9 de outubro de 2006

Texto de Luis Gustavo Imperatore

Luis Gustavo Imperatore, consultor do Grupo Cherto, gentilmente permitiu que eu postasse seu relato sobre sua experiência em uma favela no Rio de Janeiro.


Compartilho com vocês uma visão da experiência que tive numa favela do Rio de Janeiro.

No projeto da Fundação Roberto Marinho, em que estamos desenhando o modelo de expansão de "Telessalas" (salas de aula de ensino fundamental e médio que usam a metodologia de ensino do Telecurso 2000, o mesmo que passa na Rede Globo), fui conhecer uma dessas Telessalas numa comunidade do Complexo da Maré, conjunto de 19 favelas na zona norte do Rio. Estas Telessalas na Maré são operadas pela ONG Viva Rio, parceira da Fundação Roberto Marinho.
No Complexo há escolas públicas, mas como não conseguem atender a toda demanda destas comunidades, há espaço para a atuação de projetos sócio-educacionais do Terceiro Setor.
Estas comunidades são dominadas pelo tráfico de drogas, violência gritante e explícita no dia a dia e na porta de casa, baixo nível educacional e profissional e conseqüente baixa estima generalizada de seus moradores. Vivem sob um código de conduta social próprio e imposto pelos chefes do tráfico, que isola a comunidade e cria territórios segregados da sociedade civil organizada e do Estado de Direito. A presença do Estado só se faz sentir pelos serviços públicos de água-luz-telefone, ruas asfaltadas, escolas públicas em condições precárias e da polícia que visita com freqüência o território "proibido" em veículos militares blindados em operações de repressão.
Chegamos ao Complexo com uma informação que só piorou a expectativa formada anteriormente: a favela Nova Holanda, que iríamos visitar, é uma das mais violentas. Porém, tínhamos o consolo de que o pessoal do Viva Rio é respeitado e protegido lá dentro. Entramos na comunidade à noite, com um motorista do Viva Rio, já conhecido pelos vigias do tráfico. Para evitar uma recepção agressiva, algumas regras que podem ser vitais: vidros abertos, luz interna acesa, velocidade baixa, nenhuma manobra agressiva, e o percurso que passe por menos "bocas" do tráfico.
No caminho até o prédio do Viva Rio, verdadeiro contraste de excelência em meio à selvageria do estado de permanente guerra civil, algumas visões surpreendentes da forma como a vida e a economia se organizam sob estas condições. Ruas estreitas tomadas por lojas bem montadas, pequenos supermercados e muita gente por todo lado, mesmo à noite. Nenhum sinal de que estejam mal ou desabastecidos. Aparentemente ninguém "de fora" freqüenta o local, a não ser os que consomem os produtos distribuídos nas "bocas". Mas o comércio é fervilhante, parecido com as áreas comerciais de Ciudad del Este, no Paraguay.
Em nosso trajeto, passamos por vários vigias com armamento pesado, no meio da rua, a poucos metros da Av. Brasil e de um quartel da Polícia Militar, fortificação situada nos limites do Complexo. A tensão de estar ali é resultado de um misto da perplexidade do que se vê, insegurança por nos sentirmos intrusos em território alheio e da iminência de atentados que podem acontecer e acontecem rotineiramente. Naquele dia tinha havido pelo menos dois assassinatos na comunidade. Enquanto estávamos na visita às Telessalas, ouvíamos explosões de fogos de artifício, avisos dos "fogueteiros" de que o "caveirão", veículo blindado da polícia, estava entrando no Complexo.
Na mesma noite em que havia um Flamengo e Vasco no "Maraca", salas de aula cheias de moradores da comunidade, faixa etária variando de 15 a mais de 50, sedentos por educação, aprendendo a entender seu papel na sociedade, e tendo, talvez pela primeira vez na vida, o sonho e a perspectiva de melhorar de vida. Os que já conseguiram não querem sair de lá. Sentem-se responsáveis por mudar o meio em que nasceram e vivem, e se comprometem a dar melhores oportunidades às próximas gerações.
Antes de ir embora, uma professora da Telessala pede para esperarmos, vai consultar uma fonte de informação e volta com a "liberação" e o roteiro a seguirmos até a Av. Brasil.
Pouco menos de uma hora dentro da Maré e surge uma série de questionamentos que põem em cheque nosso modelo social, muitos dos quais vão se evidenciar somente com o tempo. Além do alívio de sair do "território inimigo", ficam lições imediatas:
(1) na ausência do Estado surge um poder paralelo que pode ser mais organizado e mais eficiente que muitos governos oficiais
(2) as pessoas são o resultado da formação que a sociedade lhes dá
(3) mesmo em ambiente adverso existe um mercado interessante e canais de venda se estruturam e vivem bem
Mais do que qualquer coisa, a visão é de que somente reclamar e se distanciar de tudo isso não resolve absolutamente nada. Modelos que dêem educação, perspectiva e um sentido à vida das pessoas parecem ser o melhor caminho para soluções sustentáveis.

Luis Gustavo Imperatore

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