26 de abril de 2007

O Metrô e o Túnel do Tempo - Fim

Parte cinco - fim

As portas dos vagões abriram e fecharam sem que ele entrasse, mas o trem não partiu. As portas voltaram a se abrir, desta vez, exclusivamente ao único que permaneceu na plataforma: ele entrou. As velhinhas acostumadas a se arrastar estavam sentadas nos assentos reservados; os turistas de cadarços desamarrados com mapas e caras de interrogação intercalavam os olhares entre o quadro viário na parede interna do vagão e os guias de rua que carregavam; e os deficientes já estavam em casa nessa hora.
Pensava na razão daquela viagem. Para onde estava indo, quem iria encontrar e porque iria encontrar; não queria chegar há lugar nenhum. Mal as portas se fecharam, abriram na estação seguinte. Quem tinha que descer, desceu; quem tinha que entrar, entrou. Em nenhum outro passageiro notava-se espanto ou perplexidade pela rapidez com que a estação seguinte havia chegado. E o processo se repetiu na estação seguinte: as portas mal se tocaram e já abriram na estação seguinte. O artista que viajava até sua primeira exposição olhou sobre os ombros, encarou os outros passageiros, coçou a cabeça, puxou a gola da camisa, esfregou os dois olhos com as mãos. Um casal que estava sentado a sua frente, enquanto conversava, de rabo-de-olho encarava com espanto o artista. Não estava a quarenta e cinco segundos dentro do trem e já tinha percorrido três estações. As senhoras desceram com seus passos arrastados, as portas aguardaram com toda paciência do mundo, dois segundos depois delas descerem o auto-falante do metrô anunciava a chegada na estação seguinte.
Quando chegou à Serge Lê Tendre, saltou do trem e ficou encarando a trajetória da locomotiva à estação seguinte. Partiu lento, como era normal, e foi ganhando velocidade gradativamente conforme anunciavam os ruídos provocados pelo atrito entre metais. Acompanhou com os olhos até que ele desaparece na escuridão do túnel. Lembrou da última vez que havia descido ali. Parado, na plataforma via passageiros dos dois sentidos da linha chegando e se acomodando à espera do próximo metrô. Longe, no fim do corredor, estavam os degraus das escadas que, em outro tempo, ele subia aos saltos. Seus pensamentos, seu supercílio esquerdo, seu coração, os dedos das mãos e dos pés pulsavam. Como velocidade da viagem colocou em ordem o atraso para a exposição, tomado por um alvoroço de sentimentos e sensações – tristeza profunda, correntes de vento, saudade, rostos estranhos e nostalgia, obsorto pelo absurdo metrô e o seu túnel do tempo – decidiu fazer a viagem de volta. E o fenômeno se repetiu: em menos de dois minutos estava na Régis Loisel.

* * *

O artista não compareceu à sua exposição de estréia e a excêntrica ausência soou bem às madames e aos barões. Nas semanas que seguiram os visitantes esvaziaram seus bolsos e compraram todas as obras que estavam à venda. Os organizadores e responsáveis pelo evento não tinham notícia sobre o expositor desde a véspera da inauguração da exposição, há trinta e cinco dias. As autoridades estavam avisadas, cartazes com seu retrato foram colocados nos parques, praças e alguns estabelecimentos comerciais. Quando o encontraram, não puderam reconhecer.
Roto, extremamente magro e de barba suja, mas incrivelmente cheiroso. Sentava sempre nos últimos acentos dos vagões: observava e rabiscava um caderno de ilustrações. Geralmente os outros passageiros não se aproximavam muito. Muitas vezes faziam caretas como se pudessem sentir o mau-cheiro do traste e, ao se aproximarem, sentiam vontade de roçar sua barba para saber se era dela aquele cheiro bom. Cheiro de casa da avó. Na Serge Lê Tendre entrava no trem, na Régis Loisel descia e vice-e-versa. Exercitava-se nas baldeações, gargalhava da velocidade da viagem que por muito tempo foi a mais lenta do mundo. Não entendia a indiferença dos outros passageiros no começo, depois ficou indiferente a todos: só olhava e rabiscava.
Motivado por uma denúncia, um segurança do metrô foi ao encalço do mendigo. Compenetrado em seu caderno, não notou a aproximação. Sentiu um choque quando o calor da palma da mão direita do guarda segurou seu pulso, há muito tempo ninguém encostava nele. Arrastado para fora do vagão, numa estação intermediária de seu trajeto, não tinha força para lutar. Batia com a mão solta na cabeça, dobrou os joelhos e gritou com mais força enquanto era arrastado. Teve a idéia: enfiou a mão no bolso, encontrou seu lápis, a ponta bem apontada do lápis encontrou a coxa e riscou o fêmur do segurança que, espantado, apoiou numa placa de publicidade e deixou seu corpo deslizar até o chão onde permaneceu sentado. Quieto. O agressor andou, com passos firmes de assassino, ao encontro do segurança pálido, arrancou de sua perna o lápis e se jogou na vala onde só os trens podem caminhar. Sumiu na escuridão do túnel.
Foram formados grupos que vasculharam cada centímetro da Linha Urutau e nunca encontraram ninguém. Mas ainda hoje, algumas vezes, quando um trem parte e deixa seu vácuo sugar o ar dos corredores subterrâneo, suga também algumas folhas de jornal e rascunhos – a lápis – de desenhos encantadores.

Fim.

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