Neste mundo de continente, de pessoas espremidas, de pernas
que se entrelaçam – e saem entre as pernas, outro par de pernas que logo se
espremerão – sinto abafado o meu passo. Uma vocação alienada parece levar para lugares
onde o espaço já foi ocupado. E para que caminhar com passos tão parecidos aos
demais?
Não tenho ambição alguma a não ser o conforto dos pequenos, tardios, relapsos, abafados, curupiros passos de uma cômoda à outra – sem precisar atravessar porta alguma. Ou, se tiver, que sejam portas entre cômodos.
Descalço os sapatos para que um dia, quem sabe, logo volte a caminhar com os cadarços amarrados um ao outro.
Mas, quando saio, sinto que os donos das pernas que me confundem, amedrontam e dão calafrio, compõem os parafusos que devem ser parafusados; e que as palavras que invento, muito antes de serem ditas, já valeram, com extraordinária beleza e competência, a ouvidos e olhos muito mais atentos que os meus.
Os filmes são produzidos; os carros são produzidos; o óleo é extraído; os médicos consertam pacientes que perdem as pernas de tanto usá-las; as árvores são arrancadas e fatiadas e molduradas e carregadas e aleijadas na sala de estar; os bares devolvem os cascos de cerveja vazios e a cervejaria acaba por enchê-los.
Minha cama permanece inerte. O lençol, cada dia mais roto, com dobras que se confundem com as minhas, continua a marcar as minhas costas gordas.
Pairo descalço. E quando olho para o baixo-chão-próximo vejo o
par de sapatos com os cadarços amarrados um no outro.
E, da vidraça do alto de um prédio, não vejo campo belo. As pernas que durante o dia são percalços às demais, e prometem entrelaçarem-se às outras quando há noite, ao lusco-fusco-olhar parecem as patas que sobraram junto à carcaça do besouro que serviu de banquete às formigas.
Madrugada. Nem uma comemoração nos biombos suspensos ao meu redor. Não vejo terra, ou sinto seu cheiro. Imagino o quão belo possa ter sido o sítio onde hoje plaino descalço. Há, distante, uma árvore triste. Posso ver uma árvore triste e sentir o estômago reclamar a saliva que engulo.
Um comentário:
Achei muito triste este texto.
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