Das anotações de seu diário, ele, que há muito deixou de acompanhar o calendário, vive seus últimos longos dias. Eram páginas amarelas de um diário antigo. No tempo, o mais comum era morrer moço e, nos diários, os dias seguiam em anotações que, muitas vezes, não eram da mesma pessoa que os iniciava: a vida reciclava-se nas anedotas interropidas pelos pais mortos que os filhos continuavam. Não é o caso de Caderno Azul, que inaugurou seu caderno, assim como a sua pena, assim que foi apresentado ao alfabeto e carrega até hoje, sob seus olhos vivos, o diário de sua vida. Este livro, de relatos em páginas amarelas cobertas por capa verde, registrou seu último depoimento no dia 05 de agosto de 1927. Desde então, na época com cinqüenta e nove anos, seu proprietário passa as suas horas lendo as linhas e busca compreender as entrelinhas de tudo que viveu até aquele dia.
A história de Caderno Azul é daquelas lendárias. Lendárias, pode-se dizer, em povoados que nada têm de mais lendário a produzir do que seus poucos personagens. Afinal, Azul nasceu e vive há mais de um século num pequeno vale que pertence somente a deus e ao diabo. Onde os governos com seus soldados, policiais, delegados, capitães – como bedéis da desordem urbana – (...) juízes e ministros não chegaram e a ausência deles nunca foi notada. Enfim, a população habita um dos poucos lugares onde ainda reina a paz, a ordem – em desordem honesta – e o bom-senso. Em qualquer grande cidade, boas histórias – como a de Caderno Azul – se perdem no zum-zum-zum dos dias de trabalhar.
Caderno Azul é conhecido mesmo antes de nascer. Seu pai, forasteiro, chegou ao vilarejo de sabe-se-lá-onde com vinte e três anos e, mesmo com toda a desconfiança que o cercava, logo anunciou que chegará para ficar e procurava uma boa mulher para ser mãe de Caderno Azul. Uma única aspirante a mãe de Caderno Azul apareceu logo. Mulher de belo corpo que, à época, com quase trinta, fazia crer que as belas curvas de seu corpo estavam com os dias contados. Os anos contrariam a expectativa. Caderno Azul iniciava sua adolescência e sua mãe ainda inspirava suspiros, em sua maioria, velados.
Registrado em dia dezenove de outubro de mil oitocentos e oitenta. Azul tinha doze anos, sua mãe quarenta e um: “Mamãe e eu passeamos para trocar a saca de arroz por umas galinhas e leite. As ofertas não agradaram mamãe, mas o que deu o que falar foi um moço que parecia oferecer um cabrito ranhento em troca de algo sussurrado ao seu ouvido. Uma grande confusão se armou. Um amigo de meu pai, que passava por lá na hora, quase deu com a mão no rapaz. Já em casa, obedecendo minha mãe, fui para o banho. Quando saí, papai estava furioso e o amigo que antes queria bater no rapaz tentava convencer meu pai a ficar calmo. Por fim, conseguiu acalmá-lo. Fiz as minhas lições para a aula da professora Joana”.
Há oitenta anos que a vida de Caderno Azul é baseada em anotações de cinqüenta e nove anos vividos. Lê e relê, linha por linha, suas anotações. Às vezes pára, olha distante com a mesma expressão que oferecia às páginas do diário, e curva-se outra vez às suas anotações. Certa vez, o mensageiro, que girava a matraca e convidava quem estivesse ao alcance de seu som para ouvir as notícias do mundo, calculou que Azul lia a última página de caderno a cada quatro meses. Mas não havia precisão no cálculo. A leitura de Azul, embora regular, não trazia linearidade.
Nunca ninguém leu ou entendeu o que levou Azul ao estado letárgico em quê vive. A população entende este personagem apenas como um velho, coberto por farrapos, com a pele carcomida por sol e chuva e as pernas plantadas sob a terra até a metade das canelas. Consumido, pouco-a-pouco, pela memória, pelo tempo e pela terra. Quem lesse o diário saberia, nas anotações da juventude, de suas súplicas esquecidas por Maria, dos desafetos com João e dos pecados com Sebastiana. Em algumas páginas, como as que homenageavam a morte dos pais, encontrariam pequenos círculos amarelados e enrugados. Se Azul permitisse expectador às anotações, saberiam que desenhava bem: tinha o altar, no dia do casamento, e o pequeno caixão de seu filho, meses mais tarde.
No entanto, mesmo que lessem, não entenderiam Caderno Azul – seu pé de raiz, seu diário roto, seu silêncio – isolado, plantado há décadas na praça central da cidade. Não foram os golpes ou galanteios da vida que o transformaram em excêntrico personagem lítico, mas a observação contundente de que, mesmo em sociedade das mais justas, o homem segue empresa daninha. Neste pequeno vale, sem governo, onde a ordem pública – ao contrário de uma, que, em nome da liberdade, admite inúmeras injustiças; ou de outra, em determinado momento, em nome da justiça, apresentou a severa face castradora, devorando a liberdade – oferece o mais sensato dos convívios, Azul se cansou das mesquinharias seguidas que o convívio com as outras pessoas oferecia diariamente. Sem Casa Verde para apropriá-lo, plantou-se em praça pública para assistir, em seu diário, repetida vezes sua vida e tentar encontrar o que o torna humano.
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