27 de novembro de 2008

Sonhos sonhos são

Se fosse por deus um dia convocado a, por uma tarde que fosse, elucubrar e discutir sobre suas criações – os mundos, as pessoas, os animais e tudo mais o que fez e assinou – sei o elogio que faria para envaidecer o nosso senhor. E não faria tendo em vista ganhar ao algum prestígio junto à entidade máxima; receberia minhas palavras por merecimento – a partir do que vejo nas coisas, claro. No entanto, embora o elogio seja completamente honesto, provavelmente, como forma de retribuir-lhe a palavra quando tivesse retomado a simpatia por mim, adotaria um discurso que iniciaria pelas críticas e encerraria no elogio.

Tão difícil, perto do impossível, encontrar natureza pura, cheia em prós e sem nenhum contra. Vejo, em tudo, árvores traiçoeiras, que oferecem frutos lisos em sua superfície, enquanto carregam bicheiras em suas entranhas. O mar, marchando como soldados sem sair do lugar, diz que por ora, talvez por um acordo entre cavalheiros, não invadir terra adentro; por ora! O vento vez em quando bate uma de minhas portas para lembrar que está aí; a chuva castiga com seus excessos, ou largas intermitências. O temperamento dos climas, o temperamento dos bichos.

Se em tudo que vejo há um quê de perigo, guardo para onde os olhos descansam, assim como a consciência, meu elogio: “deus, você acertou quando nos deu os sonhos”. Que belo trabalho. Há aqueles que preferem se restringir ao seu tempo e espaço e não vem à tona quando despertamos; mesmo a estes agradeço. Acordamos um pouco diferentes todos os dias sem saber por quê. Mesmo assim, talvez por características minhas – de certo, existem os que se assustam com os sonhos que têm e devem discordar de mim –, prefiro acordar trazendo o sonho comigo: recordar sob o chuveiro, enquanto ensabôo o corpo, a estranha história do macaco que, único habitante de uma ilhota perdida num oceano qualquer, atira bananas e cocos enquanto eu circundava aquele terreno dentro um minúsculo caiaque de volta ao continente. “O que será que tem esse macaco comigo?”, enquanto água e sabão vão levando ao ralo os detalhes desta história tão viva há segundos atrás.

E os sonhos dão-se de diferentes formas, graus, intensidades; têm seus caprichos, são adivinhos às vezes; ora sentem-se impregnados e são conduzidos por nossas angústias. E, do mesmo jeito que podem passear pelo nosso consciente durante os primeiros momentos em quê acordamos – é raro, mas acontece –, podem convidar nossa consciência para participar da fantasia.

Uma grande amiga de minha esposa trouxe outro dia à nossa casa uma história fantástica. Seu marido havia desaparecido. Segundo ela, quando acordou o sujeito estava às voltas pelo quarto; ora levava uma mão ao queixo, ora coçava a nuca. Nunca o vira acordar assim. Perguntou o que ele tinha; se estava bem. Quando ouviu sua mulher, finalmente ficou estático: “Querida, tive hoje a experiência mais fascinante de minha vida”. “Nunca o vi com aquele olhar”, dizia a mulher à minha esposa, enquanto eu assistia a história de longe. “Estavam todos lá” – repetindo as palavras e olhos do marido – “você, seu irmão, meu irmão, o cachorro da rua, a dona Sônia, a dona Maria, a dona Madalena, o homem da banca de jornal; o homem da banca de jornal!... todo mundo... meu chefe estava lá, meu estagiário; o cara da informática... Estávamos na chácara de seu pai. Mas não parecia a chácara de seu pai. Era como se quintal da casa onde nasci pertencesse à chácara de seu pai. Meu Deus, como era nítido. Estavam todos lá... até quem já morreu estava lá... meu pai, meus avós, meus cachorros, o periquito... ao fundo, bem escondidinhas, vi até as capivaras que desciam do barranco para o rio todo fim de tarde e que eu ia ver com a minha avó. Como pode ter sido tudo tão nítido?!?”. “Parecia um completo maluco”, parava às vezes para alguma consideração, o que me irritava muito, já que narrava e interpretava com a competência de um ator profissional, e estas interrupções tiravam fluência. Mas logo voltava ao papel do marido com mesma competência. “Eu estava sentado naquele banquinho que fica embaixo do limoeiro vendo as pessoas. Estava acontecendo uma espécie de festa, que às vezes parecia quadrilha, às vezes aniversário de criança... mas com todos lá... Sorridentes; sem dúvida era uma festa. Aí, algo foi acontecendo lentamente... pouco a pouco fui percebendo que se tratava de um sonho. Isso já tinha acontecido outras vezes, mas não como hoje! Geralmente, quando sei que estou sonhando, não tenho domínio da situação, sou um espectador ao lado de uma espécie de alter ego. Desta vez eu estava dentro de mim, era eu, como estou agora na sua frente, com total domínio de meu corpo e mente...”; “Como se ele parece ter total domínio da cabeça ali”, se interrompeu a mulher mais uma vez. “... Lembra daquele filme maluco que vimos outro dia, Waking Life? Lembra da cena que onde um cara diz que quando estamos sonhando e não sabemos se é sonho ou realidade devemos procurar um interruptor e tentar acender e apagar as luzes? Ele diz que se for sonho não acontece nada, lembra? Então, é balela. Eu sabia que era sonho, tinha certeza, e resolvi fazer o teste. Apaguei as luzes do quintal e levei a maior vaia da festa inteira... todos me vaiaram! As luzes se apagaram quando inverti o interruptor, entendeu? ... Que bela experiência que eu propus, se não tivesse consciente jamais faria isso: comecei a avisar a todos que estávamos num sonho, por isso poderíamos fazer o que quiséssemos. Seu irmão foi o primeiro a olhar para mim como se eu fosse um débil mental...”. “Ele nunca gostou do Rodnei”, fez questão de dizer à minha esposa. “Alguns riam, outros nem ligavam e continuavam a dançar. Mas agora eu sabia que tinha controle total do que estava acontecendo. Era como se eu fosse o Neo em Matrix! Primeiro, fiz o som parar com a força do pensamento. Todos ficaram emparelhados a mais ou menos quatro metros de distância de mim. Aquela menininha, filha do seu primo, foi a única a dizer algo: ‘olhem, um sapo’. Vinha um sapo saltando no corredor que se formou entre mim e as outras pessoas. Então eu disse: ‘Quero saibam que estamos diante de uma grande experiência; talvez única. Todos nós estamos em um sonho e se tivermos lucidez disso, podemos fazer o que quisermos. Eu sei disso e vou provar’. Todos permaneciam estáticos e eu disse: ‘Sapo, voe’. O sapo foi por sobre a cabeça das pessoas, como só pode acontecer em sonhos. Era incrível! mas o mais incrível é que as pessoas não acreditavam que era um sonho, começaram, quase que em coro, a dizer ‘mágico, é um mágico, tem poderes’ e eu insistindo, em vão, a tentar convencê-los de que era algo fantástico por ser um sonho. Me sentia desnorteado; não sabia mais o que fazer para convencê-los... então, resolvi eu mesmo voar... sei lá, Cristo foi pastor andando sobre as águas, talvez comigo voando funcionasse... Voava meio se jeito, como se precisasse de equilíbrio para se voar. ‘Mágica, que baita mágico, é mágica’, era só o que se ouvia lá embaixo... não agüentei e fui tomado, vaidoso, tendo a ignorância de todos como aliada de uma fantasia macabra, anunciei: ‘Não sou mágico, sou o deus de vocês!’... Quando vi que eles começavam a acreditar, tive medo de estar comprando meu lugar no inferno pela blasfêmia e acordei”.

Há dois dias a mulher não tinha seu marido de volta para casa, não soube se voltou. Sabia dizer até aquele momento que ele foi para o escritório naquela manhã e pediu demissão sob a alegação de ser uma fraude entre tantas outras. Seu chefe, amigo de infância, não aceitou, mandou-o de volta para casa para descansar. Saiu sem dizer mais nada e sumiu.

Que bela experiência a deste homem; um privilegiado. Bom, vou agora pegar meu caiaque e visitar meu macaquinho da ilhota. Quem sabe não encontre por lá este homem que quer fazer de seu sonho a prova de que todos vivemos a sonhar.

3 comentários:

GNovo disse...

Música incidental: Sonhos sonhos são, de Chico Buarque...

Espero que gostem do conto.

Grande abraço,

Gustavo

Anônimo disse...

Gú,

Para um texto fantástico, um comentário meio maluco...rs

Dizem que em terra de cego quem tem um olho é rei...E na terra dos sonhos, pelo jeito também né...?
A diferença -sútil e brutal- talvez seja, de que no terreno dos sonhos a cegueira é -somente-necessária e no outro- dos homens-é voluntária.

Que vontade de ser o homem do conto e viver a sonhar...
Parabéns, pelo conto!!!

Beijos, beijos,
Joyce

Anônimo disse...

Fantástico!
.não mais me sentirei boba tentando relembrar cada uma das cenas fantásticas vividas nas ilhas dos meus sonhos, nem tampouco me sentirei boba na próxima vez que tentar mudar o roteiro dos meus sonhos.

Adorei!