6 de julho de 2007

O elefante que se apaixonou por um aspirador de pó

Não podemos dizer que estivesse na vida adulta há muito tempo, mas não era, absolutamente, jovem. Fazia algum tempo que caminhava sem a necessidade das orientações dos pais e, embora tivesse em seu pai o símbolo máximo de intelectualidade – sempre se lembrava dele por sua memória acima da média de toda a manada –, se sentia muito à vontade para decidir quais as melhores rotas e acomodações; escolher o melhor verde para se alimentar; saber qual parte do rio oferecia a água mais refrescante. Carregava uma experiência razoável para uma boa vida e um futuro tranqüilo; mesmo assim, não era desgarrado. Nem se quisesse poderia ser: como todos os seus companheiros de trombas, vivia na propriedade de um grande pecuarista numa gigantesca fazenda da África do Sul.

Quando analisamos um acontecimento por completo – com informações do princípio, meio e, principalmente, fim –, é praxe nos apropriarmos dos resultados de cada etapa para julgar qualquer suspiro de quem realizou a ação anterior. Nagu era um elefante como outro qualquer de sua idade. Carregava ainda nos olhos a obstinação por realizações que pudessem surpreender seus amigos e parentes, embora começasse a perder aquela inquietude por resultados imediatos. Era simples, sério, calmo e, acima de tudo, discreto. Um modelo como tantos outros ao seu redor. Ninguém que o conheceu, ou mesmo que tenha dividido intimamente sua companhia, seria honesto se viesse hoje apontar qualquer característica de Nagu como sinal para a desordem para o que seu coração de elefante aprontou.

Talvez movido por uma brisa de tédio – monotonia comum para bicho que vive resguardado pela segurança de território demarcado e vigiado –, resolveu que sua caminhada naquele fim de madrugada, começo de manhã, o levaria ao pomar próximo a sede da fazenda. Não era comum aquele passeio; tanto no que diz respeito ao horário, quanto à área a ser visitada. De fato, quando os donos da propriedade queriam ver seus elefantes, precisavam chamar um capataz com jipe e viajar, muitas vezes, por até meia-hora para encontrá-los. E, se fizessem questão que eles estivessem acordados (bem-dispostos), preferiam o fim de tarde.

Pretendia beliscar algumas jabuticabas do pomar, mas não era isso que motivava seu passeio. Para Nagu, as frutas que por lá brotavam não faziam sua retumbante tromba saracotear. Passeava por passear, já que os olhos teimaram em deixá-lo acordado mais cedo. Só.
Demorou muito para chegar. O céu clareou ao compasso lento dos passos pesados de Nagu e chegou ao azul definitivo – chamo de definitivo para intensificar a claridade da manhã; sem ser apocalíptico ou desrespeitoso às matizes azuis do céu – assim que ele parou para descansar, em frente a casa. Ouvia o barulho da vassoura e, de onde estava, via que, pelo corredor da esquerda, uma porta da casa espirrava o pó.

“Sede”. Havia se esquecido das sérias implicações que se afastar do rio oferecia. Isto era elementar para a sua sobrevivência. De repente, um choque! Pensou, “havia se esquecido das implicações que se afastar do rio causava”! Pensou que havia esquecido! Por ter a memória como principal fonte de orgulho, os elefantes esquecidos – e isso é raríssimo. Uns lembram mais que outros, mas poucos se esquecem – sentem a pior das angústias. Com as orelhas e a tromba – arqueada entre suas patas dianteiras – arrastando no chão, Nagu, cabisbaixo, caminhou até um enorme pneu de trator que estava apoiado num cercado e guardava um pouco de água da chuva.
Tomado por grande humilhação, mal conseguia forças para sugar o líquido. Distraído com a água que o pneu reteve da chuva, escutou um som inédito: chiado, com acelerações intercaladas, às vezes com o som abafado, às vezes mais estridente; resultado da luta entre gás-poeira e sólido-tapete. Nagu esqueceu, e desta vez fez bem, a tristeza para valer a curiosidade. Olhava através da circunferência de seu reservatório de roda gasta de trator para a casa, que havia se tornado, amplificadora daquele som.

Conforme o tempo passava, o som, que trazia a característica rara de ser tão monótono enquanto é imprevisível, ia aumentando. A porta principal da casa se abriu e surgiu uma jovem negra enrolada em panos, vermelho e branco, e carregava por uma alça um pequeno instrumento de onde vinha o som. A euforia causou em Nagu seu terceiro esquecimento da manhã, desta vez com conseqüências. Entretido, como estava, esqueceu sua tromba dentro da roda do trator e, resultado dos segundos sem respirar pela apreensão em conhecer o irreconhecível, quis sugar com força todo ar ao seu redor, mas sua tromba estava sob a água suja que o pneu guardou da chuva.

– (aumente o volume) *!!*!!!!*!!!!!*!!!!!!*!!!!!!!!*!!!!!!!!!!*!!!!. – Nagu acabava de lançar o (sem medo de errar) seu mais forte bramido.

O coração da jovem que aspirava a casa se absorveu por um sobressalto e o susto que a atirou ao chão; com o tranco causado pelo salto da moça, fugiu da tomada o cabo elétrico do aspirador que silenciou; os pássaros, que piavam em seus galhos, também decidiram pelo silêncio. Nagu tratou de se esconder numa árvore próxima que o tronco, de tão fino, mal escondia sua tromba. Alguns segundos passaram como que se o barulho do espirro do elefante tivesse feito o tempo parar por ali: nem sinal da governanta negra, pó em paz no carpete e nenhum pio os pássaros ousavam. De onde estava, olhava o aspirador deitado em silêncio no chão com sua mangueira apontada para ele. Ficou por volta de um minuto registrando cada detalhe do aspirador de pó. Até o capataz chegar de jipe com a espingarda carregada nas costas.



• • •

Um único disparo bastaria, mas o capataz deu pelo menos três tiros para cima enquanto Nagu adiantava seus passos de volta à manada. Completamente compenetrado em si, após sua longa caminhada, passou reto (sem ao menos ouvi-la) por sua mãe que queria saber por onde ele tinha andado e entregou seu corpo que fervia pela viagem a um banho de rio.

Demorou um pouco para se refazer. Conversou com a mãe sobre a longa viagem e quase fez de seu pai um elefante-branco ao perguntar se sabia o que era aquele objeto que o capataz trazia nas costas e que fazia um barulho de pequeno trovão. Mesmo estando em companhia mais que confiável e com o pensamento totalmente refém por aquele pequeno pedaço cúbico de plástico, mangueira, botões, fio e alça, em nenhum momento passou por sua cabeça falar sobre a outra máquina barulhenta que havia conhecido no mesmo dia.

...continua

5 comentários:

Anônimo disse...

Oi Gugu,

Ainda nao tinha visto este texto ... adorei o nome do elefante, muito criativo ! rs.

Não sabe o quanto estou ansiosa para o final ou os finais desta história. Adoraria 'ver' um final feliz, mesmo que nao seja verdadeiro, mas que seja feliz !

Muitossssssssssss beijos !!!

Anônimo disse...

Ja vi tudo... Nagu vai se ferrar... Gustavo, tem como alguém o avisar?

Anônimo disse...

Gustavo, gostaria de te fazer um convite, mas não tenho tenho e-mail. Me escreva, por favor.
renatamiloni arroba revistamalagueta ponto com
Abraços!

Anônimo disse...

Que texto bonitinho. Linguagem lúdica, poética. O encontro com o novo, o inesperado.

Termina logo o texto para eu saber o final!!!!!! ((mesmo acreditando que as melhores coisas estão no caminho e não no ponto de chegada)).

Parabéns,

beijos

Anônimo disse...

Ola:

Só para deixar registrado , afinal eu nunca consigo...

Eu adoro esse texto!!!

Camila ( boy)