5 de maio de 2009

Cadu

Já passava de oito horas de uma noite quente. Voltava de uma visita à padaria, onde comprou maços de cigarros – vinha fumando o último cigarro do maço antigo – e um pequeno galão d’água, de cinco litros. A visita não cobrava belos trajes; nada além de um par de chinelos, bermuda e camiseta – no conjunto, já de partida, estava roto. A rua, pela qual seguiam seus passos – apenas os passos, já que os pensamentos se despediram logo na partida –, também estava amassada. Pedras, galhos de árvores, blocos de concretos desprendidos das calçadas e placas de sinalização arrancadas dos postes, apontavam os desníveis e rupturas no asfalto. Assim mesmo, motos, bicicletas e carros de moradores dos quarteirões que a rua atravessava ziguezagueavam entre as sinalizações para sair ou chegar às suas casas. A rua era pavimentada, mas seu asfalto dividia pertença com a areia que estacionava por lá, e permitia, em suas dobras, o surgimento de barbas-de-bode, rabos-de-burro e carrapichos.

Hoje tudo serve bem por lá, mas tratava-se, nesta época, de um bairro, sem expressão, em expansão. A população, que ia se esparramando pela margem litorânea deste continente, lentamente começava a ocupar aquele espaço. Talvez isto possa explicar a rua pela qual caminhava. Uma rua com pretensões a avenida. Provavelmente, servia bem a seu propósito antes de iniciarem a construção de condomínios ao seu redor; logo, os condôminos passaram a exigir uma rede de esgoto que comportasse seus anseios e à rua coube servir de fachada aos novos tubos que transitariam seus os dejetos ao mar. Às más condições daqueles quatrocentos metros de asfalto, com areia, barbas-de-bode, rabos-de-burro e carrapichos, apresentava sinais de existirem apenas pelo aquecimento imobiliário da região e não – como se comprovou depois de alguns meses – tardaria muito a tornar-se rua – mais próxima às suas pretensões de avenida – digna outra vez.

Às suas margens intercalavam casas, terrenos baldios e construções; do mesmo modo, se entremetiam nas calçadas trechos pavimentados, matos e alçapões destrancados: convites pretensiosos às galerias subterrâneas. Os postes de luz, de tão frágeis, aparentavam traves suspensas pelos próprios fios de eletricidade que sustentavam. Além da luz-névoa que transmitiam, eram muito distantes uns dos outros; intercalando, ao passeio de quem andava por aquela rua, ora espetáculos em sombras, ora saltos ao esquecimento dos olhos.

Contudo, não podem condenar as condições da rua pela disgra que sucedeu. É certo que o bueiro não deva ficar aberto por onde se anda, mas não estamos para reflexões sobre tampa de bueiro. Que falta pode fazer a luz, a tampa, ou qualquer sinalização, quando os olhos decidem acompanhar os pensamentos para onde quer que eles os carreguem?

O pé direito foi o primeiro a enfiar-se no buraco; seu joelho teimou à queda e a quina metálica do bueiro meteu-lhe os dentes arrancando o sangue que transitava por lá. Então, o resto do corpo tratou de lançar-se buraco adentro sem qualquer reação, sofrendo durante a travessia lesões bem menos graves: pequenas escoriações no quadril, ombros, braços e rosto. Demoraram uns tantos segundos para seus olhos se acostumarem com a pouca luz subterrânea. Enquanto isso, suas mãos, em ocasiões assim, frenéticas, correram a percorrer seu corpo todo em busca do tecido mais ferido, de um osso partido que, quem sabe, estive exposto àquele ar e água podres; ou um metal enferrujado rasgando a pele e carne. Sentiu o liquido quente escorrer na parte interna de sua coxa direita e uma madeira ainda cravada no ferimento, além do talho do joelho direito, expostos às bactérias já quase desesperançosas de tanto esperar a oportunidade para produzir seu fim, a tetanospasmina.

Quando os olhos se adaptaram, pôde ver o que sentia: a perna esquerda mergulhada até o joelho em água barrenta e o corpo todo em penumbra. A câmara onde estava depositado tinha dois metros e meio por um e meio, e apenas uma circunferência de aproximadamente cinqüenta centímetros, no rodapé da parede oposta a que se apoiava, recebia luz da superfície. Em cada uma das paredes mais estreitas, seguiam os tubos que serviam para descarregar os dejetos que lhe eram oferecidos; enquanto nas paredes mais largas, havia dois degraus que, provavelmente, foram feitos para não deixar atolar quem, vez outra, querendo o destino, ou o ofício capital, tinha que descer ali. Enquanto a perna direita se apoiava em um destes degraus, procurava apoio para as mãos para que o corpo todo ajudasse a desatolar a perna esquerda. Perdeu a consciência.

* * *

– Aqui, os ratos não fogem da gente.

Sentiu pavor. Como se entornassem água gelada nos nervos de seu corpo contraindo todos os seus músculos, causando tremor em todo o corpo. Era uma voz de criança, ou mulher, não sabia bem. A câmara estava, estranhamente, mais iluminada, mesmo assim franziu os olhos e buscou o dono da voz.

– Eu sei por que você veio parar aqui.

Era uma criança. Um menino de aproximadamente onze anos e naquela conversa despertou um menino que parecia feito de cera.

– Aqui a gente fica encolhidinho no canto, porque os ratos não fogem da gente. Aqui a gente tem medo deles, como eles têm medo da gente lá em cima.

Agora podia ver ratos farejando sobre os pés encolhidos do menino. Quando os ratos seguiam, ele voltava a falar.

– Eu não tinha mais esperança de sair daqui, mas o senhor me encontrou.

Estava apavorado, precisava, em primeiro lugar, conter seus nervos que, contraídos, amarraram seu corpo. Era ele quem precisava de ajuda, não conseguiria ajudar ninguém como estava. E aquele menino... Começou tentando controlar a respiração: mesmo com o fedor estacionado na câmara, inspirou até sentir os pulmões cheios e expirou todo o ar que conteve por várias vezes. O exercício tratava de acalmar seu coração que, embora continuasse batendo mais forte do que o normal, já diminuía o ritmo. Como reflexo pelo susto causado pelo menino, suas unhas tentavam fincar na parede de concreto; acalmou as mãos e apoiou-se de cócoras – como o menino – na extremidade oposta a que o menino estava. Exatamente na mesma posição, frente a frente, a dois metros de distância. Ao dobrar os joelhos, o beiço, recém inaugurado em seu joelho direito, abriu e o fez grunhir de dor lancinante, mas passageira. Um rato bebericava o sangue que pingava de sua bermuda no degrau onde estava apoiado.

– O senhor veio para me tirar daqui. Veio me encontrar, desfazer, e me levar com o senhor. Aqui, os ratos não têm por que fugir.

* * *

Acordou sentindo fisgadas nos talhos da coxa e joelho direito. Três ratos experimentavam a carne exposta: dois mordiam o ferimento da coxa, enquanto outro beijava o lábio fino de seu joelho. Teve ânsia; tentou espantar os ratos, que não se intimidaram. Pensou no galão d’água que preferiu a superfície, quando seu corpo se lançou bueiro abaixo. “Aqui, os ratos não têm por que fugir”. A idéia de fumar aumentava ainda mais sua ânsia. A sede era tanta que aquela água não parecia mais tão podre. A vista e os sentidos lhe faltaram outra vez.

* * *

O menino se aproximou, em passos cuidadosos, e exortou os ratos a deixarem sua perna. Sentou-se ombro a ombro com ele, e agora sua voz parecia vir em notas.

– O senhor não está me reconhecendo. Eu vim para cá quando o senhor se convenceu que era Carlos Eduardo da Rocha Baptista, e não mais Cadu. Eu sou o Cadu. E você quis me buscar e me levar junto com o senhor para onde o senhor for de agora em diante.

* * *

Voltou a consciência, foram os sentidos, os olhos, a carne e o sangue devorados pelos ratos, que, no esgoto, não têm por que fugir.

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