30 de abril de 2009

Uma consulta

Tinha a camisa, e a gravata (frouxa), e o paletó, amarrotados. Aceitou um copo d’água, aceitou um café, sentou na ponta da cadeira e disse não saber por onde começar. Estava, naquela tarde úmida, vivendo a metade de seus 38 anos. Tudo era cansaço no que aparentava e o frio não parecia incomodar sua angústia.

– Falar sobre a vida que carreguei até aqui? – em murmuro inaudível. Parecia se preocupar com o que desencadeou a lembrança de uma vida inteira. Não sabia como começou aquela vida, tão pouco como começaria a contá-la. Por um instante, tentou forçar o choro. Queria substituir as primeiras palavras por muco, lágrimas e soluços; mas os soluços, lágrimas e muco, junto com a coragem dos passos que o levaram até o consultório, também faltaram. À sua frente, o doutor fazia leves carícias no próprio queixo – carícias de um pensador, mas sem a barba dos psiquiatras que se prezam. Talvez tenha sido um engano – deixou o pensamento fugir.

Longos minutos com o silêncio cortado apenas pelo som da respiração forte de um e o roçar das mãos lisas no queixo áspero do outro. Até o doutor iniciar, lendo sua euforia:

– O que traz o senhor aqui?

Sentiu o coração acelerar, e a voz pareceu faltar, mas despontou numa alegria honesta quando conseguiu formar as primeiras frases.

– Não sei bem ao certo... Estou tão confuso agora. Achei que precisava falar com alguém... Não sei por onde começar. Quando me sentei aqui, senti como quem está curado.

– Quando foi que decidiu marcar esta consulta? O que você estava sentindo... o que o senhor buscava?

Sem se dar conta, com os olhos tentando ver os dois pés ao mesmo tempo, começou assim:

– Me alegra ver fotos. Mas só as fotos com pessoas. Cheia de dentes, que mostram os olhos, bocas, narizes, sobrancelhas, cílios, orelhas, bochechas, sardas, cabelos, testas, queixos e tem ainda aquilo tudo mais que algumas fotos despertam. Por vezes, choro vendo fotos. Ligou, não sei bem por que; sei que antes, resolveu casar.

Os nervos pilharam, tirou do bolso o aparelho celular, apertou um, outro botão e despejou toques e tons pelo escritório.

– Anunciou como música seu telefonema: assenti, atendi. Desde muito, estive distante de suas ambições que não pude imaginar quem era. Não sei bem, nem sei se me lembro bem, parece que queria empregar uma amiga, também jornalista. Foi educada, depois de justificar a chamada, perguntou por onde ando, como tenho passado. Ainda não sei bem se ela queria mesmo saber: acho que não. As fotos revelam mais do que um instante. Quantos olhares se perdem longe de nossa compreensão, sem passar pelo filtro de nossas expectativas? E, após aquele telefonema, revelou-se pra mim aqueles olhos na fotografia de anos antes. Se eu tivesse notado saberia, nunca iria ficar comigo. Ela tem voz rouca; falou como quem suspira a palavra e o sorriso em som. Foi um telefonema. O que sei, foi: alô; quanto tempo; como vai; jura?!?; minha amiga (...); resolvi meu amor, minha vida completou, estou casada. Sei bem o que esqueci estes anos todos. Tive que esquecer para viver estes anos todos, mas agora lembrei. A pergunta que me faço agora é : como posso viver em paz se agora perdi meu esquecimento? Estou tentando responder sua pergunta, doutor, mas outras perguntas surgem na frente. Acho que busco compreender, para a razão me levar outra vez para longe do que posso sentir. Mas aqueles olhos na fotografia me fizeram perceber, mais do que as palavras de seu telefonema: nunca seria minha. E éramos felizes; apaixonados!

– De maneira vulgar, diz-se que há uma diferença grande entre “estar feliz” e “ser feliz”. Quando “estamos felizes” associamos a uma condição emocional, que pode variar, e varia, a partir de determinadas situações ou acontecimentos. Neste caso, estamos sujeitos ações que podem desencadear uma série sensações de conflito. Quando “somos felizes”, associamos ao bem-estar: condição financeira, estrutura familiar, aspectos fisiológicos e psicológicos, e por aí vai. Cada vez mais creditasse a felicidade à qualidade de vida, e não a emoções.

Foi interrompido.

– Não estamos falando de felicidade, doutor! Dane-se a felicidade! Estou falando de amor! Amor nada tem a ver com felicidade.

– Esteve por anos, posso dizer feliz?, sem seu amor. Por que agora tanto sofrimento? Talvez vê-la casada tenha colocado você em conflito com você mesmo: a vida seguiu para um de vocês...

– Pode ter razão... minha vida ficou parada. Não mereci, não mereci nem ofereci o amor para mais ninguém.

Longa pausa. Doutor triunfante e paciente com os cotovelos nos joelhos, curvado, escondido debaixo da mesa, com as mãos na nuca. O paciente volta à posição ereta de quem está sentado e com o rosto estranhamente normal, volta a falar para o doutor.

– Com prazer, ela descreveu a escolha. Seus vícios, prazeres, vitórias. Inclusive, incluiu-se como conquista e vitória. Com o rigor dos detalhes... – já em pé, prosseguiu – Muito obrigado, doutor, o senhor me ajudou muito. Muito obrigado, mesmo.

– Na próxima semana no mesmo horário, então?

– Não, obrigado. Muito obrigado.

Um comentário:

Joyce disse...

"(...)Quantos olhares se perdem longe de nossa compreensão, sem passar pelo filtro de nossas expectativas(...)" Que difícil responder a essa pergunta-e mais ainda, se deparar com ela...

Genial, esse conto!!! Eu diria que mais do que uma consulta ele é um convite...nos convida a revisitar lembranças... os pensamentos e sentimentos mais escondidos...enfim, sugere e incita um encontro muitas vezes temido-o encontro com a alma...
É, não foi dessa vez que eu critiquei... rs

Beijos, beijos,
Joyce