Tomou um susto quando entrou, pela porta do fundo, na cozinha da casa onde trabalhava. Encontrou tudo de cabeça para baixo; ainda quente, como se a baderna tivesse terminado há poucos instantes. Garrafas pelo chão, dois cinzeiros transbordando, as cadeiras distantes da mesa central como se lutadores de sumo tivessem se reunido para uma roda de samba. Num canto, esquecida, a caixa-de-ferramentas que, até então, nunca tinha saído do armário da garagem, parecia ter passado por um tufão a parte: toda coberta por cal, destrambelhada, com o pó de outrora, agora, grisalho. A bagunça se espalhava pela sala, onde encontrou uma quantidade monstruosa de folhas de anotações amassadas. Pensou em seu salário, deu com os ombros e resolveu passar um café para ganhar ânimo.
Ao abrir a geladeira, uma garrafa de vinho pela metade, em pé, na grade superior, servia de apoio para um bilhete deixado pelo dono da casa: “Preta, bom dia! Estarei o dia todo trabalhando, NÃO ESTOU PARA NINGUÉM! Por favor, anote os recados. Até logo...”. Não entendeu o bilhete. Seu patrão costumava ir ao trabalho todos os dias – sem a pontualidade britânica que cobra dela, é verdade –, mas passa seus dias todos no escritório. Pensou que talvez aquele bilhete fosse apenas fruto daquelas garrafas de vinho estacionadas por toda a parte: às vezes, para tratar a confusão de seus pensamentos, quem bebe trata de explicar cada detalhe aos outros. Acreditando estar só em casa, iniciou a limpeza da cozinha, sala e banheiro – ambientes que pertenciam ao térreo do sobrado. Recolheu, ensacou, varreu, guardou, ensaboou, molhou, puxou, secou, limpou, saiu, entrou, jogou, agachou, suou, enxugou, desinfetou, despachou: em três horas ninguém poderia dizer que era a mesma casa. Com balde e pano em mãos, subiu os degraus que levavam ao quarto, escritório e banheiro com medo dos desdobramentos que a noite anterior pudesse ter causado no andar de cima da casa.
Tudo limpo, precisando apenas da manutenção regular. No quarto, que estava com a porta escancarada, apenas abriu a janela para o sol entrar e tirar o cheiro da noite, e da fumaça dos cigarros da madrugada que estacionaram naquele canto fechado da casa. A porta do escritório estava fechada e, pela fresta que formava entre porta e chão, fugia o som de um urso que hiberna em sua caverna. Deixou o balde no banheiro, em frente ao escritório, e correu para atender o telefone que chamava no andar de baixo. O relógio marcava quinze para o meio-dia.
– Alô? (...) – e com a voz trêmula de quem segue instrução sem sentido, continuou – Ele está trabalhando.
Ouviu do outro lado a voz estridente de um homem:
– Como ele pode estar trabalhando se ele não está aqui?!?
– Olha, não sei não senhor. Cheguei aqui e tinha um recado de que ele está trabalhando. Se quiser, posso anotar o recado.
– Diga para o filha da puta do seu patrão, que ele vai se ver comigo quando aparecer por aqui! – e desligou.
Ela omitiu o “filha da puta do patrão” do recado, mas anotou no caderninho ao lado do telefone todo o resto: sem o nome do remetente ou o lugar onde ele ia “se ver” quando aparecesse. Assim mesmo, acreditava que ele iria entender: “Ligou um moço dizendo que você vai se ver quando aparecer lá”.
Quando voltou à limpeza do banheiro, não escutava mais o sono de seu patrão no escritório em frente. Ouviu passos, a cadeira sendo arrastada, o computador ligando e os dedos estralando em torno do teclado. Não ouviu uma só tecla sendo apertada para preencher o documento aberto, em branco, do Word. Apressou a limpeza do banheiro e, quando acabou de descer a escada de volta ao térreo, ouviu a porta do escritório se abrir e a do banheiro se fechar. Ela não estava acostumada a dividir a casa com ele naquele horário. Convivia com seu patrão poucos minutos por dia: enquanto ele bebia apressado seu café antes de sair para o escritório. Não sabia o que fazer com ele lá ao meio-dia.
– Bom dia, Preta – entrou pela porta principal da cozinha; descalço e de bermuda.
– Perdeu a hora hoje? – respondeu curiosa.
– Primeiro, bom dia, né?
– Bom dia... Fiz café, mas já deve estar ruim, posso preparar outro... se quiser almoço, preciso de dinheiro para comprar carne no açougue.
– Não se preocupe com isso, vou logo voltar ao trabalho.
“Voltar ao trabalho?” – pensou.
– Por falar em trabalho – avisou, fingindo que estava entretida organizando o armário debaixo da pia –, ligaram para você agorinha mesmo. Não quis te chamar, já que você disse que não estava para ninguém... Mas anotei o recado.
– Muito bem. Não era mesmo para me chamar, eu estava ocupado. Esta noite eu tive uma visão. A partir de agora, não trabalho para mais ninguém! Vou unir o útil ao agradável. Passei a noite instalando uma rede para dormir em meu escritório: vou escrever meu próprio livro sobre os sonhos que tenho enquanto durmo: vou produzir enquanto durmo, Preta! Encontrei um jeito de trabalhar dormindo.
A partir daí, ela não ouvia mais nada, só acenava com a cabeça e emitia ruídos para que ele continuasse falando sobre seu novo estilo de vida. Por fim, ele tomou um copo de leite e voltou para a rede dizendo ter esquecido os sonhos daquela manhã: precisava produzir mais. Enquanto ele produzia, ela lamentava – enquanto lia o classificado de empregos – pelo patrão que endoidou feliz da vida.
14 de maio de 2009
5 de maio de 2009
Cadu
Já passava de oito horas de uma noite quente. Voltava de uma visita à padaria, onde comprou maços de cigarros – vinha fumando o último cigarro do maço antigo – e um pequeno galão d’água, de cinco litros. A visita não cobrava belos trajes; nada além de um par de chinelos, bermuda e camiseta – no conjunto, já de partida, estava roto. A rua, pela qual seguiam seus passos – apenas os passos, já que os pensamentos se despediram logo na partida –, também estava amassada. Pedras, galhos de árvores, blocos de concretos desprendidos das calçadas e placas de sinalização arrancadas dos postes, apontavam os desníveis e rupturas no asfalto. Assim mesmo, motos, bicicletas e carros de moradores dos quarteirões que a rua atravessava ziguezagueavam entre as sinalizações para sair ou chegar às suas casas. A rua era pavimentada, mas seu asfalto dividia pertença com a areia que estacionava por lá, e permitia, em suas dobras, o surgimento de barbas-de-bode, rabos-de-burro e carrapichos.
Hoje tudo serve bem por lá, mas tratava-se, nesta época, de um bairro, sem expressão, em expansão. A população, que ia se esparramando pela margem litorânea deste continente, lentamente começava a ocupar aquele espaço. Talvez isto possa explicar a rua pela qual caminhava. Uma rua com pretensões a avenida. Provavelmente, servia bem a seu propósito antes de iniciarem a construção de condomínios ao seu redor; logo, os condôminos passaram a exigir uma rede de esgoto que comportasse seus anseios e à rua coube servir de fachada aos novos tubos que transitariam seus os dejetos ao mar. Às más condições daqueles quatrocentos metros de asfalto, com areia, barbas-de-bode, rabos-de-burro e carrapichos, apresentava sinais de existirem apenas pelo aquecimento imobiliário da região e não – como se comprovou depois de alguns meses – tardaria muito a tornar-se rua – mais próxima às suas pretensões de avenida – digna outra vez.
Às suas margens intercalavam casas, terrenos baldios e construções; do mesmo modo, se entremetiam nas calçadas trechos pavimentados, matos e alçapões destrancados: convites pretensiosos às galerias subterrâneas. Os postes de luz, de tão frágeis, aparentavam traves suspensas pelos próprios fios de eletricidade que sustentavam. Além da luz-névoa que transmitiam, eram muito distantes uns dos outros; intercalando, ao passeio de quem andava por aquela rua, ora espetáculos em sombras, ora saltos ao esquecimento dos olhos.
Contudo, não podem condenar as condições da rua pela disgra que sucedeu. É certo que o bueiro não deva ficar aberto por onde se anda, mas não estamos para reflexões sobre tampa de bueiro. Que falta pode fazer a luz, a tampa, ou qualquer sinalização, quando os olhos decidem acompanhar os pensamentos para onde quer que eles os carreguem?
O pé direito foi o primeiro a enfiar-se no buraco; seu joelho teimou à queda e a quina metálica do bueiro meteu-lhe os dentes arrancando o sangue que transitava por lá. Então, o resto do corpo tratou de lançar-se buraco adentro sem qualquer reação, sofrendo durante a travessia lesões bem menos graves: pequenas escoriações no quadril, ombros, braços e rosto. Demoraram uns tantos segundos para seus olhos se acostumarem com a pouca luz subterrânea. Enquanto isso, suas mãos, em ocasiões assim, frenéticas, correram a percorrer seu corpo todo em busca do tecido mais ferido, de um osso partido que, quem sabe, estive exposto àquele ar e água podres; ou um metal enferrujado rasgando a pele e carne. Sentiu o liquido quente escorrer na parte interna de sua coxa direita e uma madeira ainda cravada no ferimento, além do talho do joelho direito, expostos às bactérias já quase desesperançosas de tanto esperar a oportunidade para produzir seu fim, a tetanospasmina.
Quando os olhos se adaptaram, pôde ver o que sentia: a perna esquerda mergulhada até o joelho em água barrenta e o corpo todo em penumbra. A câmara onde estava depositado tinha dois metros e meio por um e meio, e apenas uma circunferência de aproximadamente cinqüenta centímetros, no rodapé da parede oposta a que se apoiava, recebia luz da superfície. Em cada uma das paredes mais estreitas, seguiam os tubos que serviam para descarregar os dejetos que lhe eram oferecidos; enquanto nas paredes mais largas, havia dois degraus que, provavelmente, foram feitos para não deixar atolar quem, vez outra, querendo o destino, ou o ofício capital, tinha que descer ali. Enquanto a perna direita se apoiava em um destes degraus, procurava apoio para as mãos para que o corpo todo ajudasse a desatolar a perna esquerda. Perdeu a consciência.
* * *
– Aqui, os ratos não fogem da gente.
Sentiu pavor. Como se entornassem água gelada nos nervos de seu corpo contraindo todos os seus músculos, causando tremor em todo o corpo. Era uma voz de criança, ou mulher, não sabia bem. A câmara estava, estranhamente, mais iluminada, mesmo assim franziu os olhos e buscou o dono da voz.
– Eu sei por que você veio parar aqui.
Era uma criança. Um menino de aproximadamente onze anos e naquela conversa despertou um menino que parecia feito de cera.
– Aqui a gente fica encolhidinho no canto, porque os ratos não fogem da gente. Aqui a gente tem medo deles, como eles têm medo da gente lá em cima.
Agora podia ver ratos farejando sobre os pés encolhidos do menino. Quando os ratos seguiam, ele voltava a falar.
– Eu não tinha mais esperança de sair daqui, mas o senhor me encontrou.
Estava apavorado, precisava, em primeiro lugar, conter seus nervos que, contraídos, amarraram seu corpo. Era ele quem precisava de ajuda, não conseguiria ajudar ninguém como estava. E aquele menino... Começou tentando controlar a respiração: mesmo com o fedor estacionado na câmara, inspirou até sentir os pulmões cheios e expirou todo o ar que conteve por várias vezes. O exercício tratava de acalmar seu coração que, embora continuasse batendo mais forte do que o normal, já diminuía o ritmo. Como reflexo pelo susto causado pelo menino, suas unhas tentavam fincar na parede de concreto; acalmou as mãos e apoiou-se de cócoras – como o menino – na extremidade oposta a que o menino estava. Exatamente na mesma posição, frente a frente, a dois metros de distância. Ao dobrar os joelhos, o beiço, recém inaugurado em seu joelho direito, abriu e o fez grunhir de dor lancinante, mas passageira. Um rato bebericava o sangue que pingava de sua bermuda no degrau onde estava apoiado.
– O senhor veio para me tirar daqui. Veio me encontrar, desfazer, e me levar com o senhor. Aqui, os ratos não têm por que fugir.
* * *
Acordou sentindo fisgadas nos talhos da coxa e joelho direito. Três ratos experimentavam a carne exposta: dois mordiam o ferimento da coxa, enquanto outro beijava o lábio fino de seu joelho. Teve ânsia; tentou espantar os ratos, que não se intimidaram. Pensou no galão d’água que preferiu a superfície, quando seu corpo se lançou bueiro abaixo. “Aqui, os ratos não têm por que fugir”. A idéia de fumar aumentava ainda mais sua ânsia. A sede era tanta que aquela água não parecia mais tão podre. A vista e os sentidos lhe faltaram outra vez.
* * *
O menino se aproximou, em passos cuidadosos, e exortou os ratos a deixarem sua perna. Sentou-se ombro a ombro com ele, e agora sua voz parecia vir em notas.
– O senhor não está me reconhecendo. Eu vim para cá quando o senhor se convenceu que era Carlos Eduardo da Rocha Baptista, e não mais Cadu. Eu sou o Cadu. E você quis me buscar e me levar junto com o senhor para onde o senhor for de agora em diante.
* * *
Voltou a consciência, foram os sentidos, os olhos, a carne e o sangue devorados pelos ratos, que, no esgoto, não têm por que fugir.
Hoje tudo serve bem por lá, mas tratava-se, nesta época, de um bairro, sem expressão, em expansão. A população, que ia se esparramando pela margem litorânea deste continente, lentamente começava a ocupar aquele espaço. Talvez isto possa explicar a rua pela qual caminhava. Uma rua com pretensões a avenida. Provavelmente, servia bem a seu propósito antes de iniciarem a construção de condomínios ao seu redor; logo, os condôminos passaram a exigir uma rede de esgoto que comportasse seus anseios e à rua coube servir de fachada aos novos tubos que transitariam seus os dejetos ao mar. Às más condições daqueles quatrocentos metros de asfalto, com areia, barbas-de-bode, rabos-de-burro e carrapichos, apresentava sinais de existirem apenas pelo aquecimento imobiliário da região e não – como se comprovou depois de alguns meses – tardaria muito a tornar-se rua – mais próxima às suas pretensões de avenida – digna outra vez.
Às suas margens intercalavam casas, terrenos baldios e construções; do mesmo modo, se entremetiam nas calçadas trechos pavimentados, matos e alçapões destrancados: convites pretensiosos às galerias subterrâneas. Os postes de luz, de tão frágeis, aparentavam traves suspensas pelos próprios fios de eletricidade que sustentavam. Além da luz-névoa que transmitiam, eram muito distantes uns dos outros; intercalando, ao passeio de quem andava por aquela rua, ora espetáculos em sombras, ora saltos ao esquecimento dos olhos.
Contudo, não podem condenar as condições da rua pela disgra que sucedeu. É certo que o bueiro não deva ficar aberto por onde se anda, mas não estamos para reflexões sobre tampa de bueiro. Que falta pode fazer a luz, a tampa, ou qualquer sinalização, quando os olhos decidem acompanhar os pensamentos para onde quer que eles os carreguem?
O pé direito foi o primeiro a enfiar-se no buraco; seu joelho teimou à queda e a quina metálica do bueiro meteu-lhe os dentes arrancando o sangue que transitava por lá. Então, o resto do corpo tratou de lançar-se buraco adentro sem qualquer reação, sofrendo durante a travessia lesões bem menos graves: pequenas escoriações no quadril, ombros, braços e rosto. Demoraram uns tantos segundos para seus olhos se acostumarem com a pouca luz subterrânea. Enquanto isso, suas mãos, em ocasiões assim, frenéticas, correram a percorrer seu corpo todo em busca do tecido mais ferido, de um osso partido que, quem sabe, estive exposto àquele ar e água podres; ou um metal enferrujado rasgando a pele e carne. Sentiu o liquido quente escorrer na parte interna de sua coxa direita e uma madeira ainda cravada no ferimento, além do talho do joelho direito, expostos às bactérias já quase desesperançosas de tanto esperar a oportunidade para produzir seu fim, a tetanospasmina.
Quando os olhos se adaptaram, pôde ver o que sentia: a perna esquerda mergulhada até o joelho em água barrenta e o corpo todo em penumbra. A câmara onde estava depositado tinha dois metros e meio por um e meio, e apenas uma circunferência de aproximadamente cinqüenta centímetros, no rodapé da parede oposta a que se apoiava, recebia luz da superfície. Em cada uma das paredes mais estreitas, seguiam os tubos que serviam para descarregar os dejetos que lhe eram oferecidos; enquanto nas paredes mais largas, havia dois degraus que, provavelmente, foram feitos para não deixar atolar quem, vez outra, querendo o destino, ou o ofício capital, tinha que descer ali. Enquanto a perna direita se apoiava em um destes degraus, procurava apoio para as mãos para que o corpo todo ajudasse a desatolar a perna esquerda. Perdeu a consciência.
* * *
– Aqui, os ratos não fogem da gente.
Sentiu pavor. Como se entornassem água gelada nos nervos de seu corpo contraindo todos os seus músculos, causando tremor em todo o corpo. Era uma voz de criança, ou mulher, não sabia bem. A câmara estava, estranhamente, mais iluminada, mesmo assim franziu os olhos e buscou o dono da voz.
– Eu sei por que você veio parar aqui.
Era uma criança. Um menino de aproximadamente onze anos e naquela conversa despertou um menino que parecia feito de cera.
– Aqui a gente fica encolhidinho no canto, porque os ratos não fogem da gente. Aqui a gente tem medo deles, como eles têm medo da gente lá em cima.
Agora podia ver ratos farejando sobre os pés encolhidos do menino. Quando os ratos seguiam, ele voltava a falar.
– Eu não tinha mais esperança de sair daqui, mas o senhor me encontrou.
Estava apavorado, precisava, em primeiro lugar, conter seus nervos que, contraídos, amarraram seu corpo. Era ele quem precisava de ajuda, não conseguiria ajudar ninguém como estava. E aquele menino... Começou tentando controlar a respiração: mesmo com o fedor estacionado na câmara, inspirou até sentir os pulmões cheios e expirou todo o ar que conteve por várias vezes. O exercício tratava de acalmar seu coração que, embora continuasse batendo mais forte do que o normal, já diminuía o ritmo. Como reflexo pelo susto causado pelo menino, suas unhas tentavam fincar na parede de concreto; acalmou as mãos e apoiou-se de cócoras – como o menino – na extremidade oposta a que o menino estava. Exatamente na mesma posição, frente a frente, a dois metros de distância. Ao dobrar os joelhos, o beiço, recém inaugurado em seu joelho direito, abriu e o fez grunhir de dor lancinante, mas passageira. Um rato bebericava o sangue que pingava de sua bermuda no degrau onde estava apoiado.
– O senhor veio para me tirar daqui. Veio me encontrar, desfazer, e me levar com o senhor. Aqui, os ratos não têm por que fugir.
* * *
Acordou sentindo fisgadas nos talhos da coxa e joelho direito. Três ratos experimentavam a carne exposta: dois mordiam o ferimento da coxa, enquanto outro beijava o lábio fino de seu joelho. Teve ânsia; tentou espantar os ratos, que não se intimidaram. Pensou no galão d’água que preferiu a superfície, quando seu corpo se lançou bueiro abaixo. “Aqui, os ratos não têm por que fugir”. A idéia de fumar aumentava ainda mais sua ânsia. A sede era tanta que aquela água não parecia mais tão podre. A vista e os sentidos lhe faltaram outra vez.
* * *
O menino se aproximou, em passos cuidadosos, e exortou os ratos a deixarem sua perna. Sentou-se ombro a ombro com ele, e agora sua voz parecia vir em notas.
– O senhor não está me reconhecendo. Eu vim para cá quando o senhor se convenceu que era Carlos Eduardo da Rocha Baptista, e não mais Cadu. Eu sou o Cadu. E você quis me buscar e me levar junto com o senhor para onde o senhor for de agora em diante.
* * *
Voltou a consciência, foram os sentidos, os olhos, a carne e o sangue devorados pelos ratos, que, no esgoto, não têm por que fugir.
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