Lá vai Teresa trabalhar.
Pobre, negra da favela, gorda. Gorda, com metade do peso seria saudável. A vida complicada ainda não conseguiu tirar dela alguma esperança que não se sabe do que. Para muitos, em seu lugar, sorte seria morrer na próxima esquina. Ela rezava: por sua saúde e de seu filho menino. Quando lembrava – ou esquecia tudo que ele já cometeu –, rezava pelo marido, padrasto de seu filho, que roubava o pouco de dignidade que a paz na família – se existisse – poderia oferecer.
Sabia da vida de seu filho e das sainhas que ele gostava de usar. Mas o que acontecia depois que ele saía do barraco, Teresa ouviu falar numa dessas reportagens especiais de programas marrons que tornam celebres as ruínas sociais. O apresentador, com voz de penumbra, levou até os olhos, ouvidos e coração da mãe Teresa o espetáculo de crianças e adolescentes que viviam à beira da estrada submetendo suas mãos, bocas e bundas em postos das auto-estradas. Pobre, negro da favela, magro. Magro, de pedra e agulha, quinze de idade, era pele, osso e cabelo alisado com pontas que pinicavam a clavícula.
Lá vai Teresa trabalhar.
Carrega, em seu enorme corpo redondo, vergões nas costas e nos braços das frustrações de seu marido. Carrega ainda a saudade do filho que, violentado pelo padrasto, há quinze dias não aparece em casa. Enquanto caminha é a atração passageira nos becos e vielas. As bocas banguelas e os olhares contentes, dissimulados, dizem em sussurros altos:
– Lá vai Teresa, a mãe da putinha.
O serviço é a terapia. Pia com esponja, sabão, água, porcelanas, talheres e copos. Lava, seca e guarda. De certa forma, uma analogia com o que quer para a sua vida. Antes disso, chega às sete da manhã na casa que ainda dorme. Prepara café, busca jornal, o patrão sai correndo, esquenta o café para a patroa que só acorda às nove, tira a mesa, coloca as roupas no tanque, limpa o quintal e prepara o almoço. Enquanto limpa as sobras do almoço, está no momento mais distante de seus problemas. Saiu de casa, da comunidade, do marido, da espera do filho travesti há quase seis horas e está a mais de cinco de voltar para lá. Divide sua atenção entre a espera do caminhão de gás, o cachorro que late sem parar e o ventre molhado na pia. O cachorro latia à chegada do filho de seus patrões – dois anos mais velho que o seu – que não consegue almoçar com os pais por causa do curso para o vestibular.
– Olá, Teresa, sobrou alguma coisa ou só vou almoçar o jantar? – e a Teresa sorri a piada simpática.
O prato costuma estar separado quando ele chega. Às vezes conversam um pouco sobre alguma notícia que una seus mundos: a morte de algum famoso, a chuva que vem, o sol que não sai, a falta de água na rua.
Hoje, Teresa trouxe uma carta e, analfabeta, perguntou se ele poderia ler.
* * *
– “Mãe, espero que as coisas estejam melhores em casa. Desculpe escrever. Sei de sua dificuldade com as palavras escritas, mas não encontrei outro jeito de entrar em contato. Agradeço quem lê para você, como agradeço a Roberta, que escreve e organiza minhas palavras nesta carta. Peço desculpas também por expô-los a um problema que não lhes diz respeito”.
O garoto parou, olhou para a empregada que sorria e continuou.
– “Moro com ela agora. Pelo menos por um tempo. Não tenho tido problemas com roupa, comida ou segurança para viver. Tenho medo que aquele homem encontre esta carta antes de você e me persiga, por isso não conto onde moramos. Quero que você saiba que está tudo bom.
Não sei se nos veremos outra vez; não sei como terei notícias suas; não posso voltar para casa. Sei que não fui um bom filho, mas durante toda minha vida você foi a única pessoa que realmente amei e que realmente me amou. Fiz, com a minha demência, com a minha doença, com o meu corpo e comportamento, com as minhas roupas, cabelo e vício, do meu caminhar a sua caminhada mais longa e triste. Coloquei sua reputação de mulher simples e forte, pobre e honesta, na boca daqueles miseráveis que não sabem do amor. Fiz seu marido desrespeitar você como mulher que não serve para parir. Lamento a falta de forças para tirar você daquele cafajeste. Assim como lamento a força que me faltou este tempo todo para tirar ele de cima de mim. Não sei algum dia vou me recuperar da idéia de ter sido mulher dele. Não sei se o asco foi maior por ter sido refém do homem que eu, ainda criança, já chamei de pai, ou por ter me tornado mulher e, de alguma forma mesmo que rendida, ter sido cúmplice da traição de seu marido. Mãe, pelo amor de deus, perdoe o que aconteceu aquele dia. Eu nunca me insinuei para este homem. Sabe bem que minha força perto da dele não serviria para nada. As vizinhas, que ouviram e bisbilhotaram entre as tábuas do barraco, devem hoje estar a te ofender também. Desculpe mãe, desculpe. Sei como as notícias correm por lá.
Queria que esta carta falasse só do amor que a despedida me fez lembrar. Pelo menos assim, poderia deixar palavras de saudades. Talvez falar um pouco mais dos meus planos; talvez prometer que vou mudar. Mas esta é uma carta de desculpas e despedida. Para a única pessoa que me ama e sempre cuidou de mim. Para a pessoa que, entre tantas, eu ajudei a desgraçar a vida. Para o meu maior exemplo e amor.
Fique em paz, sabendo que o filho está bem e que pretende te buscar quando tiver condições.
Assinado: seu filho, Vandré”
Há muito tempo o garoto havia reduzido seu tempo de leitura para evitar o momento em que teria que olhar para a Teresa outra vez. E ela sorriu; ele sabia mesmo antes de levantar os olhos e a primeira lágrima se desprender dos cílios laterais:
– Vou tentar me lembrar de cada palavra que o senhor leu pra mim. Se meu menino disse que vai voltar, ele volta mesmo.
5 comentários:
Meu caro Gustavo... como não poderia de deixar de comentar este texto....já que ninguém fez a análise psicológica do desenrolar fortuito desta história faço eu.
É do caralho ver como as histórias tomam rumos sinuosos nas nossas cabeças quando nos debruçamos sobre um texto.
Teresa, no seu texto, é mais que uma mulher sôfrega, é a personificação da imagem de jesus (não sei se isso é um elogio ou não) mas foi essa a sensação que tive...e você conseguiu passar isso (acredito até que foi inconsiente). O sorriso ao término da carta foi o perdão do pai. Acho até que teresa é muito mais que essa comparação que fiz. Ela tem uma das virtudes mais admiráveis do mundo: a resistência. Tem uma frase do Nietzsche que gosto muito: "Temos de defender os fortes contra os fracos" ela é fraca na visão do mundo mas forte para ele. Eu concordo plenamente, os fortes resistem.
Agora falando do texto, meus parabéns, ficou muito bom, a enorme diferênça de sentimentos entre Teresa e o leitor da carta diante de um mesmo texto, foi uma sacada genial...ai ficou o THAN...
é isso aí,
grande abraço e até a próxima postagem.
O texto sobre a Teresa nasceu de uma conversa entre mim e o Vitor – autor do comentário acima.
Ele chegou com a história desta pobre mulher e combinamos que cada um de nós faria um texto para ela. Bom, aqui você pode consultar minha versão. Convido você a entrar em Reflexões de Tampa de Bueiro – http://vitormachadinho.blogspot.com – e acompanhar a outra história de Teresa em "A vida ávida"...
Abraço a todos
Nó na garganta. Lágrimas nos olhos. Esse pegou fundo, muito fundo. Acho até que por já ter conhecido "Terezas" em minha caminhada. Bjos, Ju
mensagem teste
Grandão...você me conquista cada vez mais...rsrsrrs
Como escolhe as palavras, constrói as frases, revela os personagens sua crueldade ou suas franquezas, tanto faz, consegue fazer aflorar os sentidos... A leitura deste mundo da Teresa tem muita sensibilidade, está muito perto de "uma alma feminina"...
É possível reconhecer muitas das angustias dos cafés da tarde, nas mesas do Bar do Jiló ... ou até das noites que me levas ao Paraíso!!!!!rsrsrsrs
Bessos
Lola Flores
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