27 de agosto de 2008

Dia seguinte

O cigarro parecia ocupar suas duas mãos. Arcado, sentado, na cadeira de madeira no centro da sala, chorava sobre seu retrato. Como espasmos, às vezes interrompia aos olhos a imagem, levava as mãos à cabeça e saltavam, ornamentais, contíguas, cinzas de cigarro e caspas até pousarem no paletó preto, calça preta, retrato preto, dentro da sala cinza. Precisava tornar à fotografia para lembrar porque chorava, e tornava a chorar.

Quantos anos haviam passado? Quão rápido e ao mesmo tempo trabalhoso chegar onde chegou? E, ao voltar para a casa fria, encontrou pela primeira vez aquele retrato, coberto pela poeira, sobre a escrivaninha da sala, num canto onde seus olhos – fieis às suas ambições – procuravam não passar. Sabia que estava, mas um estranho desejo, tão cativante quanto aterrorizante, insistia por alguém a observá-lo. Desejava, aos soluços, que sua temida e famosa bravura fossem descobertas por mais alguém. Não esperava por sua mãe, irmã ou mulher, mas por um vizinho ou colega; precisava de alguém sem paixão, sem traquejo com os sentimentos. Alguém que o observasse, a princípio, com certa compaixão – mesmo sem entender o que se despertava dentro dele–, mas que logo desse lugar a um julgamento frio, injusto, e, por fim, lançasse desprezo com os olhos e ironia com nos lábios e semblante. Sem palavras. Que desse as costas e partisse, deixando apenas o sono dos que adormecem chorando e o pesadelo do dia seguinte.

Por fim, aceita o dia seguinte como o chão da sala aceita suas cinzas, bitucas e corpo. Mas não dorme ainda, jaz, cadáver acordado, sentindo (...) sensação sem pessoa correspondente. Quando o desejo pelo inconsciente vence e é permitido dormir, dorme e acorda logo. Feliz, sob os primeiros raios do dia, volta a ser o que sempre quis e sai sem saber que nunca mais se lembrará de procurar, caído, no chão, sob a escrivaninha da sala cinza, fria e suja, seu retrato – tão feliz quanto distante.

9 comentários:

Anônimo disse...

Gú,

Não sei como descrever a sensação de ler esse texto...
Estou atônita -é como se tivessem me fincado uma estaca no peito- que não mata, mas perdura e mostra a dor –não física- mas da alma-o difícil e temido desejo de redenção...

Genial!!!

Beijos, Beijos...

Vitor Machado disse...

A Rotina poética ou Gregor Samsa visto de dentro?...ainda não sei.

O que sei é que o texto é duro e real. real no sentido de despir um pouco a natureza humana.
Afinal todos temos nossos quadros.
Há, é claro, os que prefiram não olhar...mas aí é outra história....nós olhamos.

Meus parabéns Gustavão!!

Anônimo disse...

"O que você faz quando ninguém está vendo"......

Ótimo texto.

beijos

Guto Melo disse...

Pois é, o tempo não pára e no entanto ele nunca envelhece. Belo texto.

Anônimo disse...

Muito bom, Sr Gustavo, que texto otimo...
Me emocionou!
Parabéns
Camila (Boy)

Anônimo disse...

Tocante...intenso...mágico até,pois me transportei a realidade descrita no "Dia seguinte"!
Muito bom!

Aline Melo disse...

oi :)

bom, mainha insistiu pra que eu "pelo menos olhasse o blog dele", então.. tou aqui. sou Aline, filha de Cláudia - corretora. espero que vocë lembre, pra não me deixar com mais vergonha.

sobre o texto, eu adorei.. me aflorou a imaginação, coisa que anda em falta por aqui, já que no meu curso não tenho muita liberdade pra pensar e imaginar.

acho que ela te falou que eu tinha um lugar onde postava alguns textos.. mas Sào mais textos do dia a dia, biografias, expressões..

enfim, me adiciona no msn qualquer dia: enquantoissonolustredocastelo@hotmail.com :)

Anônimo disse...

intenso e tenso!

me encheu de algo q ainda nao sei dizer oq...

gostei!

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.