Não podemos dizer que estivesse na vida adulta há
muito tempo, mas não era, absolutamente, jovem. Fazia algum tempo que caminhava
sem a necessidade das orientações dos pais e, embora tivesse em seu pai o símbolo
máximo de intelectualidade – reconhecido por sua memória acima da média de toda
a manada –, se sentia muito à vontade para decidir quais melhores rotas e
acomodações; escolher o melhor verde para se alimentar; saber qual parte do rio
oferecia a água que mais o agradava. Carregava uma experiência razoável para
uma boa vida e um futuro tranqüilo; mesmo assim, não era desgarrado. Nem se
quisesse poderia ser: como todos os seus companheiros de trombas, vivia na
propriedade de um grande pecuarista numa fazenda continental da África do Sul.
Quando analisamos um acontecimento por completo –
com informações do princípio, meio e, principalmente, fim –, é praxe nos
apropriarmos dos resultados de cada etapa para julgar qualquer suspiro de quem
realizou a ação anterior. Nagu era um elefante como outro qualquer de sua
idade. Carregava ainda nos olhos a obstinação por realizações que pudessem
surpreender seus amigos e parentes, embora começasse a perder aquela inquietude
por resultados imediatos. Era simples, sério, calmo e, acima de tudo, discreto.
Um modelo como tantos outros ao seu redor. Ninguém que o conheceu, ou mesmo que
tenha dividido intimamente sua companhia, seria honesto se viesse hoje apontar
qualquer característica de Nagu como sinal para a desordem para o que sucedeu
com o seu probo-coração.
Talvez movido por uma brisa de tédio – monotonia
comum para bicho que vive resguardado pela segurança de território demarcado e
vigiado –, resolveu que sua caminhada naquele fim de madrugada, começo de
manhã, o levaria ao pomar próximo a sede da fazenda. Não era comum aquele
passeio; tanto no que diz respeito ao horário, quanto à área a ser visitada. De
fato, quando os donos da propriedade queriam ver seus elefantes, precisavam
chamar um capataz com jipe e viajar, muitas vezes, por até meia-hora para
encontrá-los. E, se fizessem questão que eles estivessem acordados e bem-dispostos,
preferiam o fim de tarde.
Poderia beliscar algumas jabuticabas do pomar, mas esse
não era o motivo. Para Nagu, as frutas que por lá brotavam não faziam sua
retumbante tromba saracotear. Passeava por passear, já que os olhos teimaram em
deixá-lo acordado mais cedo. Só.
Demorou muito para chegar. O céu clareou ao compasso
lento e pesado de Nagu e chegou ao azul definitivo – chamo de definitivo para
intensificar a claridade da manhã; sem ser apocalíptico ou desrespeitoso às
matizes azuis do céu – assim que ele parou para descansar em frente à casa.
Ouvia o barulho da vassoura e, de onde vinha o barulho, uma porta da casa
espirrava o pó.
“Sede”. Estava distante do rio. Havia se esquecido
do que implicava se afastar do rio, elementar. Um espasmo, um choque, pensou
que havia “se esquecido”! Pensou que havia esquecido! Falha na memória, pontada
aguda no orgulho proboscídeo. Evidentemente, uns lembram mais que outros (ou
pelo menos se vangloriam mais que outros), mas poucos, ou nenhum, admitem o
esquecimento – a pior de suas angústias. Com as orelhas e a tromba – arqueada
entre suas patas dianteiras – arrastando no chão, Nagu, caminhou até um enorme
pneu de trator que estava apoiado num cercado e guardava um pouco de água da
chuva. Deprimido, Nagu mal encontrava forças para sugar o líquido.
Estava distraído entre o gosto amargo da água e o
pneumático esquecimento quando escutou um som inédito: chiado, com acelerações
intercaladas, às vezes com o som abafado, às vezes mais estridente; resultado
da luta entre ar e poeira, poeira e tapete. Nagu esqueceu – e desta vez fez bem
– a tristeza em detrimento à curiosidade. Olhava através da circunferência de
seu reservatório de roda gasta de trator para a casa, que amplificava daquele
som.
Conforme o tempo passava, o som, que trazia a união
rara entre monotonia e imprevisibilidade, ia aumentando. A porta principal da
casa se abriu e surgiu uma jovem negra enrolada em panos, vermelho e branco, e
carregava por uma alça um pequeno instrumento de onde vinha o som. A euforia
causou em Nagu seu terceiro esquecimento da manhã, desta vez com conseqüências.
Completamente absorto ao chiliquento aparato, esqueceu-se que deixara sua tromba
dentro da roda do trator. Quando o corpo lembrou-se a necessidade de ar, quis
sugar com força todo ar ao seu redor, mas sua tromba estava sob a água suja que
o pneu guardou da chuva.
(aumente o
volume)
-- *!!*!!!!*!!!!!*!!!!!!*!!!!!!!!*!!!!!!!!!!*!!!!. –
Nagu acabara de lançar o seu mais forte bramido.
O susto atirou a jovem negra ao chão que, no
solavanco, fez com que o cabo elétrico do aspirador fugisse da tomada. Estavam
todos em silencio; os pássaros, que antes faziam sua algazarra, também
decidiram pelo silêncio. Nagu tratou de se esconder numa árvore próxima, que o
tronco, de tão fino, mal escondia sua tromba. Alguns segundos passaram parados,
como se o espirro do elefante tivesse feito o tempo parar por ali: nem sinal da
governanta negra, pó em paz no carpete e nenhum pio os pássaros ousavam. De
onde estava, olhava o aspirador deitado em silêncio no chão com sua mangueira
apontada para ele. Ficou por volta de um minuto registrando cada detalhe do
aspirador de pó. Até o capataz chegar de jipe com a espingarda carregada nas
costas.
• • •
Um único disparo bastaria, mas o capataz deu pelo
menos três tiros para cima enquanto Nagu adiantava seus passos de volta à
manada. Completamente compenetrado em si, após sua longa caminhada, passou reto
por sua mãe que queria saber por onde ele tinha andado e entregou seu corpo,
que fervia, a um banho de rio.
Demorou um pouco para se refazer. Conversou com a mãe
sobre a longa viagem e fez de seu pai um elefante-branco ao perguntar se ele sabia
o que era aquele objeto que o capataz trazia nas costas e que fazia um barulho
de pequeno trovão. Mesmo estando em companhia mais que confiável, em nenhum
momento passou por sua cabeça falar sobre a outra máquina barulhenta que havia
conhecido no mesmo dia.
• • •
Bitolado por aquele
objeto estridente, de tromba longa, alça, botões, fio e tomada, Nagu passou a intercalar
momentos em que ficava em pé sem andar, com momentos deitado sem dormir. Embaixo
de sua árvore favorita, preces e promessas eram rogadas, em silêncio, intermitentemente,
quase desconexas. Mas Nagu não pedia a seu deus, Ganesha, felicidade ao lado do
aspirador de pó. Essa união, provavelmente, iria sugar toda a sua energia,
principalmente por aspectos sociais. Qual elefante, em perfeito atributo de
suas memórias, permitiria como membro da manada um aspirador de pó. E tinham
outros ‘poréns’: diferenças culturais entre os imponentes elefantes e os
submissos, por conseqüência, pouco confiáveis, aspiradores de pó. Estava
apaixonado, mas ainda não tinha perdido totalmente seu bom-senso; por isso,
demorou tanto a se render.
Antes, teve que certa
eloqüência sentimental para convencer sua mente a liberar seu corpo a buscar
sua felicidade: como poderiam – alma e carne e tromba e dentes de marfim –
viver em paz com a inexplicável paixão dentro do peito e a memória com
irritante competência a martelar o coração?
Cada vez que se perguntava isso, sentia mais evidências de que voltaria
à grande casa dos fazendeiros. Castigado pela paixão, deixou que seu coração
persuadisse a sua mente e, traindo a si mesmo, foi para a casa-sede da
gigantesca fazenda.
Fez todo o trajeto sem
enxergar ao menos o chão. Noite sem lua. Seguiu o caminho a faro e tato de
tromba. Quando chegou à casa, nem um som, além da brisa sobre as copas do
pomar. Um som tão sutil que apenas o coração de Nagu poderia escutar. Ainda
estava escuro quando Nagu, tocando apenas as pontas das patas, desviando de
quaisquer folhas-secas que pudessem gritar o pisão e acordar a casa, contornou
a sede metendo os olhos em cada fresta de vidraça. Não demorou muito, lá
estava... As orelhas de Nagu se ergueram e, enquanto a vidraça da lavanderia se
esforça para refletir a face de Nagu, em seus olhos era nítida a imagem do
recipiente plástico com mangueira e cilindro cinza-pele-de-elefante.
A janela estava apenas
encostada, os rolamentos bem lubrificados não fizeram barulho quando Nagu
correu as portinholas. Com sua tromba, alcançou o aspirador de pó e partiram juntos
para a floresta. Mas desta vez Nagu foi ao sentido contrário de sua manada.
Durante a caminhada, nem Nagu, nem aspirador, emitiram som algum. Dormiram
próximos à margem do rio. Quando acordou, para não despertar o ilustre
seqüestrado, tomou muito cuidado para não fazer barulho em seu banho de rio e
estava distraído pensando em quê o futuro o reservava quando ouviu mais
novamente o som estridente do aspirador. Num pulo, que esvaziou o rio e encheu
as margens por um segundo, o elefante partiu em direção ao som.
– Onde estamos?
Nagu não conseguiu
deixar de sentir certo desconforto.
– Morro se cair na água.
Pra que me trouxe aqui? Não aspiro terra, não.
– Não quero te matar –
começou Nagu –, estamos aqui porque me apaixonei por você.
– Ah, você por acaso
não é o mesmo elefante que apareceu há umas semanas lá em casa?
– Isso foi há meses...
– Quase que mata a mim
e a minha patroa com o barulho que fez. Minha garantia já acabou, se quebro,
vou para a lata do lixo, sabia? Sem enterro, lágrimas, recordações, nada. Sabe o
que falam quando morrem um dos nossos? “Maldita lata velha imprestável”! Pra
você ver, nem de lata nós somos feitos.
As coisas não iam bem. A ilusão acompanhava apenas o
elefante apaixonado. Talvez para alguns o amor não comova. “Mas o que isso
importa?” Nagu se aproximou do aspirador; sério:
– Te proponho uma vida que não acabará em latão de
lixo. Se tua utilidade, para os homens, termina quando sua mangueira não suga
mais o pó e a sujeira, para mim, que tenho tromba como mangueira, pouco importa
essa sua virtude.
– Mas que razão tem viver um aspirador desligado?
– Não estará desligado. Serei feliz em cumprir suas
ordens. Dê as ordens e eu as cumprirei. “Assopre aqui; aspire ali; não deixe
sujeira acumular no canto”, eu terei prazer em servir.
• • •
Assim, o elefante que se apaixonou por um aspirador
de pó encontrou um meio para viver o resto de sua vida. Uma sucessão de
pequenos enganos e engodos uniu os dois mambembes. E, para que essa história desse
certo, elefante, antes imponente, rendeu-se à rotineira insensibilidade
eletrônica de aspirar e engolir a seco toda a sujeira e pó das paixões
irresolúveis.
Viveram juntos para sempre.
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