19 de outubro de 2006

Ônibus

Voltei aos pontos de ônibus. Já tinha esquecido como era triste esta vida! Anda, anda (...), anda; vê e não vê gente, esbarra, toma garoa, escapamento dos outros ônibus. Tudo cinza daltônico. Chacoalha, sacode, dorme, cai o livro, toca o telefone: estou atrasado.
“Neste momento deve estar saindo do terminal o trólebus que eu deveria pegar se estivesse no horário, se tivesse levantado quando abri o olho pela primeira vez. E eu estou aqui, a meia-hora de lá”.
Estou há meia-hora dela também. Enquanto me arrumava resmungou alguma coisa, virou e dormiu. Ah se eu pudesse, arrancava a alma de dentro dela e colocava a minha ali.
Volta o sono e o olho não agüenta. Barulho de freio, acordo. O chuvisco está lá fora e aqui dentro também, “a moça perfumada da frente sente calor?” Com cabelo bem enrolado e curto, com o pescoço a 38 centímetros do meu nariz, posso vê-la arrepiada. “Por que esta janela está aberta? Não me incomoda, no fundo até me agrada tomar um pouco desta chuva. Por algum motivo tira a sensação de estar respirando ar reciclado. Esqueço que o ar – que sai da boca do cidadão sentado ao meu lado – entra em mim, passa pelos pêlos do meu nariz, pulmão, sangue...credo”.
“Relutei por uma hora para não vir para este lugar e agora não queria ter que descer”. Puxa a cordinha, escorrega, caí o papel da seguradora do carro roubado que agora marca meu livro. “O bafo é ruim, mas o coração é generoso”: o mesmo gordinho que me espremia pega o papel que molhou no chão de aço da condução. Freia, escorrego, quase caio, seguro no corrimão – se é que posso chamar aquela barra de ferro de corrimão – degrau, degrau, mais um degrau e pulo pra rua.
“Esqueci de olhar se vinha a moto.” Uma kombi espera o ônibus voltar a andar. “Será que consigo atravessar enquanto isso.” Asfalto, duas faixas amarelas, mais asfalto. Carros dos dois lados e eu parado sobre as faixas. A garoa vem de lado e os cílios não dão conta, as gotas chegam à retina.
Pronto, estou do outro lado, agora é encarar esta ladeira e as pessoas que se atropelam com determinação. A mão está molhada, o peito – assim como toda a parte da frente – está ensopado, o náilon do tênis já desistiu de segurar a água e a lombada do livro deixa de ser nova.
Ando, ando e ando. Descuido e pego o bilhete magnético do trólebus com a mão molhada – tinha que secar nas costas antes – e invisto na catraca: Pééééééé!
– Deve ter molhado. Vá a bilheteria e troque. “De vida.”

2 comentários:

Anônimo disse...

Nossa perfeito...

Vc escreve bem demais... tantos detalhes que me imaginei na cena.

Já está nos meus favoritos!!!

Bjão!!!!

;)

Anônimo disse...

Boa descrição! Para quem faz o trajeto diariamente as cenas descritas são muito familiares....

Como é um texto poético, também não caberia falar sobre os seres mal educados que também utilizam esse tipo de transporte e insistem em ficar na primeira parte do ônibus, impedindo que seres com um pouco mais de percepção passem para a parte de trás, deixando o corredor livre para a circulação. heheheh

Muito bom o texto, para quem começou o blog anunciando que iria atualizá-lo uma vez por mês e olhe lá.....

beijos