Quando estava prestes a completar seu quadragésimo aniversário – comemorado no primeiro dia do ano – foi à papelaria para comprar o calendário. Desde criança – quando comprar o calendário-de-mesa era um evento entre pai e filho –, escreve, sobre o ano gregoriano, seu ano de vida: este era seu calendário quarenta e um. Consultar seu arquivo de calendários é como consultar um sumário, inteligível, de sua vida. Sem legendas, os dias são marcados por círculos, quadrados, xises; sublinhados. Claro, muitos passam despercebidos às canetadas. Nos dias marcados, fica ao olhar a curiosidade de “o que aconteceu neste dezessete de maio que mereceu este xis vermelho”, ou “vinte e cinco de março, riscado de ponta a ponta”. Ninguém sabe o que um círculo significa; ou um xis, ou quadrado. Ninguém sabe nem mesmo se há significado ou padrão para cada um destes sinais.
Há quinze anos, a residência do calendário vigente deixou de ser sua casa. Com vinte e cinco foi aprovado em concurso público e a Câmara Municipal recebeu o jovem relações públicas com seu calendário 26 debaixo do braço. Viveriam ainda lá o vinte e sete, o vinte e oito, o vinte e nove, até o, recém inaugurado, quarenta e um. Seu trabalho empolgou por pouco tempo; logo era “recorte e cole”. É responsável pela organização das cerimônias oferecidas pelos vereadores da casa a representantes públicos de outras regiões. Há, também, não tão raras, as cerimônias aos próprios munícipes. Com raras exceções, precisa apenas seguir uma lista de tarefas já preparada – por ele mesmo, em seus primeiros anos como servidor. Basicamente, seu trabalho limita-se em alterar a data, nome do evento e dos integrantes da mesa principal e imprimir cópias para os funcionários menores colocarem a mão na massa. O fornecedor chamado para preparar o coquetel era sempre o mesmo; os funcionários que cuidavam da limpeza e copa eram sempre os mesmos; e os enfeites de flores para as mesas eram sempre os mesmos.
Mas, enquanto respirava a primeira página do calendário quarenta e um em um de seus de seus trinta e um dias, o trágico despertou sua vida. O floricultor, e florista, encarregado – desde sempre – pelo fornecimento de flores para os enfeites do salão e mesas, durante jornada no campo de cultivo, foi atacado por um enxame de abelhas. Não resistiu a investida, sucumbindo em colapso pulmonar. O choque pela morte do veterano fornecedor teve que dar lugar à urgência por um novo. O relógio se aproximava das sete da noite quando recebeu a notícia. O evento, marcado para as nove da manhã do dia seguinte, receberia seus convidados a partir das oito, ou oito e meia, não faria menção à morte do floricultor com minuto de silêncio, ou sem um único arranjo como espécie de homenagem: “Sem você nada será como antes”. Dá-se pouca atenção à morte de floricultores nas Câmaras Municipais. Assim, não havia saída, senão brotar alguém que arranjasse os enfeites.
Conseguiu, por indicação de um poeta conhecido, o telefone pessoal de uma florista de uma cidade vizinha. A doze horas da cerimônia, acertavam as questões logísticas da entrega, assim como as financeiras. Pontualmente, às cinco horas da manhã, o relações públicas, de jaqueta jeans, soprava – a esquentar – as palmas das mãos em frente ao salão da Câmara; quinze minutos depois, já inquieto, viu a Kombi da floricultura, de faróis acesos, embicar à entrada. Os funcionários responsáveis pela entrega traziam, além das flores, um recado da chefa: só teriam rosas-colombianas para metade das mesas, por isso as gérberas. O relações públicas quis morrer de azia. Nem tanto por ele – era simpático às gérberas –, mas pela esposa do presidente da Câmara que, na última solenidade, o elogiara pelo bom gosto com as rosas. Podia parecer desdém, após o elogio, a mudança. A nota fiscal também não veio com os funcionários; isso era compreensível: não deu tempo das flores passarem pelo escritório da floricultura, vieram direto do armazém. De certa forma, foi um gesto de confiança da proprietária.
* * *
A casa era levemente desarrumada – o que não impedia suas belas manhãs, que invadiam sala, quartos e cozinha através de vidraças emolduradas pela poeira; belas tardes, um pouco mais amarelas que as manhãs; e noites, de amarelo-velho, das lâmpadas incandescentes. Uma extensão de seu trabalho, com muitos vasos de flores e plantas e algumas encomendas em papéis amontoados sobre a mesa principal. Quando o telefone tocou, ela borrifava solução de inseticida diluído em água nas folhas verdes de suas camélias. O telefonema interrompeu. Fez as ligações que garantiriam a entrega do dia seguinte e deitou-se com o som de sua antiga vitrola a cobrir-lhe.
A loja onde vendia as flores nasceu de uma sociedade com um antigo amor. Com o passar do tempo, as flores eram cada vez mais pálidas, as plantas opacas e seu sócio ausente. Enquanto ele buscava flores belas de outros jardins, ela passou a dedicar-se a criar sozinha novas espécies. Os polens misturados não davam em nada e as flores que o sócio trazia duravam pouco. Em pouco, não fazia mais sentido à floricultura flores novas de outros jardins; tão pouco, as que jaziam antes mesmo de brotar entre os dois.
Sozinha, deixou de dividir os lucros e dívidas da casa e da loja. Sozinha, logo um pólen fecundou e gérberas com pequenas pintas pretas começaram a nascer. Nunca entendeu bem por que. Enquanto isso, levou muitos amantes à casa amarela. Com o tempo a floricultura impôs um ritmo de vida decente, com o qual, vendia flores em quantidade suficiente para viver com o conforto que precisava. Com o tempo, sentia cada vez menos as ausências de qualquer um que, de qualquer maneira, já tivesse marcado sua vida amarela.
As flores não lhe faziam companhia. Eram, na loja, seu objeto de penhora com a vida; e, em casa, fonte de cuidados que a faziam esquecer dos seus. Tinha uns poucos caprichos de comerciante: num deles, agradava trocar seu cultivo por trocados contados de pobres-diabos. Enxergava nas flores que eles levavam uma ansiedade singular – singular, como o dinheiro que lá deixavam. Quando anunciavam quanto dinheiro tinham para agradar alguém – quase sempre amores platônicos –, ela tratava de animá-los.Contava a história e o que cada flor do arranjo queria dizer como quem põe na boca do namorado as ternuras que devem ser ditas ao amor. Os pobres-diabos saiam, sem saber, com arranjos que valiam dez, quinze vezes mais do que pagavam.
* * *
O evento consumiu a manhã toda e transcorreu bem – sem o elogio da esposa do presidente da Câmara. O relações públicas esperou o almoço para colocar tudo em ordem: o pós-evento. Aproveitou o intervalo para resolver alguns assuntos no banco. Quando voltou, encontrou sobre a mesa um envelope com a nota fiscal e um bilhete, escrito à mão, sob um pequeno vazo de gérbera:
Querido, (...).
Desculpe a falta das rosas-colombianas. A urgência de sua encomenda impediu providência junto ao meu fornecedor. Enviei gérberas, como deve ter notado. Mas as trouxe com uma motivação especial: são de uma espécie que criei. Repare, suas pétalas amarelas têm pequenas pintas pretas. As pintas são tão pequenas que não costumam notar a diferença entre estas e as que encontramos por aí. Mas, agora que sabe, gostaria que entendesse como são especiais para mim.
Espero que seu evento tenha sido feliz.
Atenciosamente,
(...)
Não estava acostumado com este tratamento. “Querido”? Este era o recado mais pessoal que recebia em anos. No entanto, o modo íntimo com que a floricultora o tratou, deu espaço a uma sensação, de tão antiga, desconhecida por ele. Providenciou que o pagamento pelos arranjos fosse realizado, ajeitou o vaso sobre a sua mesa e deixou as pequenas-tímidas-pintas-pretas saltarem aos olhos.
Dias, semanas e meses, continuam a seguir. Sem, no entanto, que o relações públicas se esqueça – toda sexta-feira –, quando a flor se inclina, murcha, e devolve aos seus olhos os dias vazios do calendário, de circular a próxima segunda-feira – quando deve visitar a florista para comprar a gérbera da semana seguinte. Murchando entre as flores, o tempo da florista também escorre, enquanto acha graça do senhor calado que toda semana leva um vaso de suas gérberas pintadas e não nota mais o tempo passar.
11 de junho de 2008
2 de junho de 2008
Pequeno livro de uma história de amor
Meses
Não precisaram de anos. Alguns meses, e já não eram mais. Uniram as costas, passagens nas mãos, e voaram, cada um, cinco horas para onde a testa apontava. Em cinco horas, estavam a dez um do outro; em poucos meses, tornaram os mesmos de antes.
A vida tornou a castigar cada um – como estava acostumada a fazer antes de colocar um frente a frente com o outro – a sua maneira. Ele conseguiu emprego só quando gastou suas últimas moedas no ônibus que o carregou à entrevista. Ela, em suas noites, dividia com os olhos o teto do quarto e com os ouvidos os gemidos de sua amiga e namorado no quarto ao lado. Ele se esparramou nos bares; aumentou os copos, as atrizes, os cólos e as cicatrizes. E, sem saber bem porque, acordava no dia seguinte. Às vezes, ela pretendia calar o quarto vizinho com o barulho do seu, mas soava falso.
* * *
Morte
Que poder a morte possui para unir as pessoas! De cara, é causa mor do anseio por viver. Sobre sua perene sombra, há milhares de anos, corpos e almas atiram-se a favor de outros corpos e almas. Mas há também outras formas; como foi o caso deste casal: chegou a um amigo comum dos desquitados. Os dois partiram juntos para o mesmo destino; de volta. Ele se esforçava para não esquecer o amigo morto, ela também: a lembrança, um do outro, insistia em atraí-los.
Ela receava o reencontro. Tinha medo da frieza, de se ver diante de nova amante; de ter sido esquecida. Pelo contrário, ele queria vê-la. Deixava seu coração acelerado o abraço que seguramente viria ao se verem: com gosto de lágrima de velório e saudade. No entanto, nenhum sabia se o outro conseguiria ir: ela imaginava que pudesse estar sem dinheiro; ele, que o trabalho talvez a impedisse.
* * *
Missa
A igreja recebeu o casal em missa com o corpo presente. Evidentemente cansados, ambos entraram pela porta principal da igreja sem se encontrarem e se acomodaram de maneira com que ele poderia vê-la: ele à esquerda no fundo; ela na cadeira que mais se aproximava do centro da nave, no entanto, pertencente ao bloco de cadeiras à direita.
Ele, nitidamente o mais cansado, sucumbiu ao sono. Ela, como se lembrasse de um dia ter sido católica, seguiu firme cada palavra do padre e, dê joelhos e olhos fechados, rezou até a igreja esvaziar; ou acreditar que estava só. Ele dormia com a cabeça quase encostada nos joelhos; parecia rezar. Mas, ateu desde a faculdade, trazia pendurado aos ouvidos tímidos fios de fones-de-ouvidos. Quando ela o encontrou, estavam sós. Sentou-se ao seu lado, puxou um dos fones e colocou em seu ouvido – ele permanecia entregue ao sono.
* * *
Música
João disse: Vai minha tristeza... Pareceu ser para ela; ela obedeceu. Soltou o fone sobre o banco, beijou seu rosto e mão e partiu para o vôo da noite. Enquanto ela descia os degraus da igreja, ele dormia e balbuciava: Não quero mais esse negócio de você longe de mim.
Mas...
Não precisaram de anos. Alguns meses, e já não eram mais. Uniram as costas, passagens nas mãos, e voaram, cada um, cinco horas para onde a testa apontava. Em cinco horas, estavam a dez um do outro; em poucos meses, tornaram os mesmos de antes.
A vida tornou a castigar cada um – como estava acostumada a fazer antes de colocar um frente a frente com o outro – a sua maneira. Ele conseguiu emprego só quando gastou suas últimas moedas no ônibus que o carregou à entrevista. Ela, em suas noites, dividia com os olhos o teto do quarto e com os ouvidos os gemidos de sua amiga e namorado no quarto ao lado. Ele se esparramou nos bares; aumentou os copos, as atrizes, os cólos e as cicatrizes. E, sem saber bem porque, acordava no dia seguinte. Às vezes, ela pretendia calar o quarto vizinho com o barulho do seu, mas soava falso.
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Morte
Que poder a morte possui para unir as pessoas! De cara, é causa mor do anseio por viver. Sobre sua perene sombra, há milhares de anos, corpos e almas atiram-se a favor de outros corpos e almas. Mas há também outras formas; como foi o caso deste casal: chegou a um amigo comum dos desquitados. Os dois partiram juntos para o mesmo destino; de volta. Ele se esforçava para não esquecer o amigo morto, ela também: a lembrança, um do outro, insistia em atraí-los.
Ela receava o reencontro. Tinha medo da frieza, de se ver diante de nova amante; de ter sido esquecida. Pelo contrário, ele queria vê-la. Deixava seu coração acelerado o abraço que seguramente viria ao se verem: com gosto de lágrima de velório e saudade. No entanto, nenhum sabia se o outro conseguiria ir: ela imaginava que pudesse estar sem dinheiro; ele, que o trabalho talvez a impedisse.
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Missa
A igreja recebeu o casal em missa com o corpo presente. Evidentemente cansados, ambos entraram pela porta principal da igreja sem se encontrarem e se acomodaram de maneira com que ele poderia vê-la: ele à esquerda no fundo; ela na cadeira que mais se aproximava do centro da nave, no entanto, pertencente ao bloco de cadeiras à direita.
Ele, nitidamente o mais cansado, sucumbiu ao sono. Ela, como se lembrasse de um dia ter sido católica, seguiu firme cada palavra do padre e, dê joelhos e olhos fechados, rezou até a igreja esvaziar; ou acreditar que estava só. Ele dormia com a cabeça quase encostada nos joelhos; parecia rezar. Mas, ateu desde a faculdade, trazia pendurado aos ouvidos tímidos fios de fones-de-ouvidos. Quando ela o encontrou, estavam sós. Sentou-se ao seu lado, puxou um dos fones e colocou em seu ouvido – ele permanecia entregue ao sono.
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Música
João disse: Vai minha tristeza... Pareceu ser para ela; ela obedeceu. Soltou o fone sobre o banco, beijou seu rosto e mão e partiu para o vôo da noite. Enquanto ela descia os degraus da igreja, ele dormia e balbuciava: Não quero mais esse negócio de você longe de mim.
Mas...
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