* Esta é o segundo capítulo de um texto que eu honestamente não sei para onde vai. Se você não viu a primeira parte, CLIQUE AQUI e acompanhe.
Parte dois
A viagem entre as sete estações durava exatamente dezessete minutos. Alguns passageiros deste trecho achavam que era pouco tempo para se dedicar, por exemplo, às linhas de Érico Veríssimo ou faixas de Manu Chao. Passageiros que utilizavam o metrô durante a madrugada não conseguiam chegar ao fim em seus sonhos e freqüentemente levantavam aos solavancos para alcançar a porta antes de fechar. A moça que fazia compras num supermercado próximo da estação Serge Lê Tendre e morava seis andares acima da Régis Loisel também queria uma viagem maior para esquecer-se de seu marido, da amante que ele tem e do amante que ela perdeu. Mas para o namorado era tempo demais! Seu espírito não há de ter perdão para as maldições rogadas contra as senhoras de lentidão cadavérica, os turistas desencontrados com cadarços desamarrados, os deficientes que se enroscam a cada passo: todos que atrasassem a sua jornada a caminho de sua namorada eram malvistos, malquistos pelo apaixonado. Não importavam os motivos ou infortúnios que a vida oferecia à pessoa que atrapalhasse sua viagem, nada justificava.
* * *
Gostava de fazer caricaturas. Queria ganhar a vida como artista, mas não entendia bem como ia ganhar dinheiro assim. Enquanto isso, conseguia uns trocos fazendo retratos nas praças em dia de grande movimento. Sempre que podia ia ao Parque Dom, onde havia um grande chafariz cercado por oito anjinhos que afastavam qualquer pretendente a banhista apontando-lhes seus jatos de urina. O caricaturista, que se vendia como retratista no Dom, sentia-se enojado com aquele pano de fundo angelical que seus, não tão fiéis, clientes adoravam. No entanto, como havia estudado um pouco sobre sinais e mensagens subliminares, gostava de pensar que apontando os riscos urina dos anjos às costas do retratado estaria criando uma mensagem oculta em sua obra. Ou, igual fez com a garçonete mal-educada, colocar os mensageiros divinos ao fundo, e ao mesmo tempo ao lado do rosto de sardas e sorriso metálico, guerreando com suas espadas, ao sair do lápis do artista, iguais as de Luke Skywalker e Darth Vader.
O nome do parque, Dom, merece uma menção. O prefeito resolveu fazer uma grande quantidade de parques e praças públicas para tornar a cidade mais terrestre. Criou-se uma mega operação envolvendo as secretarias de Infra-estrutura, Cultura, Transporte, Segurança, Educação, Saúde e Comunicação. Como estratégia de marketing, ficou decidido que durante o mês de agostos – quando a cidade comemora seu aniversário – todo fim-de-semana um parque e duas – às vezes três – praças seriam inauguradas. Tudo muito bem planejado e distribuído de maneira apropriada para atender e dar fácil acesso ao maior número de moradores. Doze praças e cinco parques foram inaugurados. Para as praças, por serem obras menores, que podiam levar o nome de ilustres cidadãos de menor expressão como homenagem, não tiveram problemas de batismo. Os parques seguiam o mesmo caminho: um levaria o nome de um político estadunidense que havia morrido e comovido alguns colonos; outros dois levaram nomes de atores nascidos na cidade que ficaram famosos em novelas e teatro; o governador, que liberou uma verba para as obras, também mereceu seu nome numa placa; e o último, que fica no centro, chamaria Dom Freitas. Padre e, especialmente, agente social adorado pelas inúmeras famílias que viviam afastadas dos córregos de dinheiro da cidade que havia sido, misteriosamente até então, morto a tiros. Acontece que, um dia antes da inauguração do parque, a perícia da polícia apresentou seu relatório sobre o crime bárbaro: d. Freitas se envolveu numa espécie de grupo subversivo que pretendia parar uma grande indústria que despejava seu lixo no rio que abastecia a cidade vizinha e que era comandada por um grande coronel, não do exército, da região. A notícia de que um capanga – por motivação própria. Sem que seu patrão houvesse pedido, segundo o relatório final – do coronel havia matado o padre causou enorme mal-estar entre industriários, intelectuais, representantes da esquerda, religiosos e população em geral. O governo não quis entrar nesta briga de foice e, sob o argumento de prudência, de não tornar aquele espaço um campo de batalha e manifestações, decidiu tirar o nome do líder religioso. Mas neste momento todas as placas já estavam postas os textos de divulgação para imprensa já rodavam nas caixas de mensagem dos assessores e jornalistas. Os jornais que, também nesta cidade, davam as mãos ao governo já editavam suas capas quando receberam a ligação de uma autoridade qualquer:
– Tire o nome do Freitas desta matéria
– O que coloco no lugar?
– (...) Deixe o Dom, acho bonito... Dom!
As placas que estampavam o nome do parque foram raspadas onde trazia a palavra Freitas. Até o engenheiro da obra, Antônio Goulard Freitas, na pressa da maquiagem toda, perdeu seu último sobrenome.
(continua...)
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