21 de novembro de 2011

Luísa quer aprender a ser feliz

A limpeza e a organização da superfície sem rugas de sua mesa de madeira de maneira alguma despertam a curiosidade ou preparam a expectativa de seus convidados para as gavetas inundadas por papéis franzidos pelo sulco de lápis que já perderam a ponta. Luísa segue destemida e concentrada em seu cenário. Focada em seu trabalho e em manter a mesma organização em sua vida. É lisa a testa, como a maça do rosto, como o aceiro ao redor e entre as sobrancelhas e as sutis estrias no canto dos olhos. O sorriso há alguns anos deixou de fazer cova e a vida apenas a espera.

As folhas manchadas envelhecem histórias impublicáveis. Não por pudor-cristão-bobo – recato que, além de a cada dia estar menos em voga, Luísa jamais alimentou. Na gaveta emperrada estão registros sem memória; passado isolado; blecaute; esquinas erradas; esboços de uma personagem que viveu e desapareceu na trigésima página do livro: o romance perdeu seu protagonista; a ficção está no cacifo; Luísa pode viver indiferente. Dobrados, amassados, rasgados e presos, os registros de um passado não tão distante são letras embaralhadas: anagramas emperrados.

Às vezes distraída, esquece de deixar o orbe oco do atelier que carrega em si, e unta a argila fresca em suas mãos nas mãos de seus clientes; ou em torno-pescoço, nuca, peito, costas, quadril, bunda, pau, escroto e coxas de seus amantes. E sem querer cria modelos frívolos. Desenha sem querer estradas e mais estradas que não pertencem a mapa algum e nem mesmo estão conectadas entre si.

Em sua redoma, vedada, vive chapada para se desacostumar com a dor. Mesmo que às vezes a mente a traia numa música que toca abafada dentro da gaveta; na linha escrita por algum escritor que acidentalmente desvenda um ou outro de seus anagramas; na maconha que a solta da sacada. Nessas horas, como uma pontada, tudo volta e Luísa quer aprender a ser feliz. O lúdico surge à tona, respira um pouquinhos, mas educadamente volta a submergir. 

Só que hoje isso pode estar mudando. Enquanto as letras vão sendo desenhadas nesta folha, as mãos de Luísa, limpas de argila, parte lisas parte calejadas, estão sendo esculpidas por outras mãos e os seus olhos não encontram mais refúgio oco. Deixa desfibrilar o coração? Sente uma ponta de egoísmo, duvida um pouco de que tudo possa dar certo e sente o vazio de tudo que conquistou sem paixão.

14 de outubro de 2011

Jarbas não quer morrer



Desperdiçando mais uma chance de garantir alguns tostões, entregando as pálpebras à gravidade do sono e o espírito à sua liberdade flutuante, enquanto dorme numa cadeira universitária, na sala de espera de uma empresa de telemarketing, Jarbas não escuta o chamado para o início da dinâmica entrevista em grupo que será na sala ao lado. Os outros poucos candidatos que também aguardam, acordados-sadios, levantam-se e vão. Jarbas dorme.
Dorme sem querer acordar; dorme sem querer dormir; sonha sem saber. Jarbas não pensa em morrer, ou que morre a cada intermitência de sua consciência. Às vezes, sonha sem saber, ou querer. Entorpecido a qualquer hora, como nesta sala de espera, enquanto faz jus ao nome da sala, entregando-se com esperança de ouvir o seu chamado.
Voltando para casa, andando na calçada, olhando à calçada, para as pessoas, para os sapatos ora desamarrados, não sabe dizer o que quer: olha tudo sem foco.  Mas, sem saber, quer o cadarço amarrado, quer o sapato calçado, quer uma chance; não desperta ou pensa em ter foco. Pensa na vontade, pensa na carteira. Anda e atravessa. Atravessa sem vontade.
Jarbas às vezes pensa em morrer. Não quer casar, não quer construir, não quer garantir, não quer filhos ou lar que valha. O carro não quer vender nem pode abastecer.
Mas mesmo sem pensar ou ambicionar, sabe aonde o leva os calçados desamarrados. Não ao lindo futuro. Não ao personagem que inspire ou sirva de exemplo em comerciais de margarina; tão pouco perfil de alvo da próxima campanha publicitária do novo sedan da Toyota. Vai para onde recebe a recompensa imediata – ao amigo, a qualquer mulher, ao botequim. Nessas horas, com seus pares, encontra-se consigo mesmo. Enxerga, argumenta, defende, se expõe; deixa de se sentir ficção.
Então, entusiasmado, eufórico, inventa o seu próprio futuro e suas únicas alternativas para refazer o seu destino. Inventa o aplicativo que oferece o playlist das rádios; o pão de que já vem em três fatias; a rede social que aproxima as pessoas que estão próximas umas das outras; um par de luvas-retrovisor, com um pequeno espelho flexível em cada palma; um quiosque numa praia poluída que se chama Impróprio para o Banho, a coleira-gps para ninguém mais perder seu animal de estimação ou seu companheiro.
E Jarbas não quer morrer.
Quando chega ao ápice, goza o pleno prazer e dorme. E goza os melhores sonhos. Por vezes têm super poderes: mediunidade, invisibilidade, pode voar, lê pensamentos, anima objetos. Mesmo quando morre, acorda com o tórax às vésperas da quarta-feira de cinzas, mas com a lua decrescente estampada nos lábios de seu rosto. É a sua vivência; a maior experiência que carrega.
Ao acordar volta ao seu estado letárgico e tudo volta a ser invenção em seus delírios; nada se materializa. E embora a vida lhe pareça um tanto inadequada, Jarbas não quer morrer. Míope, volta a procurar em sua ilha o espaço para a sua realização. A morte lhe chega como matéria produzida. Solução prática, mas pobre, comum demais – até um pouco brega. Prefere deixá-la apenas como substantivo para a sobrevivência de suas religiões.     

16 de setembro de 2011

Carta a Luiza

Olha, eu estou tentando, mas está difícil sair algo novo. Então recorri a um texto "de gaveta". Noutro tempo; numa dedicatória. Peço licença à homenageada, Luiza, que nasceu um dia antes deste texto, há quase três anos.
É uma homenagem da qual, com a modéstia a escanteio, me orgulho. Com a ajuda do mestre Caetano e, claro, da pequena musa.



Cabedelo, Paraíba, 22 de novembro de 2008
               
Seja bem-vinda, Luiza!

                                                                               “Luz do sol/ Que a folha traga e traduz/ Em verde novo/ Em folha, em graça, em vida, em força, em luz...
                                                                              Céu azul que vem/ Até onde os pés tocam a terra/ E a terra inspira e exala seus azuis...
                                                                              Reza, reza o rio/ Córrego pro rio e rio pro mar/ Reza a correnteza, roça a beira, doura a areia...
                                                                              Marcha um homem sobre o chão/ Leva no coração uma ferida acesa/ Dono do sim e do não/ Diante da visão, da infinita beleza/ Finda por ferir com a mão essa delicadeza/ A coisa mais querida, a glória, da vida...
                                                                              Luz do sol/ Que a folha traga e traduz/ Em verde novo/ Em folha, em graça, em vida, em força, em luz”.

                               Escolhi esta música de Caetano Veloso, que presta homenagem ao nascimento do sol, para dedicar a sua chegada, Luiza. A música canta bonita para mim, como li bonita as linhas que seu pai escreveu te anunciando. O sol, e a sua luz, como logo perceberá, traz a todos, igualmente, força para seguirmos nossas vidas e realizações. Aproveito esta dedicatória, para chamar sua atenção aos olhos, e olhares, – apaixonados – que recebe de seus pais, parentes e amigos: Luiza, “a coisa mais querida, a glória da vida” é “verde novo, em folha, em graça, em vida, em força, em luz”.
                               Alegra-me muito sua chegada, Luiza. O mundo que te recebe, e que te acolherá, precisa de boas pessoas. Nasce você em “berço esplêndido” – como canta o hino da pátria –, sendo filha de Fernanda e Gustavo, tenho certeza que chega para fazer do mundo um lugar mais belo, justo, honesto, agradável; enfim, melhor. Tem em casa excelentes modelos para isso, saiba.


                               Mais uma vez, seja bem-vinda, pequena Luiza. Materializo nestas linhas, meus melhores e mais profundos votos de felicidade, paz, alegria, saúde... Nesta grande sala de aula que é a vida, há espaço para brincar, se divertir e fazer muitos amigos com os quais poderá contar sempre: aqui, atrás destas palavras, tem um.
                               Um grande beijo, com o coração aberto à amizade.

21 de janeiro de 2011

Apenas um trecho...

 Ando meio sumido daqui, por isso, resolvi postar um trecho de um texto que eu não sei no que vai dar.  Espero postar com mais frequência neste 2011 que está apenas em seus primeiros passos.

Abraços.

“(...) Embora algumas pessoas manifestassem grande insatisfação por, de uma hora para a outra, passarem a viver na cidade de o Quinto dos Infernos, foi necessária a organizada igreja católica entrar em ação para que o repúdio por aquela instituição se tornasse algo organizado. Juntou fiéis, preparou manifestações, comícios em praça pública; entendeu que o momento era de união entre os cristãos e, liturgicamente, propôs a união entre católicos e protestantes – mesmo assim, reunidos, católicos e protestantes decidiriam, por bem, manter suas imagens distantes de representantes das religiões negras, como o candomblé ou a umbanda, mesmo que estes demonstrassem ser contra o Quinto dos Infernos. Enfim, formaram a, batizada, “A união contra o mau, sob a graça do Senhor”. Batinas e ternos se revezavam sobre os palcos em atos ecumênicos. A uma semana da inauguração, organizaram seu evento principal. Exatamente ao meio-dia da sexta-feira, dia seis, as igrejas evangélicas e a católica, em sua matriz, abriram suas portas para seus seguidores assinarem um abaixo-assinado contra a abertura do Cemitério Quinto dos Infernos. Uma procissão iniciada na igreja matriz deu início às duas da tarde, passando por todas as duas igrejas evangélicas da cidade, unindo seus fiéis e cadernos assinados rumo à sede da prefeitura, onde pretendiam evocar o prefeito a atuar por eles, junto a Deus. Embora uma análise minuciosa pudesse revelar alguns números de CPF repetidos, nada tão escandaloso, apresentaram ao prefeito mais vinte mil assinaturas e uma multidão a vazar pelos ladrões – ruas adjacentes – à sua porta. A esta época, a imprensa nacional já havia cumprido seu papel divulgando o estapafúrdio cemitério, o que levou à cidade fiéis de todo o país, que puderam gozar da recém inaugurada rede hoteleira da cidade, para a manifestação. Era um salto político para o prefeito; a maioria das pessoas que aguardavam a sua aparição sequer sabia o seu nome, que dirá partido político. Clamavam por um representante político com o coração tomado por divina sensibilidade e ofereciam, à sua porta, sabia o prefeito, uma oportunidade para santificar o vosso nome. Antes de emergir pela sacada da prefeitura, pensou no senado federal.
O anúncio, semanas antes, da procissão que culminaria na prefeitura, deu tempo para que o prefeito pudesse decorar um discurso carregado de citações bíblicas, parábolas importantes, outras menos famosas, que enchiam de ternura e admiração o distinto público. Confessou ter trocado diversos telefonemas com o governador e até senadores alertando sobre o mal que estava prestes a se instaurar naquela região, a qual, segundo ele, trazia estampada em sua natureza e seu povo provas mais que suficientes de se tratar de uma terra abençoada por Deus. Garantiu, ainda, crer que nenhum enlaço legal pode suprimir a vontade de Deus, o que o dava absoluta confiança de que aquele pandemônio tinha seus dias contados. Comovido, lamentou as limitações de seu cargo, mas prometeu ir até onde fosse necessário em sua carreira política para, envolto aos princípios cristãos, atuar de maneira firme para que entidades como esta entendam que este planeta pertence a Deus. Por fim, pediu que os representantes religiosos o aguardassem e caminhou como pôde entre apertos de mão, abraços, cumprimentos eufóricos, até o caderno e assinou o abaixo-assinado. De volta ao interior da prefeitura, ouvia os aplausos, seu nome se espalhando pela multidão, mas, mais alto do que tudo, o seu pensamento: “senador”.
Sem demora, o prefeito tratou de convocar seus assessores, chamou sua equipe jurídica que, como se sabe, e o prefeito sabia bem, quando se trata de arrumar mais trabalho entram à sala de reunião cheios de negativas. Mas, neste caso, tinham razão. Não havia na legislação nada que pudesse proibir o funcionamento do cemitério. No entanto, o mais importante era demonstrar vontade política. Mostrar para a população cristã que o poder público daquela cidade era sua aliada. A manifestação ecumênica surtiu efeito e, desde então, a cidade passou ainda a conviver diariamente com a imprensa. Alguns ficavam como sentinelas à porta do cemitério, outros entrevistavam pessoas, buscavam informações sobre a região; programas de culinária falavam dos pratos da dona Zefa e até o time de futebol da cidade ganhou espaço em programas esportivos. Tornou-se parte da rotina do prefeito atender a imprensa ao término de cada redundante reunião, onde, às portas fechadas, pouco, ou nenhum, avanço era apresentado. Todo o fim de tarde, o prefeito era figura carimbada nos telejornais policiais. Sempre suado, demonstrando certa fadiga pelo empenho contra o Quinto dos Infernos. Nada poderia ser mais paradoxal. Já que, além de sua ascensão política pouco caminhar ao lado dos interesses da população, longe disso, até este momento, era o prefeito o maior beneficiário daquela construção e a quem mais interessava o seu sucesso: invariavelmente, é necessário um vilão para que se crie o herói. Em tempos mornos, onde os grandes vilões vestem-se cada vez melhor com a manta de cordeiro e escondem a cara ao tapa, o Cemitério Quinto dos Infernos era um achado(...)”