31 de agosto de 2009
Tourada
Veste-se com zelo de antagonista amado: cinto, traje justo do século dezoito, rosas douradas bordadas na lapela preta. O público lota a praça de touro divertindo o anseio da espera entre guloseimas e olhares curiosos pelos corredores ovais da arquibancada. Surge silêncio solene. Surgem frente a frente: touro nu, marrom café; o tecido vermelho esconde a farpa do toureiro. Clássico, o touro coça a pata dianteira esquerda na terra batida; sublimes, querem manchar o chão com o sangue do oponente. Dançam, rodopiam, se cheiram, e as farpas se prendem no dorso do animal. O toureiro estufa o peito para a arquibancada, curva-se em cumprimento humilde, volta a estufar o peito -- de costas para o touro que busca dignidade, ar e o sangue que escorre por suas patas trêmulas. Falta a lança misericordiosa: touro e toureiro voltam seus olhares sem sentir os olhares de sangue dos expectadores. Toureiro caminha, toca com a mão direita o chifre duro e frágil do animal, saca da cinta a lança com seu brasão, enquanto o animal ameaça aguardar o golpe. Cerimonioso, o homem ergue a espada, apresentando ao público – girando o corpo para toda a multidão ovalada da arquibancada. E, num repente, touro frágil faz-se forte para se igualarem em fragilidade espetando o chifre direito nas costas do homem. Sangue de ambos, touro e toureiro, finalmente se igualam e deitam juntos no centro da arena imprimindo a morte na retina dos pagantes.
14 de maio de 2009
Profissional liberal
Tomou um susto quando entrou, pela porta do fundo, na cozinha da casa onde trabalhava. Encontrou tudo de cabeça para baixo; ainda quente, como se a baderna tivesse terminado há poucos instantes. Garrafas pelo chão, dois cinzeiros transbordando, as cadeiras distantes da mesa central como se lutadores de sumo tivessem se reunido para uma roda de samba. Num canto, esquecida, a caixa-de-ferramentas que, até então, nunca tinha saído do armário da garagem, parecia ter passado por um tufão a parte: toda coberta por cal, destrambelhada, com o pó de outrora, agora, grisalho. A bagunça se espalhava pela sala, onde encontrou uma quantidade monstruosa de folhas de anotações amassadas. Pensou em seu salário, deu com os ombros e resolveu passar um café para ganhar ânimo.
Ao abrir a geladeira, uma garrafa de vinho pela metade, em pé, na grade superior, servia de apoio para um bilhete deixado pelo dono da casa: “Preta, bom dia! Estarei o dia todo trabalhando, NÃO ESTOU PARA NINGUÉM! Por favor, anote os recados. Até logo...”. Não entendeu o bilhete. Seu patrão costumava ir ao trabalho todos os dias – sem a pontualidade britânica que cobra dela, é verdade –, mas passa seus dias todos no escritório. Pensou que talvez aquele bilhete fosse apenas fruto daquelas garrafas de vinho estacionadas por toda a parte: às vezes, para tratar a confusão de seus pensamentos, quem bebe trata de explicar cada detalhe aos outros. Acreditando estar só em casa, iniciou a limpeza da cozinha, sala e banheiro – ambientes que pertenciam ao térreo do sobrado. Recolheu, ensacou, varreu, guardou, ensaboou, molhou, puxou, secou, limpou, saiu, entrou, jogou, agachou, suou, enxugou, desinfetou, despachou: em três horas ninguém poderia dizer que era a mesma casa. Com balde e pano em mãos, subiu os degraus que levavam ao quarto, escritório e banheiro com medo dos desdobramentos que a noite anterior pudesse ter causado no andar de cima da casa.
Tudo limpo, precisando apenas da manutenção regular. No quarto, que estava com a porta escancarada, apenas abriu a janela para o sol entrar e tirar o cheiro da noite, e da fumaça dos cigarros da madrugada que estacionaram naquele canto fechado da casa. A porta do escritório estava fechada e, pela fresta que formava entre porta e chão, fugia o som de um urso que hiberna em sua caverna. Deixou o balde no banheiro, em frente ao escritório, e correu para atender o telefone que chamava no andar de baixo. O relógio marcava quinze para o meio-dia.
– Alô? (...) – e com a voz trêmula de quem segue instrução sem sentido, continuou – Ele está trabalhando.
Ouviu do outro lado a voz estridente de um homem:
– Como ele pode estar trabalhando se ele não está aqui?!?
– Olha, não sei não senhor. Cheguei aqui e tinha um recado de que ele está trabalhando. Se quiser, posso anotar o recado.
– Diga para o filha da puta do seu patrão, que ele vai se ver comigo quando aparecer por aqui! – e desligou.
Ela omitiu o “filha da puta do patrão” do recado, mas anotou no caderninho ao lado do telefone todo o resto: sem o nome do remetente ou o lugar onde ele ia “se ver” quando aparecesse. Assim mesmo, acreditava que ele iria entender: “Ligou um moço dizendo que você vai se ver quando aparecer lá”.
Quando voltou à limpeza do banheiro, não escutava mais o sono de seu patrão no escritório em frente. Ouviu passos, a cadeira sendo arrastada, o computador ligando e os dedos estralando em torno do teclado. Não ouviu uma só tecla sendo apertada para preencher o documento aberto, em branco, do Word. Apressou a limpeza do banheiro e, quando acabou de descer a escada de volta ao térreo, ouviu a porta do escritório se abrir e a do banheiro se fechar. Ela não estava acostumada a dividir a casa com ele naquele horário. Convivia com seu patrão poucos minutos por dia: enquanto ele bebia apressado seu café antes de sair para o escritório. Não sabia o que fazer com ele lá ao meio-dia.
– Bom dia, Preta – entrou pela porta principal da cozinha; descalço e de bermuda.
– Perdeu a hora hoje? – respondeu curiosa.
– Primeiro, bom dia, né?
– Bom dia... Fiz café, mas já deve estar ruim, posso preparar outro... se quiser almoço, preciso de dinheiro para comprar carne no açougue.
– Não se preocupe com isso, vou logo voltar ao trabalho.
“Voltar ao trabalho?” – pensou.
– Por falar em trabalho – avisou, fingindo que estava entretida organizando o armário debaixo da pia –, ligaram para você agorinha mesmo. Não quis te chamar, já que você disse que não estava para ninguém... Mas anotei o recado.
– Muito bem. Não era mesmo para me chamar, eu estava ocupado. Esta noite eu tive uma visão. A partir de agora, não trabalho para mais ninguém! Vou unir o útil ao agradável. Passei a noite instalando uma rede para dormir em meu escritório: vou escrever meu próprio livro sobre os sonhos que tenho enquanto durmo: vou produzir enquanto durmo, Preta! Encontrei um jeito de trabalhar dormindo.
A partir daí, ela não ouvia mais nada, só acenava com a cabeça e emitia ruídos para que ele continuasse falando sobre seu novo estilo de vida. Por fim, ele tomou um copo de leite e voltou para a rede dizendo ter esquecido os sonhos daquela manhã: precisava produzir mais. Enquanto ele produzia, ela lamentava – enquanto lia o classificado de empregos – pelo patrão que endoidou feliz da vida.
Ao abrir a geladeira, uma garrafa de vinho pela metade, em pé, na grade superior, servia de apoio para um bilhete deixado pelo dono da casa: “Preta, bom dia! Estarei o dia todo trabalhando, NÃO ESTOU PARA NINGUÉM! Por favor, anote os recados. Até logo...”. Não entendeu o bilhete. Seu patrão costumava ir ao trabalho todos os dias – sem a pontualidade britânica que cobra dela, é verdade –, mas passa seus dias todos no escritório. Pensou que talvez aquele bilhete fosse apenas fruto daquelas garrafas de vinho estacionadas por toda a parte: às vezes, para tratar a confusão de seus pensamentos, quem bebe trata de explicar cada detalhe aos outros. Acreditando estar só em casa, iniciou a limpeza da cozinha, sala e banheiro – ambientes que pertenciam ao térreo do sobrado. Recolheu, ensacou, varreu, guardou, ensaboou, molhou, puxou, secou, limpou, saiu, entrou, jogou, agachou, suou, enxugou, desinfetou, despachou: em três horas ninguém poderia dizer que era a mesma casa. Com balde e pano em mãos, subiu os degraus que levavam ao quarto, escritório e banheiro com medo dos desdobramentos que a noite anterior pudesse ter causado no andar de cima da casa.
Tudo limpo, precisando apenas da manutenção regular. No quarto, que estava com a porta escancarada, apenas abriu a janela para o sol entrar e tirar o cheiro da noite, e da fumaça dos cigarros da madrugada que estacionaram naquele canto fechado da casa. A porta do escritório estava fechada e, pela fresta que formava entre porta e chão, fugia o som de um urso que hiberna em sua caverna. Deixou o balde no banheiro, em frente ao escritório, e correu para atender o telefone que chamava no andar de baixo. O relógio marcava quinze para o meio-dia.
– Alô? (...) – e com a voz trêmula de quem segue instrução sem sentido, continuou – Ele está trabalhando.
Ouviu do outro lado a voz estridente de um homem:
– Como ele pode estar trabalhando se ele não está aqui?!?
– Olha, não sei não senhor. Cheguei aqui e tinha um recado de que ele está trabalhando. Se quiser, posso anotar o recado.
– Diga para o filha da puta do seu patrão, que ele vai se ver comigo quando aparecer por aqui! – e desligou.
Ela omitiu o “filha da puta do patrão” do recado, mas anotou no caderninho ao lado do telefone todo o resto: sem o nome do remetente ou o lugar onde ele ia “se ver” quando aparecesse. Assim mesmo, acreditava que ele iria entender: “Ligou um moço dizendo que você vai se ver quando aparecer lá”.
Quando voltou à limpeza do banheiro, não escutava mais o sono de seu patrão no escritório em frente. Ouviu passos, a cadeira sendo arrastada, o computador ligando e os dedos estralando em torno do teclado. Não ouviu uma só tecla sendo apertada para preencher o documento aberto, em branco, do Word. Apressou a limpeza do banheiro e, quando acabou de descer a escada de volta ao térreo, ouviu a porta do escritório se abrir e a do banheiro se fechar. Ela não estava acostumada a dividir a casa com ele naquele horário. Convivia com seu patrão poucos minutos por dia: enquanto ele bebia apressado seu café antes de sair para o escritório. Não sabia o que fazer com ele lá ao meio-dia.
– Bom dia, Preta – entrou pela porta principal da cozinha; descalço e de bermuda.
– Perdeu a hora hoje? – respondeu curiosa.
– Primeiro, bom dia, né?
– Bom dia... Fiz café, mas já deve estar ruim, posso preparar outro... se quiser almoço, preciso de dinheiro para comprar carne no açougue.
– Não se preocupe com isso, vou logo voltar ao trabalho.
“Voltar ao trabalho?” – pensou.
– Por falar em trabalho – avisou, fingindo que estava entretida organizando o armário debaixo da pia –, ligaram para você agorinha mesmo. Não quis te chamar, já que você disse que não estava para ninguém... Mas anotei o recado.
– Muito bem. Não era mesmo para me chamar, eu estava ocupado. Esta noite eu tive uma visão. A partir de agora, não trabalho para mais ninguém! Vou unir o útil ao agradável. Passei a noite instalando uma rede para dormir em meu escritório: vou escrever meu próprio livro sobre os sonhos que tenho enquanto durmo: vou produzir enquanto durmo, Preta! Encontrei um jeito de trabalhar dormindo.
A partir daí, ela não ouvia mais nada, só acenava com a cabeça e emitia ruídos para que ele continuasse falando sobre seu novo estilo de vida. Por fim, ele tomou um copo de leite e voltou para a rede dizendo ter esquecido os sonhos daquela manhã: precisava produzir mais. Enquanto ele produzia, ela lamentava – enquanto lia o classificado de empregos – pelo patrão que endoidou feliz da vida.
5 de maio de 2009
Cadu
Já passava de oito horas de uma noite quente. Voltava de uma visita à padaria, onde comprou maços de cigarros – vinha fumando o último cigarro do maço antigo – e um pequeno galão d’água, de cinco litros. A visita não cobrava belos trajes; nada além de um par de chinelos, bermuda e camiseta – no conjunto, já de partida, estava roto. A rua, pela qual seguiam seus passos – apenas os passos, já que os pensamentos se despediram logo na partida –, também estava amassada. Pedras, galhos de árvores, blocos de concretos desprendidos das calçadas e placas de sinalização arrancadas dos postes, apontavam os desníveis e rupturas no asfalto. Assim mesmo, motos, bicicletas e carros de moradores dos quarteirões que a rua atravessava ziguezagueavam entre as sinalizações para sair ou chegar às suas casas. A rua era pavimentada, mas seu asfalto dividia pertença com a areia que estacionava por lá, e permitia, em suas dobras, o surgimento de barbas-de-bode, rabos-de-burro e carrapichos.
Hoje tudo serve bem por lá, mas tratava-se, nesta época, de um bairro, sem expressão, em expansão. A população, que ia se esparramando pela margem litorânea deste continente, lentamente começava a ocupar aquele espaço. Talvez isto possa explicar a rua pela qual caminhava. Uma rua com pretensões a avenida. Provavelmente, servia bem a seu propósito antes de iniciarem a construção de condomínios ao seu redor; logo, os condôminos passaram a exigir uma rede de esgoto que comportasse seus anseios e à rua coube servir de fachada aos novos tubos que transitariam seus os dejetos ao mar. Às más condições daqueles quatrocentos metros de asfalto, com areia, barbas-de-bode, rabos-de-burro e carrapichos, apresentava sinais de existirem apenas pelo aquecimento imobiliário da região e não – como se comprovou depois de alguns meses – tardaria muito a tornar-se rua – mais próxima às suas pretensões de avenida – digna outra vez.
Às suas margens intercalavam casas, terrenos baldios e construções; do mesmo modo, se entremetiam nas calçadas trechos pavimentados, matos e alçapões destrancados: convites pretensiosos às galerias subterrâneas. Os postes de luz, de tão frágeis, aparentavam traves suspensas pelos próprios fios de eletricidade que sustentavam. Além da luz-névoa que transmitiam, eram muito distantes uns dos outros; intercalando, ao passeio de quem andava por aquela rua, ora espetáculos em sombras, ora saltos ao esquecimento dos olhos.
Contudo, não podem condenar as condições da rua pela disgra que sucedeu. É certo que o bueiro não deva ficar aberto por onde se anda, mas não estamos para reflexões sobre tampa de bueiro. Que falta pode fazer a luz, a tampa, ou qualquer sinalização, quando os olhos decidem acompanhar os pensamentos para onde quer que eles os carreguem?
O pé direito foi o primeiro a enfiar-se no buraco; seu joelho teimou à queda e a quina metálica do bueiro meteu-lhe os dentes arrancando o sangue que transitava por lá. Então, o resto do corpo tratou de lançar-se buraco adentro sem qualquer reação, sofrendo durante a travessia lesões bem menos graves: pequenas escoriações no quadril, ombros, braços e rosto. Demoraram uns tantos segundos para seus olhos se acostumarem com a pouca luz subterrânea. Enquanto isso, suas mãos, em ocasiões assim, frenéticas, correram a percorrer seu corpo todo em busca do tecido mais ferido, de um osso partido que, quem sabe, estive exposto àquele ar e água podres; ou um metal enferrujado rasgando a pele e carne. Sentiu o liquido quente escorrer na parte interna de sua coxa direita e uma madeira ainda cravada no ferimento, além do talho do joelho direito, expostos às bactérias já quase desesperançosas de tanto esperar a oportunidade para produzir seu fim, a tetanospasmina.
Quando os olhos se adaptaram, pôde ver o que sentia: a perna esquerda mergulhada até o joelho em água barrenta e o corpo todo em penumbra. A câmara onde estava depositado tinha dois metros e meio por um e meio, e apenas uma circunferência de aproximadamente cinqüenta centímetros, no rodapé da parede oposta a que se apoiava, recebia luz da superfície. Em cada uma das paredes mais estreitas, seguiam os tubos que serviam para descarregar os dejetos que lhe eram oferecidos; enquanto nas paredes mais largas, havia dois degraus que, provavelmente, foram feitos para não deixar atolar quem, vez outra, querendo o destino, ou o ofício capital, tinha que descer ali. Enquanto a perna direita se apoiava em um destes degraus, procurava apoio para as mãos para que o corpo todo ajudasse a desatolar a perna esquerda. Perdeu a consciência.
* * *
– Aqui, os ratos não fogem da gente.
Sentiu pavor. Como se entornassem água gelada nos nervos de seu corpo contraindo todos os seus músculos, causando tremor em todo o corpo. Era uma voz de criança, ou mulher, não sabia bem. A câmara estava, estranhamente, mais iluminada, mesmo assim franziu os olhos e buscou o dono da voz.
– Eu sei por que você veio parar aqui.
Era uma criança. Um menino de aproximadamente onze anos e naquela conversa despertou um menino que parecia feito de cera.
– Aqui a gente fica encolhidinho no canto, porque os ratos não fogem da gente. Aqui a gente tem medo deles, como eles têm medo da gente lá em cima.
Agora podia ver ratos farejando sobre os pés encolhidos do menino. Quando os ratos seguiam, ele voltava a falar.
– Eu não tinha mais esperança de sair daqui, mas o senhor me encontrou.
Estava apavorado, precisava, em primeiro lugar, conter seus nervos que, contraídos, amarraram seu corpo. Era ele quem precisava de ajuda, não conseguiria ajudar ninguém como estava. E aquele menino... Começou tentando controlar a respiração: mesmo com o fedor estacionado na câmara, inspirou até sentir os pulmões cheios e expirou todo o ar que conteve por várias vezes. O exercício tratava de acalmar seu coração que, embora continuasse batendo mais forte do que o normal, já diminuía o ritmo. Como reflexo pelo susto causado pelo menino, suas unhas tentavam fincar na parede de concreto; acalmou as mãos e apoiou-se de cócoras – como o menino – na extremidade oposta a que o menino estava. Exatamente na mesma posição, frente a frente, a dois metros de distância. Ao dobrar os joelhos, o beiço, recém inaugurado em seu joelho direito, abriu e o fez grunhir de dor lancinante, mas passageira. Um rato bebericava o sangue que pingava de sua bermuda no degrau onde estava apoiado.
– O senhor veio para me tirar daqui. Veio me encontrar, desfazer, e me levar com o senhor. Aqui, os ratos não têm por que fugir.
* * *
Acordou sentindo fisgadas nos talhos da coxa e joelho direito. Três ratos experimentavam a carne exposta: dois mordiam o ferimento da coxa, enquanto outro beijava o lábio fino de seu joelho. Teve ânsia; tentou espantar os ratos, que não se intimidaram. Pensou no galão d’água que preferiu a superfície, quando seu corpo se lançou bueiro abaixo. “Aqui, os ratos não têm por que fugir”. A idéia de fumar aumentava ainda mais sua ânsia. A sede era tanta que aquela água não parecia mais tão podre. A vista e os sentidos lhe faltaram outra vez.
* * *
O menino se aproximou, em passos cuidadosos, e exortou os ratos a deixarem sua perna. Sentou-se ombro a ombro com ele, e agora sua voz parecia vir em notas.
– O senhor não está me reconhecendo. Eu vim para cá quando o senhor se convenceu que era Carlos Eduardo da Rocha Baptista, e não mais Cadu. Eu sou o Cadu. E você quis me buscar e me levar junto com o senhor para onde o senhor for de agora em diante.
* * *
Voltou a consciência, foram os sentidos, os olhos, a carne e o sangue devorados pelos ratos, que, no esgoto, não têm por que fugir.
Hoje tudo serve bem por lá, mas tratava-se, nesta época, de um bairro, sem expressão, em expansão. A população, que ia se esparramando pela margem litorânea deste continente, lentamente começava a ocupar aquele espaço. Talvez isto possa explicar a rua pela qual caminhava. Uma rua com pretensões a avenida. Provavelmente, servia bem a seu propósito antes de iniciarem a construção de condomínios ao seu redor; logo, os condôminos passaram a exigir uma rede de esgoto que comportasse seus anseios e à rua coube servir de fachada aos novos tubos que transitariam seus os dejetos ao mar. Às más condições daqueles quatrocentos metros de asfalto, com areia, barbas-de-bode, rabos-de-burro e carrapichos, apresentava sinais de existirem apenas pelo aquecimento imobiliário da região e não – como se comprovou depois de alguns meses – tardaria muito a tornar-se rua – mais próxima às suas pretensões de avenida – digna outra vez.
Às suas margens intercalavam casas, terrenos baldios e construções; do mesmo modo, se entremetiam nas calçadas trechos pavimentados, matos e alçapões destrancados: convites pretensiosos às galerias subterrâneas. Os postes de luz, de tão frágeis, aparentavam traves suspensas pelos próprios fios de eletricidade que sustentavam. Além da luz-névoa que transmitiam, eram muito distantes uns dos outros; intercalando, ao passeio de quem andava por aquela rua, ora espetáculos em sombras, ora saltos ao esquecimento dos olhos.
Contudo, não podem condenar as condições da rua pela disgra que sucedeu. É certo que o bueiro não deva ficar aberto por onde se anda, mas não estamos para reflexões sobre tampa de bueiro. Que falta pode fazer a luz, a tampa, ou qualquer sinalização, quando os olhos decidem acompanhar os pensamentos para onde quer que eles os carreguem?
O pé direito foi o primeiro a enfiar-se no buraco; seu joelho teimou à queda e a quina metálica do bueiro meteu-lhe os dentes arrancando o sangue que transitava por lá. Então, o resto do corpo tratou de lançar-se buraco adentro sem qualquer reação, sofrendo durante a travessia lesões bem menos graves: pequenas escoriações no quadril, ombros, braços e rosto. Demoraram uns tantos segundos para seus olhos se acostumarem com a pouca luz subterrânea. Enquanto isso, suas mãos, em ocasiões assim, frenéticas, correram a percorrer seu corpo todo em busca do tecido mais ferido, de um osso partido que, quem sabe, estive exposto àquele ar e água podres; ou um metal enferrujado rasgando a pele e carne. Sentiu o liquido quente escorrer na parte interna de sua coxa direita e uma madeira ainda cravada no ferimento, além do talho do joelho direito, expostos às bactérias já quase desesperançosas de tanto esperar a oportunidade para produzir seu fim, a tetanospasmina.
Quando os olhos se adaptaram, pôde ver o que sentia: a perna esquerda mergulhada até o joelho em água barrenta e o corpo todo em penumbra. A câmara onde estava depositado tinha dois metros e meio por um e meio, e apenas uma circunferência de aproximadamente cinqüenta centímetros, no rodapé da parede oposta a que se apoiava, recebia luz da superfície. Em cada uma das paredes mais estreitas, seguiam os tubos que serviam para descarregar os dejetos que lhe eram oferecidos; enquanto nas paredes mais largas, havia dois degraus que, provavelmente, foram feitos para não deixar atolar quem, vez outra, querendo o destino, ou o ofício capital, tinha que descer ali. Enquanto a perna direita se apoiava em um destes degraus, procurava apoio para as mãos para que o corpo todo ajudasse a desatolar a perna esquerda. Perdeu a consciência.
* * *
– Aqui, os ratos não fogem da gente.
Sentiu pavor. Como se entornassem água gelada nos nervos de seu corpo contraindo todos os seus músculos, causando tremor em todo o corpo. Era uma voz de criança, ou mulher, não sabia bem. A câmara estava, estranhamente, mais iluminada, mesmo assim franziu os olhos e buscou o dono da voz.
– Eu sei por que você veio parar aqui.
Era uma criança. Um menino de aproximadamente onze anos e naquela conversa despertou um menino que parecia feito de cera.
– Aqui a gente fica encolhidinho no canto, porque os ratos não fogem da gente. Aqui a gente tem medo deles, como eles têm medo da gente lá em cima.
Agora podia ver ratos farejando sobre os pés encolhidos do menino. Quando os ratos seguiam, ele voltava a falar.
– Eu não tinha mais esperança de sair daqui, mas o senhor me encontrou.
Estava apavorado, precisava, em primeiro lugar, conter seus nervos que, contraídos, amarraram seu corpo. Era ele quem precisava de ajuda, não conseguiria ajudar ninguém como estava. E aquele menino... Começou tentando controlar a respiração: mesmo com o fedor estacionado na câmara, inspirou até sentir os pulmões cheios e expirou todo o ar que conteve por várias vezes. O exercício tratava de acalmar seu coração que, embora continuasse batendo mais forte do que o normal, já diminuía o ritmo. Como reflexo pelo susto causado pelo menino, suas unhas tentavam fincar na parede de concreto; acalmou as mãos e apoiou-se de cócoras – como o menino – na extremidade oposta a que o menino estava. Exatamente na mesma posição, frente a frente, a dois metros de distância. Ao dobrar os joelhos, o beiço, recém inaugurado em seu joelho direito, abriu e o fez grunhir de dor lancinante, mas passageira. Um rato bebericava o sangue que pingava de sua bermuda no degrau onde estava apoiado.
– O senhor veio para me tirar daqui. Veio me encontrar, desfazer, e me levar com o senhor. Aqui, os ratos não têm por que fugir.
* * *
Acordou sentindo fisgadas nos talhos da coxa e joelho direito. Três ratos experimentavam a carne exposta: dois mordiam o ferimento da coxa, enquanto outro beijava o lábio fino de seu joelho. Teve ânsia; tentou espantar os ratos, que não se intimidaram. Pensou no galão d’água que preferiu a superfície, quando seu corpo se lançou bueiro abaixo. “Aqui, os ratos não têm por que fugir”. A idéia de fumar aumentava ainda mais sua ânsia. A sede era tanta que aquela água não parecia mais tão podre. A vista e os sentidos lhe faltaram outra vez.
* * *
O menino se aproximou, em passos cuidadosos, e exortou os ratos a deixarem sua perna. Sentou-se ombro a ombro com ele, e agora sua voz parecia vir em notas.
– O senhor não está me reconhecendo. Eu vim para cá quando o senhor se convenceu que era Carlos Eduardo da Rocha Baptista, e não mais Cadu. Eu sou o Cadu. E você quis me buscar e me levar junto com o senhor para onde o senhor for de agora em diante.
* * *
Voltou a consciência, foram os sentidos, os olhos, a carne e o sangue devorados pelos ratos, que, no esgoto, não têm por que fugir.
30 de abril de 2009
Uma consulta
Tinha a camisa, e a gravata (frouxa), e o paletó, amarrotados. Aceitou um copo d’água, aceitou um café, sentou na ponta da cadeira e disse não saber por onde começar. Estava, naquela tarde úmida, vivendo a metade de seus 38 anos. Tudo era cansaço no que aparentava e o frio não parecia incomodar sua angústia.
– Falar sobre a vida que carreguei até aqui? – em murmuro inaudível. Parecia se preocupar com o que desencadeou a lembrança de uma vida inteira. Não sabia como começou aquela vida, tão pouco como começaria a contá-la. Por um instante, tentou forçar o choro. Queria substituir as primeiras palavras por muco, lágrimas e soluços; mas os soluços, lágrimas e muco, junto com a coragem dos passos que o levaram até o consultório, também faltaram. À sua frente, o doutor fazia leves carícias no próprio queixo – carícias de um pensador, mas sem a barba dos psiquiatras que se prezam. Talvez tenha sido um engano – deixou o pensamento fugir.
Longos minutos com o silêncio cortado apenas pelo som da respiração forte de um e o roçar das mãos lisas no queixo áspero do outro. Até o doutor iniciar, lendo sua euforia:
– O que traz o senhor aqui?
Sentiu o coração acelerar, e a voz pareceu faltar, mas despontou numa alegria honesta quando conseguiu formar as primeiras frases.
– Não sei bem ao certo... Estou tão confuso agora. Achei que precisava falar com alguém... Não sei por onde começar. Quando me sentei aqui, senti como quem está curado.
– Quando foi que decidiu marcar esta consulta? O que você estava sentindo... o que o senhor buscava?
Sem se dar conta, com os olhos tentando ver os dois pés ao mesmo tempo, começou assim:
– Me alegra ver fotos. Mas só as fotos com pessoas. Cheia de dentes, que mostram os olhos, bocas, narizes, sobrancelhas, cílios, orelhas, bochechas, sardas, cabelos, testas, queixos e tem ainda aquilo tudo mais que algumas fotos despertam. Por vezes, choro vendo fotos. Ligou, não sei bem por que; sei que antes, resolveu casar.
Os nervos pilharam, tirou do bolso o aparelho celular, apertou um, outro botão e despejou toques e tons pelo escritório.
– Anunciou como música seu telefonema: assenti, atendi. Desde muito, estive distante de suas ambições que não pude imaginar quem era. Não sei bem, nem sei se me lembro bem, parece que queria empregar uma amiga, também jornalista. Foi educada, depois de justificar a chamada, perguntou por onde ando, como tenho passado. Ainda não sei bem se ela queria mesmo saber: acho que não. As fotos revelam mais do que um instante. Quantos olhares se perdem longe de nossa compreensão, sem passar pelo filtro de nossas expectativas? E, após aquele telefonema, revelou-se pra mim aqueles olhos na fotografia de anos antes. Se eu tivesse notado saberia, nunca iria ficar comigo. Ela tem voz rouca; falou como quem suspira a palavra e o sorriso em som. Foi um telefonema. O que sei, foi: alô; quanto tempo; como vai; jura?!?; minha amiga (...); resolvi meu amor, minha vida completou, estou casada. Sei bem o que esqueci estes anos todos. Tive que esquecer para viver estes anos todos, mas agora lembrei. A pergunta que me faço agora é : como posso viver em paz se agora perdi meu esquecimento? Estou tentando responder sua pergunta, doutor, mas outras perguntas surgem na frente. Acho que busco compreender, para a razão me levar outra vez para longe do que posso sentir. Mas aqueles olhos na fotografia me fizeram perceber, mais do que as palavras de seu telefonema: nunca seria minha. E éramos felizes; apaixonados!
– De maneira vulgar, diz-se que há uma diferença grande entre “estar feliz” e “ser feliz”. Quando “estamos felizes” associamos a uma condição emocional, que pode variar, e varia, a partir de determinadas situações ou acontecimentos. Neste caso, estamos sujeitos ações que podem desencadear uma série sensações de conflito. Quando “somos felizes”, associamos ao bem-estar: condição financeira, estrutura familiar, aspectos fisiológicos e psicológicos, e por aí vai. Cada vez mais creditasse a felicidade à qualidade de vida, e não a emoções.
Foi interrompido.
– Não estamos falando de felicidade, doutor! Dane-se a felicidade! Estou falando de amor! Amor nada tem a ver com felicidade.
– Esteve por anos, posso dizer feliz?, sem seu amor. Por que agora tanto sofrimento? Talvez vê-la casada tenha colocado você em conflito com você mesmo: a vida seguiu para um de vocês...
– Pode ter razão... minha vida ficou parada. Não mereci, não mereci nem ofereci o amor para mais ninguém.
Longa pausa. Doutor triunfante e paciente com os cotovelos nos joelhos, curvado, escondido debaixo da mesa, com as mãos na nuca. O paciente volta à posição ereta de quem está sentado e com o rosto estranhamente normal, volta a falar para o doutor.
– Com prazer, ela descreveu a escolha. Seus vícios, prazeres, vitórias. Inclusive, incluiu-se como conquista e vitória. Com o rigor dos detalhes... – já em pé, prosseguiu – Muito obrigado, doutor, o senhor me ajudou muito. Muito obrigado, mesmo.
– Na próxima semana no mesmo horário, então?
– Não, obrigado. Muito obrigado.
– Falar sobre a vida que carreguei até aqui? – em murmuro inaudível. Parecia se preocupar com o que desencadeou a lembrança de uma vida inteira. Não sabia como começou aquela vida, tão pouco como começaria a contá-la. Por um instante, tentou forçar o choro. Queria substituir as primeiras palavras por muco, lágrimas e soluços; mas os soluços, lágrimas e muco, junto com a coragem dos passos que o levaram até o consultório, também faltaram. À sua frente, o doutor fazia leves carícias no próprio queixo – carícias de um pensador, mas sem a barba dos psiquiatras que se prezam. Talvez tenha sido um engano – deixou o pensamento fugir.
Longos minutos com o silêncio cortado apenas pelo som da respiração forte de um e o roçar das mãos lisas no queixo áspero do outro. Até o doutor iniciar, lendo sua euforia:
– O que traz o senhor aqui?
Sentiu o coração acelerar, e a voz pareceu faltar, mas despontou numa alegria honesta quando conseguiu formar as primeiras frases.
– Não sei bem ao certo... Estou tão confuso agora. Achei que precisava falar com alguém... Não sei por onde começar. Quando me sentei aqui, senti como quem está curado.
– Quando foi que decidiu marcar esta consulta? O que você estava sentindo... o que o senhor buscava?
Sem se dar conta, com os olhos tentando ver os dois pés ao mesmo tempo, começou assim:
– Me alegra ver fotos. Mas só as fotos com pessoas. Cheia de dentes, que mostram os olhos, bocas, narizes, sobrancelhas, cílios, orelhas, bochechas, sardas, cabelos, testas, queixos e tem ainda aquilo tudo mais que algumas fotos despertam. Por vezes, choro vendo fotos. Ligou, não sei bem por que; sei que antes, resolveu casar.
Os nervos pilharam, tirou do bolso o aparelho celular, apertou um, outro botão e despejou toques e tons pelo escritório.
– Anunciou como música seu telefonema: assenti, atendi. Desde muito, estive distante de suas ambições que não pude imaginar quem era. Não sei bem, nem sei se me lembro bem, parece que queria empregar uma amiga, também jornalista. Foi educada, depois de justificar a chamada, perguntou por onde ando, como tenho passado. Ainda não sei bem se ela queria mesmo saber: acho que não. As fotos revelam mais do que um instante. Quantos olhares se perdem longe de nossa compreensão, sem passar pelo filtro de nossas expectativas? E, após aquele telefonema, revelou-se pra mim aqueles olhos na fotografia de anos antes. Se eu tivesse notado saberia, nunca iria ficar comigo. Ela tem voz rouca; falou como quem suspira a palavra e o sorriso em som. Foi um telefonema. O que sei, foi: alô; quanto tempo; como vai; jura?!?; minha amiga (...); resolvi meu amor, minha vida completou, estou casada. Sei bem o que esqueci estes anos todos. Tive que esquecer para viver estes anos todos, mas agora lembrei. A pergunta que me faço agora é : como posso viver em paz se agora perdi meu esquecimento? Estou tentando responder sua pergunta, doutor, mas outras perguntas surgem na frente. Acho que busco compreender, para a razão me levar outra vez para longe do que posso sentir. Mas aqueles olhos na fotografia me fizeram perceber, mais do que as palavras de seu telefonema: nunca seria minha. E éramos felizes; apaixonados!
– De maneira vulgar, diz-se que há uma diferença grande entre “estar feliz” e “ser feliz”. Quando “estamos felizes” associamos a uma condição emocional, que pode variar, e varia, a partir de determinadas situações ou acontecimentos. Neste caso, estamos sujeitos ações que podem desencadear uma série sensações de conflito. Quando “somos felizes”, associamos ao bem-estar: condição financeira, estrutura familiar, aspectos fisiológicos e psicológicos, e por aí vai. Cada vez mais creditasse a felicidade à qualidade de vida, e não a emoções.
Foi interrompido.
– Não estamos falando de felicidade, doutor! Dane-se a felicidade! Estou falando de amor! Amor nada tem a ver com felicidade.
– Esteve por anos, posso dizer feliz?, sem seu amor. Por que agora tanto sofrimento? Talvez vê-la casada tenha colocado você em conflito com você mesmo: a vida seguiu para um de vocês...
– Pode ter razão... minha vida ficou parada. Não mereci, não mereci nem ofereci o amor para mais ninguém.
Longa pausa. Doutor triunfante e paciente com os cotovelos nos joelhos, curvado, escondido debaixo da mesa, com as mãos na nuca. O paciente volta à posição ereta de quem está sentado e com o rosto estranhamente normal, volta a falar para o doutor.
– Com prazer, ela descreveu a escolha. Seus vícios, prazeres, vitórias. Inclusive, incluiu-se como conquista e vitória. Com o rigor dos detalhes... – já em pé, prosseguiu – Muito obrigado, doutor, o senhor me ajudou muito. Muito obrigado, mesmo.
– Na próxima semana no mesmo horário, então?
– Não, obrigado. Muito obrigado.
10 de março de 2009
Esconderijo-secreto
No corre-corre da rua, eu gostava de ser o primeiro a ultrapassar a linha-imaginária. A linha-imaginária, da prova-imaginária, onde eu e meus amigos competíamos pela medalha olímpica, fazia de nossos vinte metros de asfalto a pista de cem metros-rasos do atletismo. Estes mesmos vinte metros de asfalto, todas as tardes, durante as férias escolares, se transformavam em Maracanã da molecada da vila. Na rua, chinelo de dedo não era chuteira de futebol, nem tênis de corrida; pra não perder, ou estragar, e levar a bronca descalça em casa, dos pés os chinelos corriam para as mãos e acompanham, como luvas, os Zicos, Sócrates e Pitas de nossos clássicos intermináveis. Apenas com o escuro da noite, nossas mães lembravam de seus apitos – que fazíamos questão de esquecer em casa – e surgiam árbitras para encerrar a partida.
Estava lembrando: tive tantos amigos e uma casa boa e grande. Em geral, as casas de meus amigos eram de materiais adaptados onde, por exemplo, madeiras serviam de apoio ao concreto quebrado das escadas e as desconstrutivas reformas começavam para nunca terem fim; ou então, eram pequenos quartos-banheiros escondidos no fundo do quintal de outras casas. O eco que minha bola de capotão fazia na garagem de Dona Ana – enquanto eu esperava pelo amigo do casebre do quintal, enquanto ele acabava de lavar a louça do café-da-manhã – nunca mais ouvi; e, como sabemos, as manhãs, tardes e noites também não se formam iguais às daqueles dias.
Não tive também, nunca mais, o mesmo calafrio de quando atravessava a viga – tapete-vermelho, para os meus olhos – que me carregava da calçada para dentro da casa do outro amigo. Este amigo, como era comum, era muito amigo. E se hoje ainda há amigo, ele ainda é. Sua casa oferecia tudo que uma criança poderia querer: tinha o tapete de terra batida, onde jogávamos fubeca; tinha um depósito de madeiras e tábuas, onde se escondiam os ratos e a gente conseguia matéria-prima para os jogos de taco da rua; tinha a ausência dos mais velhos, já que cedo todos corriam para ganhar o jantar. Dependendo da disposição dos olhos, parecia construção abandonada.
Num fim de tarde, como já havia ocorrido em tantos outros fins-de-tarde, a mãe deste meu amigo veio bater à porta de casa a sua procura – minha casa era sempre a primeira opção, já que éramos como ‘unha e carne’. Foi surpreendida ao me ver de banho tomado, sem sinais da bagunça que por certo existiria se estivesse com seu filho. “Meu deus, onde se meteu esse menino”. Não demonstrei – um amigo jamais aumenta a preocupação da mãe do outro, o castigo por preocupar os pais varia de dois a dez dias sem sair de casa –, mas meu espanto era ainda maior: como é que eu não sabia onde ele estava? Sua mãe mal virou às costas, surge da esquina o vulto raquítico dele.
– Minha mãe passou aqui, né? Deve estar indo para a casa do Márcio agora, depois me procura na pracinha e volta para casa – disse, safo.
– Acho a cinta vai cantar lá hoje, né? – redargüi, meio complacente e, talvez, com um leve sorriso. – Mas onde você se meteu, afinal?
– Vamos lá em casa que te mostro. É até bom você estar lá comigo quando minha mãe voltar, ela tem vergonha de bater em mim na frente dos outros.
Mesmo sabendo que minha presença era medida paliativa – nós dois sabíamos disso – e que, de banho tomado, eram as regras daquele tempo, eu não poderia sair de casa para badernar, pulei o portão e nos pusemos a correr pelas ruas. Saltamos da calçada para dentro da casa sem usar a viga, subimos com cuidado, mas rapidez, pela escada de degraus estraçalhados, entramos na casa por um buraco onde deveria ter uma janela, passamos por quarto, sala e chegamos ao fundo da casa – onde ficava um espaço que sugeria que iria se tornar um outro quarto um dia. Onde, como eu suspeitava, a casa terminava.
– Cuidado para não enroscar na grade – indicava enquanto se contorcia para passar onde seria a janela do projeto de quarto.
Arranhei as costas na grade, mas consegui atravessar a janela, pulamos uma muretinha à esquerda e chegamos num ambiente que parecia um universo paralelo.
– Aqui é o meu esconderijo-secreto – anunciou.
“Um esconderijo-secreto!!!”, em pensamento tão alto que não sei se apenas pensei ou deixei escapar entre os dentes. Era um terreno que tinha menos de um metro de largura, em barranco, onde, com algumas tábuas que sumiram de sua casa sem seu pai perceber, ele construiu um quartinho de madeira na pirambeira. O lugar estava cheio de parafernálias, como um ninho de rato. De cara, reconheci uma bola de capotão que a molecada da vizinhança andava procurando. Tinha lanterna, potes de bolas de gude – sem dúvida, algumas delas já haviam me pertencido –, gibis, pião, bilboquê, aquaplay: presentes que a vizinhança oferecia.
– É aqui que eu venho quando quero ficar sozinho.
Percebi naquele fim de tarde, pela primeira, vez a beleza, e necessidade, de ficar sozinho; com meu amigo de dez anos que criou um universo só seu. Entre paredes que ofereciam os sussurros de sua casa e da casa de sua vizinha sem que ele precisasse oferecer nada em troca. Era um fantasma quando estava lá. Voltamos para dentro da casa quando ouvimos a viga que iniciava a casa soluçar com os passos pesados da mãe. Pelo olhar dela, confirmei com os olhos para meu amigo: “a cinta vai cantar”; ele ameaçou sorrir: já estava calejado.
Recusei o convite para jantar e desejei sorte para o meu amigo: a noite mal estava começando para ele. Voltei para casa chutando pedras e olhando pro chão, dobrei uma esquina e surgiu minha casa, como a casinha da Barbie: a coisa mais sem graça que poderia existir. Minha mãe no portão, não disfarçava sua preocupação.
– Se o seu pai chega em casa e você está na rua, já viu, né? Afinal, onde você se meteu?
Sem o menor cuidado para disfarçar o meu incômodo, respondi enquanto entrava:
– No castelo do He-Man – e entrei com desgosto em minha casa perfeita.
Estava lembrando: tive tantos amigos e uma casa boa e grande. Em geral, as casas de meus amigos eram de materiais adaptados onde, por exemplo, madeiras serviam de apoio ao concreto quebrado das escadas e as desconstrutivas reformas começavam para nunca terem fim; ou então, eram pequenos quartos-banheiros escondidos no fundo do quintal de outras casas. O eco que minha bola de capotão fazia na garagem de Dona Ana – enquanto eu esperava pelo amigo do casebre do quintal, enquanto ele acabava de lavar a louça do café-da-manhã – nunca mais ouvi; e, como sabemos, as manhãs, tardes e noites também não se formam iguais às daqueles dias.
Não tive também, nunca mais, o mesmo calafrio de quando atravessava a viga – tapete-vermelho, para os meus olhos – que me carregava da calçada para dentro da casa do outro amigo. Este amigo, como era comum, era muito amigo. E se hoje ainda há amigo, ele ainda é. Sua casa oferecia tudo que uma criança poderia querer: tinha o tapete de terra batida, onde jogávamos fubeca; tinha um depósito de madeiras e tábuas, onde se escondiam os ratos e a gente conseguia matéria-prima para os jogos de taco da rua; tinha a ausência dos mais velhos, já que cedo todos corriam para ganhar o jantar. Dependendo da disposição dos olhos, parecia construção abandonada.
Num fim de tarde, como já havia ocorrido em tantos outros fins-de-tarde, a mãe deste meu amigo veio bater à porta de casa a sua procura – minha casa era sempre a primeira opção, já que éramos como ‘unha e carne’. Foi surpreendida ao me ver de banho tomado, sem sinais da bagunça que por certo existiria se estivesse com seu filho. “Meu deus, onde se meteu esse menino”. Não demonstrei – um amigo jamais aumenta a preocupação da mãe do outro, o castigo por preocupar os pais varia de dois a dez dias sem sair de casa –, mas meu espanto era ainda maior: como é que eu não sabia onde ele estava? Sua mãe mal virou às costas, surge da esquina o vulto raquítico dele.
– Minha mãe passou aqui, né? Deve estar indo para a casa do Márcio agora, depois me procura na pracinha e volta para casa – disse, safo.
– Acho a cinta vai cantar lá hoje, né? – redargüi, meio complacente e, talvez, com um leve sorriso. – Mas onde você se meteu, afinal?
– Vamos lá em casa que te mostro. É até bom você estar lá comigo quando minha mãe voltar, ela tem vergonha de bater em mim na frente dos outros.
Mesmo sabendo que minha presença era medida paliativa – nós dois sabíamos disso – e que, de banho tomado, eram as regras daquele tempo, eu não poderia sair de casa para badernar, pulei o portão e nos pusemos a correr pelas ruas. Saltamos da calçada para dentro da casa sem usar a viga, subimos com cuidado, mas rapidez, pela escada de degraus estraçalhados, entramos na casa por um buraco onde deveria ter uma janela, passamos por quarto, sala e chegamos ao fundo da casa – onde ficava um espaço que sugeria que iria se tornar um outro quarto um dia. Onde, como eu suspeitava, a casa terminava.
– Cuidado para não enroscar na grade – indicava enquanto se contorcia para passar onde seria a janela do projeto de quarto.
Arranhei as costas na grade, mas consegui atravessar a janela, pulamos uma muretinha à esquerda e chegamos num ambiente que parecia um universo paralelo.
– Aqui é o meu esconderijo-secreto – anunciou.
“Um esconderijo-secreto!!!”, em pensamento tão alto que não sei se apenas pensei ou deixei escapar entre os dentes. Era um terreno que tinha menos de um metro de largura, em barranco, onde, com algumas tábuas que sumiram de sua casa sem seu pai perceber, ele construiu um quartinho de madeira na pirambeira. O lugar estava cheio de parafernálias, como um ninho de rato. De cara, reconheci uma bola de capotão que a molecada da vizinhança andava procurando. Tinha lanterna, potes de bolas de gude – sem dúvida, algumas delas já haviam me pertencido –, gibis, pião, bilboquê, aquaplay: presentes que a vizinhança oferecia.
– É aqui que eu venho quando quero ficar sozinho.
Percebi naquele fim de tarde, pela primeira, vez a beleza, e necessidade, de ficar sozinho; com meu amigo de dez anos que criou um universo só seu. Entre paredes que ofereciam os sussurros de sua casa e da casa de sua vizinha sem que ele precisasse oferecer nada em troca. Era um fantasma quando estava lá. Voltamos para dentro da casa quando ouvimos a viga que iniciava a casa soluçar com os passos pesados da mãe. Pelo olhar dela, confirmei com os olhos para meu amigo: “a cinta vai cantar”; ele ameaçou sorrir: já estava calejado.
Recusei o convite para jantar e desejei sorte para o meu amigo: a noite mal estava começando para ele. Voltei para casa chutando pedras e olhando pro chão, dobrei uma esquina e surgiu minha casa, como a casinha da Barbie: a coisa mais sem graça que poderia existir. Minha mãe no portão, não disfarçava sua preocupação.
– Se o seu pai chega em casa e você está na rua, já viu, né? Afinal, onde você se meteu?
Sem o menor cuidado para disfarçar o meu incômodo, respondi enquanto entrava:
– No castelo do He-Man – e entrei com desgosto em minha casa perfeita.
19 de fevereiro de 2009
Mais um adeus
Os pássaros anunciam o tempo dos sons e os dois podem rir um pouco mais alto: sobe o sol e aumenta o volume; até agora sussurravam. O dia tem o pé-direito alto, limpo, e encerra uma noite que faz valer a vida. Não dormiram.
Na noite anterior, quando ela chegou, o encontrou de banho tomado e sorriso. Ela adora seu sorriso, adora encontrá-lo de cabelos molhados. Apressou seu banho também – não passava das sete da noite –, para depois descobrir que, enquanto ensaboava o corpo, o vapor da água quente do chuveiro elétrico se cristalizava no espelho banheiro revelando uma mensagem – escrita a dedo – por seu amigo: “Hoje não precisará de espelho, verá em meus olhos como é linda. Com amor, seu menino”. Inflou de alegria, e vapor quente que dançava com o vento de sua toalha, e teve dúbia sensação de nunca mais poder lavar aquele espelho.
Ele mal tocou a comida encomendada. Beberam vinho, contaram e riram do passado que criaram juntos e dos passados que criaram separados. E se beijavam apaixonados, brincando. Depois re-inventavam a tristeza para chorar um no colo do outro. E se beijaram cúmplices, misturando as lágrimas. Declarações de amor, sonhos para fazer do momento o eterno, e se beijavam com os olhos. A noite toda: ora com a cabeça nos pés do outro, ora combinando as posições. Olhavam para teto e deixavam as mãos brincar, ou fechavam os olhos para os corpos se verem nus. Ela não ficava vermelha com as baixarias declamadas por ele.
A noite e a história acabaram e chegou a hora do adeus. Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite. Mas já era dia e ele jazia acordado. O sono iria encontrá-la em seu vôo de volta. Ele voltou para o quarto, re-encostou no colchão, sentiu o seu cheiro no lençol, no travesseiro e nas mãos e estacionou com o pensamento distante no futuro. Deveria prestar-se ao que sobrou, o cheiro, que, como sua amiga, também desaparecerá e o deixará para sempre a imaginar.
Na noite anterior, quando ela chegou, o encontrou de banho tomado e sorriso. Ela adora seu sorriso, adora encontrá-lo de cabelos molhados. Apressou seu banho também – não passava das sete da noite –, para depois descobrir que, enquanto ensaboava o corpo, o vapor da água quente do chuveiro elétrico se cristalizava no espelho banheiro revelando uma mensagem – escrita a dedo – por seu amigo: “Hoje não precisará de espelho, verá em meus olhos como é linda. Com amor, seu menino”. Inflou de alegria, e vapor quente que dançava com o vento de sua toalha, e teve dúbia sensação de nunca mais poder lavar aquele espelho.
Ele mal tocou a comida encomendada. Beberam vinho, contaram e riram do passado que criaram juntos e dos passados que criaram separados. E se beijavam apaixonados, brincando. Depois re-inventavam a tristeza para chorar um no colo do outro. E se beijaram cúmplices, misturando as lágrimas. Declarações de amor, sonhos para fazer do momento o eterno, e se beijavam com os olhos. A noite toda: ora com a cabeça nos pés do outro, ora combinando as posições. Olhavam para teto e deixavam as mãos brincar, ou fechavam os olhos para os corpos se verem nus. Ela não ficava vermelha com as baixarias declamadas por ele.
A noite e a história acabaram e chegou a hora do adeus. Ela fechou a porta com vagar extremo e se afastou, furtiva, como quem abandona um doente que acaba de adormecer à meia-noite. Mas já era dia e ele jazia acordado. O sono iria encontrá-la em seu vôo de volta. Ele voltou para o quarto, re-encostou no colchão, sentiu o seu cheiro no lençol, no travesseiro e nas mãos e estacionou com o pensamento distante no futuro. Deveria prestar-se ao que sobrou, o cheiro, que, como sua amiga, também desaparecerá e o deixará para sempre a imaginar.
12 de fevereiro de 2009
Casamento II – ou paixões e choros
Em alguns anos, os votos diante do padre se esquecem longe do coração. Em pouco tempo. A paixão resolve perambular para longe da casa e teimosa – talvez desesperada –, às vezes se deixa errar por um colega do trabalho, ou por um amigo novo de uma amiga antiga. E insiste lançando convites para que saia da redoma. Apaixona-se e desconfia que o mesmo aconteça com seu marido. Um antigo amor prepara-se para se tornar pai pela terceira vez. Sente inveja, desejou um filho dele como nunca desejou de seu marido – com quem, ao casar, tornou-se amiga e passou a se esconder.
As paixões surgem e desaparecem; ressurgem e somem outra vez; e se repetem até calejarem o peito e desaparecerem de uma vez por todas. Sem paixão, com um pequeno remorso por todas as noites que dormiu ao lado de seu marido carregando o vulgar de algum amante, deixa chorar. E sorri, durante o choro, ao lembrar namoros de antes de casar.
Nada litúrgico, sai do elevador de um prédio do centro cidade ajeitando a alça do vestido. Estrala, diante dela, a fechadura da porta metálica; não olha para o porteiro, fecha a porta, e saí. Saí, mas fica ali parada. Chora mais uma vez. Sentada no chão, apoiada na porta, atrás da porta, para fora, para a rua. Se não chorasse talvez explodisse, e chora como quem evita a explosão, em convulsões. Até que o choro acaba: de repente o choro parece não precisar mais e a deixa sob um leve desconforto... e vem o sono dizer que dormir é o fim do choro.
Não conhece o choro por solidão. Talvez inveje quem por solidão chora. Costuma fugir e se esconder quando quer chorar: gostaria de chorar parada.
As paixões surgem e desaparecem; ressurgem e somem outra vez; e se repetem até calejarem o peito e desaparecerem de uma vez por todas. Sem paixão, com um pequeno remorso por todas as noites que dormiu ao lado de seu marido carregando o vulgar de algum amante, deixa chorar. E sorri, durante o choro, ao lembrar namoros de antes de casar.
Nada litúrgico, sai do elevador de um prédio do centro cidade ajeitando a alça do vestido. Estrala, diante dela, a fechadura da porta metálica; não olha para o porteiro, fecha a porta, e saí. Saí, mas fica ali parada. Chora mais uma vez. Sentada no chão, apoiada na porta, atrás da porta, para fora, para a rua. Se não chorasse talvez explodisse, e chora como quem evita a explosão, em convulsões. Até que o choro acaba: de repente o choro parece não precisar mais e a deixa sob um leve desconforto... e vem o sono dizer que dormir é o fim do choro.
Não conhece o choro por solidão. Talvez inveje quem por solidão chora. Costuma fugir e se esconder quando quer chorar: gostaria de chorar parada.
6 de fevereiro de 2009
Casamento I – ou o ato litúrgico
A vida pareceu pedir um passo adiante; decidiu casar. Não que o noivo não importasse: importava, e muito. Mas tinha à mão um ideal: educado, amigo de seus amigos, bom amante, pouco dinheiro – como a maioria que pensam artisticamente –, mas de família abastada (no fundo, julgava que quando se casassem ele desistiria do violão e arrumaria um emprego com vencimentos); além disso, lhe agravada sua companhia. Nas novelas há sempre um personagem com as características do noivo: levemente, e estrategicamente, desarrumado, com a barba levemente, e estrategicamente, mal-feita, cabelos levemente, e estrategicamente, desarrumados.
A vida precisava dar um passo à frente e o passo foi dado. Mais duas semanas, ou dois jantares, e estavam noivos. Põem-se a escolher as madrinhas, os padrinhos, a paróquia, o padre, enquanto as famílias dos dois já estão feitas. Flores, vestido, terno, salão para receber os convidados, viagem e hotel para consumarem; tudo arranjado. Noiva tranqüila, noivo disfarça. No altar, está como que outra pessoa: totalmente, e estrategicamente, arrumado. A noiva tem uma crise. Chora copiosamente dentro do carro. “Cuidado com a maquiagem”; “está tão emocionada”; “é um dia muito importante”. A noiva chora; mas não pela emoção a qual a creditam. Não pelo precipício matrimonial, ou pelo noivo que com o qual trocará votos: a escolha do marido lhe parece digna; chora porque pretende cumprir seus votos e um adeus antigo teimou em voltar, desta vez, com caráter bem mais severo: como se finalmente aquele adeus se tornasse adeus.
Chorou, mas logo recompôs a paz. Deu todos os passos que subiram a escada, surgiu na igreja – “linda”, vibrou n’algum canto – firme. Sorriu para os amigos do colégio e faculdade, depois aos colegas de escritório, mais adiante aos parentes que não via há muito tempo, até encontrar as lágrimas dos irmãos na primeira fileira. Despediu-se do pai e se casou diante de padre, testemunhas e, como disse o padre, de deus. Mais tarde, deitou com prazer e ternura: finalmente, como ato litúrgico.
A vida precisava dar um passo à frente e o passo foi dado. Mais duas semanas, ou dois jantares, e estavam noivos. Põem-se a escolher as madrinhas, os padrinhos, a paróquia, o padre, enquanto as famílias dos dois já estão feitas. Flores, vestido, terno, salão para receber os convidados, viagem e hotel para consumarem; tudo arranjado. Noiva tranqüila, noivo disfarça. No altar, está como que outra pessoa: totalmente, e estrategicamente, arrumado. A noiva tem uma crise. Chora copiosamente dentro do carro. “Cuidado com a maquiagem”; “está tão emocionada”; “é um dia muito importante”. A noiva chora; mas não pela emoção a qual a creditam. Não pelo precipício matrimonial, ou pelo noivo que com o qual trocará votos: a escolha do marido lhe parece digna; chora porque pretende cumprir seus votos e um adeus antigo teimou em voltar, desta vez, com caráter bem mais severo: como se finalmente aquele adeus se tornasse adeus.
Chorou, mas logo recompôs a paz. Deu todos os passos que subiram a escada, surgiu na igreja – “linda”, vibrou n’algum canto – firme. Sorriu para os amigos do colégio e faculdade, depois aos colegas de escritório, mais adiante aos parentes que não via há muito tempo, até encontrar as lágrimas dos irmãos na primeira fileira. Despediu-se do pai e se casou diante de padre, testemunhas e, como disse o padre, de deus. Mais tarde, deitou com prazer e ternura: finalmente, como ato litúrgico.
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