No corre-corre da rua, eu gostava de ser o primeiro a ultrapassar a linha-imaginária. A linha-imaginária, da prova-imaginária, onde eu e meus amigos competíamos pela medalha olímpica, fazia de nossos vinte metros de asfalto a pista de cem metros-rasos do atletismo. Estes mesmos vinte metros de asfalto, todas as tardes, durante as férias escolares, se transformavam em Maracanã da molecada da vila. Na rua, chinelo de dedo não era chuteira de futebol, nem tênis de corrida; pra não perder, ou estragar, e levar a bronca descalça em casa, dos pés os chinelos corriam para as mãos e acompanham, como luvas, os Zicos, Sócrates e Pitas de nossos clássicos intermináveis. Apenas com o escuro da noite, nossas mães lembravam de seus apitos – que fazíamos questão de esquecer em casa – e surgiam árbitras para encerrar a partida.
Estava lembrando: tive tantos amigos e uma casa boa e grande. Em geral, as casas de meus amigos eram de materiais adaptados onde, por exemplo, madeiras serviam de apoio ao concreto quebrado das escadas e as desconstrutivas reformas começavam para nunca terem fim; ou então, eram pequenos quartos-banheiros escondidos no fundo do quintal de outras casas. O eco que minha bola de capotão fazia na garagem de Dona Ana – enquanto eu esperava pelo amigo do casebre do quintal, enquanto ele acabava de lavar a louça do café-da-manhã – nunca mais ouvi; e, como sabemos, as manhãs, tardes e noites também não se formam iguais às daqueles dias.
Não tive também, nunca mais, o mesmo calafrio de quando atravessava a viga – tapete-vermelho, para os meus olhos – que me carregava da calçada para dentro da casa do outro amigo. Este amigo, como era comum, era muito amigo. E se hoje ainda há amigo, ele ainda é. Sua casa oferecia tudo que uma criança poderia querer: tinha o tapete de terra batida, onde jogávamos fubeca; tinha um depósito de madeiras e tábuas, onde se escondiam os ratos e a gente conseguia matéria-prima para os jogos de taco da rua; tinha a ausência dos mais velhos, já que cedo todos corriam para ganhar o jantar. Dependendo da disposição dos olhos, parecia construção abandonada.
Num fim de tarde, como já havia ocorrido em tantos outros fins-de-tarde, a mãe deste meu amigo veio bater à porta de casa a sua procura – minha casa era sempre a primeira opção, já que éramos como ‘unha e carne’. Foi surpreendida ao me ver de banho tomado, sem sinais da bagunça que por certo existiria se estivesse com seu filho. “Meu deus, onde se meteu esse menino”. Não demonstrei – um amigo jamais aumenta a preocupação da mãe do outro, o castigo por preocupar os pais varia de dois a dez dias sem sair de casa –, mas meu espanto era ainda maior: como é que eu não sabia onde ele estava? Sua mãe mal virou às costas, surge da esquina o vulto raquítico dele.
– Minha mãe passou aqui, né? Deve estar indo para a casa do Márcio agora, depois me procura na pracinha e volta para casa – disse, safo.
– Acho a cinta vai cantar lá hoje, né? – redargüi, meio complacente e, talvez, com um leve sorriso. – Mas onde você se meteu, afinal?
– Vamos lá em casa que te mostro. É até bom você estar lá comigo quando minha mãe voltar, ela tem vergonha de bater em mim na frente dos outros.
Mesmo sabendo que minha presença era medida paliativa – nós dois sabíamos disso – e que, de banho tomado, eram as regras daquele tempo, eu não poderia sair de casa para badernar, pulei o portão e nos pusemos a correr pelas ruas. Saltamos da calçada para dentro da casa sem usar a viga, subimos com cuidado, mas rapidez, pela escada de degraus estraçalhados, entramos na casa por um buraco onde deveria ter uma janela, passamos por quarto, sala e chegamos ao fundo da casa – onde ficava um espaço que sugeria que iria se tornar um outro quarto um dia. Onde, como eu suspeitava, a casa terminava.
– Cuidado para não enroscar na grade – indicava enquanto se contorcia para passar onde seria a janela do projeto de quarto.
Arranhei as costas na grade, mas consegui atravessar a janela, pulamos uma muretinha à esquerda e chegamos num ambiente que parecia um universo paralelo.
– Aqui é o meu esconderijo-secreto – anunciou.
“Um esconderijo-secreto!!!”, em pensamento tão alto que não sei se apenas pensei ou deixei escapar entre os dentes. Era um terreno que tinha menos de um metro de largura, em barranco, onde, com algumas tábuas que sumiram de sua casa sem seu pai perceber, ele construiu um quartinho de madeira na pirambeira. O lugar estava cheio de parafernálias, como um ninho de rato. De cara, reconheci uma bola de capotão que a molecada da vizinhança andava procurando. Tinha lanterna, potes de bolas de gude – sem dúvida, algumas delas já haviam me pertencido –, gibis, pião, bilboquê, aquaplay: presentes que a vizinhança oferecia.
– É aqui que eu venho quando quero ficar sozinho.
Percebi naquele fim de tarde, pela primeira, vez a beleza, e necessidade, de ficar sozinho; com meu amigo de dez anos que criou um universo só seu. Entre paredes que ofereciam os sussurros de sua casa e da casa de sua vizinha sem que ele precisasse oferecer nada em troca. Era um fantasma quando estava lá. Voltamos para dentro da casa quando ouvimos a viga que iniciava a casa soluçar com os passos pesados da mãe. Pelo olhar dela, confirmei com os olhos para meu amigo: “a cinta vai cantar”; ele ameaçou sorrir: já estava calejado.
Recusei o convite para jantar e desejei sorte para o meu amigo: a noite mal estava começando para ele. Voltei para casa chutando pedras e olhando pro chão, dobrei uma esquina e surgiu minha casa, como a casinha da Barbie: a coisa mais sem graça que poderia existir. Minha mãe no portão, não disfarçava sua preocupação.
– Se o seu pai chega em casa e você está na rua, já viu, né? Afinal, onde você se meteu?
Sem o menor cuidado para disfarçar o meu incômodo, respondi enquanto entrava:
– No castelo do He-Man – e entrei com desgosto em minha casa perfeita.