Parte quatro
Estavam juntos há três anos, sem brigas, desconfianças, ciúmes, rancores. Viviam a relação adulta que os casais de final feliz em novelas anunciam. Primeiro foram amigos, não se desgrudavam; logo passaram a namorar e não se desgrudaram mais. Irretocáveis amantes cobertos pela dádiva de não causar inveja nos amigos: mesmo as vizinhas beatas aplaudiam a esta união que ignorava e suplantava qualquer manifestação de deus ou de seus tantos representantes na terra. Mas houve quem dissesse que foi a falta de deus que separou esses dois. Todos lamentaram. O que se seguiu na vida talvez tenha sido a única maneira do amor entre eles ser derrotado: chegou a morte. Chegou lenta, com olheiras, com cansaço, cólicas, com o amarelo apático, diarréia, sono, muito sono, andar arrastado, tosse no corredor, tosse no banheiro, desmaio no banheiro, banho na cama, médico no quarto, janelas do chão ao teto fechadas, mãe chorando enrolada na cortina bordô, panos úmidos na testa, poucas visitas e a última visita, último aperto na mão, última jura do namorado, uma lágrima, um sorriso, um suspiro.
* * *
Não fazia mais o caminho sobre-trilhos até a estação Serge Lê Tendre. Praticamente não submergia mais pelo concreto das linhas de metrô. Os dias só, de reclusão – estivesse no parque de lembrar, estivesse na escrivaninha do quarto ou nas salas lotadas de seus cursos –, tornaram suas imagens mais ricas, seu lápis mais sensível, sua olhar mais preciso, a sensação de perspectiva de seus retratos ultrapassavam as dimensões geométricas: retratavam também a alma que o artista emprestava a seus personagens.
O sucesso passou a rondar o seu trabalho e o olhar do desenhista continuava a se entreter nos detalhes. Sua mente continuava distraída com uma saudade que parecia se misturar com anestésicos. Alguns admiradores organizaram uma exposição de seus rascunhos, afinal, nunca admitiu que uma obra sua estivesse terminada. No marasmo quase demente em que vivia, se vestiu com o que estava mais à mão, desceu as escadas da estação Régis Loisel, viu o horário no relógio pendurado do corredor principal, pensou no atraso que a viagem de dezessete minutos causaria e travou na frente do trem que o levaria à Serge Lê Tendre.
(continua...)
Um comentário:
falta de Deus separa o casal ?
http://www.alinejacomo.blogspot.com
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