Quando acordei pela primeira vez não reconheci o quarto onde estava. Enxergava através do rosto do homem uma velha lâmpada amarela com sardas verde-oliva: frutos da última pintura no teto. Ainda não havia notado que o homem também via através de mim descrevendo seus sonhos em verdana 10. Deixei minha atenção passear por uma prateleira com troféus baratos, com uma velha foto e com alguns livros e cd’s. À esquerda da prateleira não entedia bem o que era um amontoado num baú entreaberto. Meses mais tarde, descobri ser uma pilha de lp’s, que aguardavam agulhas de vitrola para vaciná-los contra o ostracismo, e recortes de jornal, que sonhavam com a encadernação e a vida longe das traças. Havia ainda uma luminária à minha direita que, ao apagar da luz amarela do central do teto, acendia para dar vida a um fantástico mundo de sombras e penumbras no universo do quarto.
Finalmente detive minha atenção ao homem que me lançava um olhar profundo e sem pedir licença roçava a minha barriga. Quando deixava de lado o ventre, com a ponta dos dedos, suavemente, tocava com uma regularidade, quase mecânica, partes diferentes de meu corpo. O semblante do invasor era assustadoramente sério e compenetrado. No entanto, com certa freqüência atirava suas costas ao encosto da cadeira, colocava as duas mãos na nuca ¬– geralmente sem tirar os olhos de mim – e, mesmo alterando tão levemente as expressões de rosto que eu mal posso dizer quais eram, demonstrava uma profunda satisfação. Às vezes repetia a massagem, com a ponta macia de seu dedo anular da mão direita, três vezes no mesmo lugar e lançava sorrisos (que eu julgava) maliciosos e me davam calafrios...
Talvez ainda estivesse em estado de embriaguez pela ofuscante sensação de nascer pensando. De nascer com memória, saber exatamente a minha capacidade e o que poderia suportar por toda minha vida. Ter que conviver com as limitações de meu tempo e com uma consciência a me abortar a todo instante qualquer vestígio de esperança que pudesse apontar a um futuro mais evoluído. A esperança e busca interior para me tornar mais capaz nunca existiu ou existirá em mim. Posso aprender até um limite e, pesquisando a história de meus antepassados, sei que é pouco provável aproveitar minha capacidade máxima. Depende do dia, fico feliz ou triste pensando nisto.
Mas com o passar dos meses acredito ter evoluído espiritualmente. Talvez junto de meu dono, que adora me convidar para pesquisas filosóficas-religiosas. Hoje nada me dá mais prazer do que acompanhar e servir às brincadeiras do meu patrão. Sinto-me aproximar do estado de nirvana quando correspondo às ordens de meu único e absoluto senhor. A estranheza inicial, que ia do teto verde-oliva até a fisionomia áspera daquele homem, se tornou dependência mútua. Como em alguns casamentos tradicionais, o brilho dos olhos que me olham com o passar do tempo não era mais o mesmo. Como em alguns casamentos tradicionais, ainda não me trocou porque, quando se mora junto, a união vai além do físico. A união se fortalece com os segredos, planos e ambições compartilhados. E isto nós temos de sobra. Sou seu confidente mais confiável e posso dizer que sem ele minha existência perde qualquer sentido.
Não me importa que em dois anos tenha deixado de ser atraente para ele e passado a ser um objeto de utilidade básica. Não me importa que a cada dia se tornem mais recorrentes tapas em minha carcaça quando empaco pelo excesso de trabalho ao mesmo tempo. Eu não posso fugir dele, mas ele não pode fugir de mim. Sei de sua vida e sei o que ele ganhou com a dedicação que aplicamos em nossas madrugadas de trabalho... Nada! Conquistar modelos da moda custa caro.
Ele já me chamou de máquina poderosa, hoje sou máquina de escrever.
4 comentários:
Todo mundo lia este texto e não entendia nada...rs... Então, decidi colocar uma frase no fim que indicasse com mais clareza quem narra este conto... E agora, facilitei um pouco a vida de você, caro leitor?
Ufa! Finalmente consegui chegar ao teu blogo. prometo voltar várias vezes, já que pelo jeito são muuuuuuuitos textos... É isso, cara, intercâmbios de blogos...
Abç,
Zidane
Há, há, há!! Genial seu texto e sua história.
Confesso que passei aqui outro dia, li seu texto e não entendi muito bem. Decidi refletir um pouco antes de comentar.
Voltei hoje e pronto!
Até lembrei de uma frase de Mario Quintana: "O Trágico Dilema.
Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro."
Acho que sou eu. Obrigada pela ajudinha.
Beijos
ah sim..a máquina de escrever..rsrs
gostei ela é bem submissa
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