido. Mãe, pelo amor de deus, perdoe o que aconteceu aquele dia. Eu nunca me insinuei para este homem. Sabe bem que minha força perto da dele não serviria para nada. As vizinhas, que ouviram e bisbilhotaram entre as tábuas do barraco, devem hoje estar a te ofender também. Desculpe mãe, desculpe. Sei como as notícias correm por lá.
Queria que esta carta falasse só do amor que a despedida me fez lembrar. Pelo menos assim, poderia deixar palavras de saudades. Talvez falar um pouco mais dos meus planos; talvez prometer que vou mudar. Mas esta é uma carta de desculpas e despedida. Para a única pessoa que me ama e sempre cuidou de mim. Para a pessoa que, entre tantas, eu ajudei a desgraçar a vida. Para o meu maior exemplo e amor.
Fique em paz, sabendo que o filho está bem e que pretende te buscar quando tiver condições.
Assinado: seu filho, Vandré”
Há muito tempo o garoto havia reduzido seu tempo de leitura para evitar o momento em que teria que olhar para a Teresa outra vez. E ela sorriu; ele sabia mesmo antes de levantar os olhos e a primeira lágrima se desprender dos cílios laterais:
– Vou tentar me lembrar de cada palavra que o senhor leu pra mim. Se meu menino disse que vai voltar, ele volta mesmo.