27 de agosto de 2007

Antônio não quer imaginar



Fotos: Calebe Simões





De olhos fechados, todas as imagens esperam chegar ao homem pela sua imaginação. Assim como o homem, de olhos fechados, espera que as imagens e sensações, antes registradas, transitem por suas correntes de nervos tensos e se formem bem ali, dentro dele. Antônio, não. Fecha os olhos e tem o som do vento que entra em seus ouvidos; com as mãos, tem a terra úmida, cachaça úmida, mulher úmida; respira e tem do mato, quando está no mato, da cachaça, quando está no bar, e da mulher, quando está na cama, o cheiro. Antônio, com olhos fechados, não pensa. Os cheiros e os ventos agradam, ele não imagina porquê.




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O contraste, como é praxe, existe. Embora haja na cabeça de Antônio o monótono, porém confortante e, acima de tudo, tranqüilo marasmo de pensamentos, há em seu trabalho a exigência brutal de seus músculos. Mas ele também não sabe disso. Desprovido de qualquer questionamento, acorda, porque deve acordar, bebe o café e engole o pão, porque é assim que tem que ser, e parte para o canavial, porque é o seu dever. Antônio deve à vida e paga durante 12 horas todos os dias. A mulher de Antônio deve a Antônio e paga varrendo seu chão, preparando sua comida, lavando suas roupas e deitando ao seu lado nas noites que o esgotamento dele se esquece.





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A cana era cortada, o chão era varrido e uma cova era aberta. A mulher de Antônio pensava e varria. Por anos, pensou no sacrifício do marido para colocar um punhado de comida para os dois; outros tantos anos, pensou no filho que não puderam ter; e, por fim, pensou que não devia nada para a vida. Entregou-se à turbulência que a descoberta trouxe. O dono da quitanda foi simpático atrás da balança vermelha com prato cobre e a mulher não foi mais de Antônio. No dominó sob a única luz amarela da varanda de madeira da vendinha da vila, a notícia se espalhou. Não fosse pela mãe de Antônio, que sofria, sob o cuidado de vizinhos, seus últimos dias, o marido seria o último saber: o que não quer dizer que demorou muito a saber.


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Antônio deitou a mulher e a cobriu com terra. No dia seguinte, a terra do chão de sua casa roçou a sola dos sapatos de Antônio, que foi trabalhar sem café. Como pode perceber que imagina quem nunca imaginou? A cada piscar dos olhos de Antônio – que parecia dever ao dono imagens que não viu – saltava sua mulher nua com as mãos acariciando o peito e os pêlos do quitandeiro; calava a visão por mais um instante, ela jazia morta; novo beijo entre as pálpebras, lhe vinha o sorriso quinze anos atrás durante a festa junina.



Para o melhor manuseio da cana-de-açúcar do canavial ao depósito, o bóia-fria deve entregá-la inteira.



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Às costas de Antônio, uma vida dedicada em terra fértil onde nunca existiu por que. Sua cabeça tirou a sua força e a cana triturada custou o sustento de quem não tem quem sustentar. “E agora, fazer o que?”.


16 de agosto de 2007

Confessionário de asfalto

Não dói. “Morrer não dói”, sempre me disseram. Quando ouvi o estampido e senti a carne de minhas costas sendo atravessada e minha costela estilhaçando, meu coração ameaçou acelerar seu exercício, como num susto; apenas ameaçou. Acho, mesmo, que sabia que logo não teria mais que trabalhar. Por isso, tratou de cadenciar suas batidas e irrigar pelos caminhos de minhas artérias grossas, em meu sangue grosso, pela última vez cada ramalhete de veias com um sentimento de paz.

Eu atravessava a rua para me apoiar na banca de jornais, onde costumava encontrar a minha criançada. Meu trabalho era encontrar crianças que foram abandonadas, ou que abandonaram suas famílias, e gerenciá-las. Por um pouco de cola, às vezes maconha, meninos e meninas espalhavam-se entre os carros, de janela em janela, e recolhiam – sempre com o consentimento do condutor – moedas de centavos. Às dez horas da noite, iam todos para a banca de jornais fechada e esvaziavam os bolsos – quando, em sua roupa, bolso cabia –, ou sacolas, nesta caixa de sapato que trago sob meu corpo, no asfalto.

Muita gente não gosta de mim. Sabia que alguém reservaria uma bala para mim desde que meus meninos apareceram na televisão explicando meu trabalho. A impressão que eu tenho é que os justiceiros estão pelos pequenos bares, sentados em círculo, batendo peças de dominó, com as televisões sintonizadas nos telejornais sempre no último volume. Há uma denúncia – sem contar as de Brasília – não demora aparecer um corpo; chegou a minha vez.

Agora, espero pelo o que está por vir e seja o que deus quiser. Nunca achei certa a vida que levei, mas ainda me recordo como entrei nela. Vivia de trabalhos temporários, bicos e, vez ou outra, pequenos assaltos. Quando menino, roubava latas de cola de meu pai, que tinha uma sapataria na garagem de casa, para cheirar com meus amigos, mas nunca me viciei. Um dia, sem dinheiro e com o estômago nas costas, parei em frente a um trailer de cachorro-quente, e um garoto, também faminto, me pediu algum trocado para um lanche. Não tinha pra mim, vai dizer pra ele. Vi a cena do menino esfomeado, que pedia dinheiro para comer, se repetir em vão de mesa em mesa e – por deus que esta é a verdade –, com um sentimento de piedade honesto, o chamei. Eu lhe falei de um lugar onde nos sentiríamos no deserto. Sua gratidão me confortou. Partimos em silêncio.

Estávamos perto de casa. Desde a morte de meu pai, nunca mais havia entrado na nossa garagem e sabia que lá encontraria algum pote bem preservado de cola. Nós dois cheiramos e dormimos no chão da antiga sapataria. Quando acordei, o menino não estava mais lá. Voltou, dois dias depois, com outro amiguinho.

Pele esfriando no asfalto: confesso uma vida que desdenhou e se apropriou de tantas outras. Como ficarão meus meninos? Reconheci os erros que cometi, identifiquei como entrei nesta vida e não consegui me perdoar.