13 de março de 2008

Copo de leite

Só se sabe que ele estava só. No aposento, corpo no carpete, na casa; não tinha marcas, expressão, vontade, conforto; não tinha vida. Os pés – grudados às pernas que sonhavam de bruços – apontavam cada um para um lado: pareciam ter dado início a uma fuga onde discordaram sobre o lado que deviam seguir; o tronco, pesado, contorcia o quadril e pressionava o ombro esquerdo: diferente das pernas, da cintura para cima, dormia de lado. Notava-se que não quis se deitar. O peso lançado à base do braço esquerdo, e, pela posição do poeta morto, não parecia possível, mas o braço direito, durante a queda, chegou antes ao chão e fez-se fulcro da alavanca entre o ombro e a mão esquerda, rija, suspensa no ar: a quinze centímetros, um copo, inteiro, deitado derramava leite entre o carpete e o assoalho.

Sua poesia foi lida e comentada. Autor conhecido, não foi brilhante – embora se encontre, não poucas, passagens inspiradas em sua obra –, esteve entre os cinco escritores de sua geração que sempre eram citados nas conversas vazias nas mesas de estudantes de Comunicação. A herança deixada pelo pai – professor de escola de pública que economizava cada centavo para o futuro dos filhos – e pelo seu avô materno, ofereceu uma vida tranqüila onde trabalhou apenas para desenvolvimento pessoal. Mesmo assim, não costumava manter suas ocupações por mais de um ano: tempo estimado para o trabalho deixar de ser fonte de amadurecimento pessoal e se tornar perda de tempo.

Teve algumas mulheres que, de certo, choram o corpo que esfria no carpete. Para cada uma delas escreveu poesias: umas delicadas, outras pornográficas, muitas trovas e até sermões; sempre respeitando métrica e rima. Alguns destes textos foram publicados, outros nunca; mas é certo que hoje estas senhoras, na juventude musas do poeta morto, fugirão dos maridos, se trancarão em seus banheiros, ligarão seus chuveiros deixando à água confundir-se com o som das folhas que entornarão, aos seus seios, sussurros do outro amor. É certo que as águas do chuveiro servirão para levar a nostalgia, traidora da razão, e ao saírem do banheiro e encontrarem seus companheiros, também velhinhos, lembrarão pela última vez do poeta, morto, e só, no apartamento: para sorrirem e desfrutarem da vaidosa felicidade por terem sido mais felizes.

O círculo de amigos e parentes, que envolvia seu corpo, se enganava silenciosamente olhando o poeta e pensando nas paixões que o fez viver. O homem foi poeta na tortura da morte de cada uma de suas paixões e só pôde viver homem quando as esquecia. Seu único irmão – que já foi mais novo, mais velho e tinha a mesma idade do poeta quando morreu –, aventureiro anônimo de versos, se conformou um pouco mais com o leite derramado: quem carrega o conforto de um copo de leite da cozinha para o quarto matou muito antes o poeta.