Os pássaros anunciam o tempo dos sons e os dois podem rir um pouco mais alto: sobe o sol e aumenta o volume; até agora sussurravam. O dia tem o pé-direito alto, limpo, e encerra uma noite que faz valer a vida. Não dormiram.
Na noite anterior, quando ela chegou, o encontrou de banho tomado e sorriso. Ela adora seu sorriso, adora encontrá-lo de cabelos molhados. Apressou seu banho também – não passava das sete da noite –, para depois descobrir que, enquanto ensaboava o corpo, o vapor da água quente do chuveiro elétrico se cristalizava no espelho banheiro revelando uma mensagem – escrita a dedo – por seu amigo: “Hoje não precisará de espelho, verá em meus olhos como é linda. Com amor, seu menino”. Inflou de alegria, e vapor quente que dançava com o vento de sua toalha, e teve dúbia sensação de nunca mais poder lavar aquele espelho.
Ele mal tocou a comida encomendada. Beberam vinho, contaram e riram do passado que criaram juntos e dos passados que criaram separados. E se beijavam apaixonados, brincando. Depois re-inventavam a tristeza para chorar um no colo do outro. E se beijaram cúmplices, misturando as lágrimas. Declarações de amor, sonhos para fazer do momento o eterno, e se beijavam com os olhos. A noite toda: ora com a cabeça nos pés do outro, ora combinando as posições. Olhavam para teto e deixavam as mãos brincar, ou fechavam os olhos para os corpos se verem nus. Ela não ficava vermelha com as baixarias declamadas por ele.
A noite e a história acabaram e chegou a hora do adeus. Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite. Mas já era dia e ele jazia acordado. O sono iria encontrá-la em seu vôo de volta. Ele voltou para o quarto, re-encostou no colchão, sentiu o seu cheiro no lençol, no travesseiro e nas mãos e estacionou com o pensamento distante no futuro. Deveria prestar-se ao que sobrou, o cheiro, que, como sua amiga, também desaparecerá e o deixará para sempre a imaginar.
19 de fevereiro de 2009
12 de fevereiro de 2009
Casamento II – ou paixões e choros
Em alguns anos, os votos diante do padre se esquecem longe do coração. Em pouco tempo. A paixão resolve perambular para longe da casa e teimosa – talvez desesperada –, às vezes se deixa errar por um colega do trabalho, ou por um amigo novo de uma amiga antiga. E insiste lançando convites para que saia da redoma. Apaixona-se e desconfia que o mesmo aconteça com seu marido. Um antigo amor prepara-se para se tornar pai pela terceira vez. Sente inveja, desejou um filho dele como nunca desejou de seu marido – com quem, ao casar, tornou-se amiga e passou a se esconder.
As paixões surgem e desaparecem; ressurgem e somem outra vez; e se repetem até calejarem o peito e desaparecerem de uma vez por todas. Sem paixão, com um pequeno remorso por todas as noites que dormiu ao lado de seu marido carregando o vulgar de algum amante, deixa chorar. E sorri, durante o choro, ao lembrar namoros de antes de casar.
Nada litúrgico, sai do elevador de um prédio do centro cidade ajeitando a alça do vestido. Estrala, diante dela, a fechadura da porta metálica; não olha para o porteiro, fecha a porta, e saí. Saí, mas fica ali parada. Chora mais uma vez. Sentada no chão, apoiada na porta, atrás da porta, para fora, para a rua. Se não chorasse talvez explodisse, e chora como quem evita a explosão, em convulsões. Até que o choro acaba: de repente o choro parece não precisar mais e a deixa sob um leve desconforto... e vem o sono dizer que dormir é o fim do choro.
Não conhece o choro por solidão. Talvez inveje quem por solidão chora. Costuma fugir e se esconder quando quer chorar: gostaria de chorar parada.
As paixões surgem e desaparecem; ressurgem e somem outra vez; e se repetem até calejarem o peito e desaparecerem de uma vez por todas. Sem paixão, com um pequeno remorso por todas as noites que dormiu ao lado de seu marido carregando o vulgar de algum amante, deixa chorar. E sorri, durante o choro, ao lembrar namoros de antes de casar.
Nada litúrgico, sai do elevador de um prédio do centro cidade ajeitando a alça do vestido. Estrala, diante dela, a fechadura da porta metálica; não olha para o porteiro, fecha a porta, e saí. Saí, mas fica ali parada. Chora mais uma vez. Sentada no chão, apoiada na porta, atrás da porta, para fora, para a rua. Se não chorasse talvez explodisse, e chora como quem evita a explosão, em convulsões. Até que o choro acaba: de repente o choro parece não precisar mais e a deixa sob um leve desconforto... e vem o sono dizer que dormir é o fim do choro.
Não conhece o choro por solidão. Talvez inveje quem por solidão chora. Costuma fugir e se esconder quando quer chorar: gostaria de chorar parada.
6 de fevereiro de 2009
Casamento I – ou o ato litúrgico
A vida pareceu pedir um passo adiante; decidiu casar. Não que o noivo não importasse: importava, e muito. Mas tinha à mão um ideal: educado, amigo de seus amigos, bom amante, pouco dinheiro – como a maioria que pensam artisticamente –, mas de família abastada (no fundo, julgava que quando se casassem ele desistiria do violão e arrumaria um emprego com vencimentos); além disso, lhe agravada sua companhia. Nas novelas há sempre um personagem com as características do noivo: levemente, e estrategicamente, desarrumado, com a barba levemente, e estrategicamente, mal-feita, cabelos levemente, e estrategicamente, desarrumados.
A vida precisava dar um passo à frente e o passo foi dado. Mais duas semanas, ou dois jantares, e estavam noivos. Põem-se a escolher as madrinhas, os padrinhos, a paróquia, o padre, enquanto as famílias dos dois já estão feitas. Flores, vestido, terno, salão para receber os convidados, viagem e hotel para consumarem; tudo arranjado. Noiva tranqüila, noivo disfarça. No altar, está como que outra pessoa: totalmente, e estrategicamente, arrumado. A noiva tem uma crise. Chora copiosamente dentro do carro. “Cuidado com a maquiagem”; “está tão emocionada”; “é um dia muito importante”. A noiva chora; mas não pela emoção a qual a creditam. Não pelo precipício matrimonial, ou pelo noivo que com o qual trocará votos: a escolha do marido lhe parece digna; chora porque pretende cumprir seus votos e um adeus antigo teimou em voltar, desta vez, com caráter bem mais severo: como se finalmente aquele adeus se tornasse adeus.
Chorou, mas logo recompôs a paz. Deu todos os passos que subiram a escada, surgiu na igreja – “linda”, vibrou n’algum canto – firme. Sorriu para os amigos do colégio e faculdade, depois aos colegas de escritório, mais adiante aos parentes que não via há muito tempo, até encontrar as lágrimas dos irmãos na primeira fileira. Despediu-se do pai e se casou diante de padre, testemunhas e, como disse o padre, de deus. Mais tarde, deitou com prazer e ternura: finalmente, como ato litúrgico.
A vida precisava dar um passo à frente e o passo foi dado. Mais duas semanas, ou dois jantares, e estavam noivos. Põem-se a escolher as madrinhas, os padrinhos, a paróquia, o padre, enquanto as famílias dos dois já estão feitas. Flores, vestido, terno, salão para receber os convidados, viagem e hotel para consumarem; tudo arranjado. Noiva tranqüila, noivo disfarça. No altar, está como que outra pessoa: totalmente, e estrategicamente, arrumado. A noiva tem uma crise. Chora copiosamente dentro do carro. “Cuidado com a maquiagem”; “está tão emocionada”; “é um dia muito importante”. A noiva chora; mas não pela emoção a qual a creditam. Não pelo precipício matrimonial, ou pelo noivo que com o qual trocará votos: a escolha do marido lhe parece digna; chora porque pretende cumprir seus votos e um adeus antigo teimou em voltar, desta vez, com caráter bem mais severo: como se finalmente aquele adeus se tornasse adeus.
Chorou, mas logo recompôs a paz. Deu todos os passos que subiram a escada, surgiu na igreja – “linda”, vibrou n’algum canto – firme. Sorriu para os amigos do colégio e faculdade, depois aos colegas de escritório, mais adiante aos parentes que não via há muito tempo, até encontrar as lágrimas dos irmãos na primeira fileira. Despediu-se do pai e se casou diante de padre, testemunhas e, como disse o padre, de deus. Mais tarde, deitou com prazer e ternura: finalmente, como ato litúrgico.
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