10 de dezembro de 2008

A menina que fez um homem

E com os olhos enormes, como uma criança que se vê descoberta pelo padre sozinha na sacristia, respondeu “não” com a cabeça.

Os dois têm ali quinze anos; idade quando isso acontece.

– Não tenha medo. Beije meu corpo, sinta minha pele, sinta meu cheiro... descubra meu corpo.

O menino ia sem jeito, e vagaroso. A menina fechava os olhos e acendia todo o corpo; com o vento da respiração seus pêlos subiam e desciam. Suas mãos acariciavam sua nuca, enquanto lhe era beijado o ventre; a língua no umbigo arrepiou braço, perna e todo o dorso direito. Suspirava baixinho e sorria; com olhos fechados e os cachos de seus cabelos flutuando. Encontrou uma de suas mãos esquecida no travesseiro: beijou sua palma, cobriu o rosto com ela, tocou os lábios na ponta dos dedos e a pousou no seio esquerdo – acima de coração e pulmão que começavam a ofegar.

A menina já tinha tido outros namorados, não muitos. O menino era cordial; colocava sua curiosidade muito atrás do cuidado que tinha com ela. Tratava seu corpo como objeto que pudesse romper; estilhaçar. Alisou primeiro uma, depois a outra, perna – dos pés ao quadril; contornou a cintura; brincou com seu pêlos. Voltou a beijar seus seios e pescoço, e parou diante dela. Estavam tão próximos que os olhos tiveram dificuldade para focar os olhos um do outro.

– Não tenho medo. Aqui, em você, deixarei de ser menino e sempre que procurar este menino de volta, vou lembrar que ele está aqui; neste momento que durará para sempre em você e em mim.

Eles se beijaram por toda aquela tarde. Brincaram com as delícias de seus corpos nas semanas e meses seguintes. Até adormecerem um para o outro e acordarem em outros olhares. Choveu muito até o homem se lembrar do menino. Quando se lembrou, a mulher que lhe guardou já gerava outra criança (de outro menino) que iria se tornar menino e crescer lentamente até se tornar o homem que ela viu nascer nela um dia.

5 de dezembro de 2008

São Francisco, Estados Unidos, 05 de junho de 2003

Esta é a oitava carta entre dois irmãos chineses: Tài Tai Li de São Francisco (EUA), e Lao Peng Li que foi à China devido a morte do pai. Acompanhe as cartas anteriores: primeira, de Aiko Koan, avisando a morte do pai; segunda, de Lao Peng Li, assim que chegou na China; terceira, de Tài Tai; quarta e quinta de Lao Peng; sexta de Tài Tai; e sétima de Lao Peng.



São Francisco, Estados Unidos, 05 de junho de 2003

Olá, querido irmão.


Quanta angústia me acompanhou durante estes quatro meses que estive sem notícias suas. Chorei sobre cada palavra que dediquei a você em minha última carta. Depois dela, todas as semanas escrevi e enviei cartas e mais cartas ao seu destino: a princípio, cartas de perdão; depois, cartas desejando que o perdão viesse acompanhado por notícias; por fim, rezava sobre o papel apenas por um sinal de que estivesse vivo – mesmo que guardasse por mim todo o rancor do mundo. Agora que sabei que não está mais em Jilin, imagino que não tenha recebido nenhuma destas correspondências.

Depois de mais de cem dias de expectativa, depositando minhas cartas nas urnas do correio, como um náufrago lança seu pedido de socorro em garrafas pelos oceanos, recebo este envelope grafado com seu nome. Que alívio: seu nome, sua letra! Mas as notícias que me encaminha já se encarregaram de tornar a angústia ao meu peito. Coreanos à sua procura; esta misteriosa mulher, Xiao; você em Dandong nesta captura. Tudo muito misterioso. A princípio imaginei que esta moça pudesse fazer companhia a nosso pai nas noites em que se sentia muito só; mas parece que outras intenções, ou finalidades, ambos teriam com estes encontros. O que lhe parece, meu irmão? Quais impressões despertam seu medo? Evito pensar que haja qualquer relação entre nosso pai e os tais norte-coreanos.

Nestes meses de ausência o lucro da loja contínua sendo divido igualmente em nossas metades. Encaminho com a carta uma parte de “seu salário” do último mês. Não tenho certeza de que seja seguro mandar grandes quantidades num único envelope. Caso a entrega se comprove segura, e seja de sua vontade e necessidade, mando pouco a pouco, carta a carta, o dinheiro que é seu e está aqui comigo.

Não vejo motivos para levar até você mais preocupações, quero que saiba que por aqui está tudo em ordem. A não ser por um ocorrido: Tung diz estar grávida de mim. Sua barriga já salta aos olhos, e isso parece não atrapalhar que continuem a lhe procurar na boate. Pedi que ela parasse de trabalhar, pelo menos por enquanto, mas, como seus clientes – cada vez mais numerosos –, parece não se importar. Diz que vai continuar servindo no bordel enquanto puder. Diz ainda que só sai de lá quando um homem se oferecer para cuidar dela e do filho; ou seja, se casar com ela. Não suporto a idéia de tantos outros a violarem enquanto carrega meu filho em seu ventre. Não sei o que fazer, irmão. Mas deixe que resolvo tudo aqui, não tenha preocupações comigo.

Escreva com urgência, não me deixe aqui aflito. Continua a vir aqui, de quinze em quinze dias, aquele senhor chinês a quem pagamos pela segurança da loja. Dizem que ele tem muitos contatos na China. Caso consiga mais informações e o nome completo de Xiao, posso pedir a ele que investigue com seus companheiros quem é esta moça. O que acha?

Mantenha-se firme. Muito cuidado, não sabemos com quem você pode estar se metendo; cuidado irmão. E não deixe de escrever.

Forte abraço,

Tài Tai Li

2 de dezembro de 2008

Blogs unidos por Santa Catarina

Esta página, até aqui dedicada exclusivamente a Contos, abre espaço para um assunto muito mais sério: a campanha de apoio às vítimas da chuva em Santa Catarina.



Segue também o acesso para a página da Defesa Civil, onde encontrará mais informações.

27 de novembro de 2008

Sonhos sonhos são

Se fosse por deus um dia convocado a, por uma tarde que fosse, elucubrar e discutir sobre suas criações – os mundos, as pessoas, os animais e tudo mais o que fez e assinou – sei o elogio que faria para envaidecer o nosso senhor. E não faria tendo em vista ganhar ao algum prestígio junto à entidade máxima; receberia minhas palavras por merecimento – a partir do que vejo nas coisas, claro. No entanto, embora o elogio seja completamente honesto, provavelmente, como forma de retribuir-lhe a palavra quando tivesse retomado a simpatia por mim, adotaria um discurso que iniciaria pelas críticas e encerraria no elogio.

Tão difícil, perto do impossível, encontrar natureza pura, cheia em prós e sem nenhum contra. Vejo, em tudo, árvores traiçoeiras, que oferecem frutos lisos em sua superfície, enquanto carregam bicheiras em suas entranhas. O mar, marchando como soldados sem sair do lugar, diz que por ora, talvez por um acordo entre cavalheiros, não invadir terra adentro; por ora! O vento vez em quando bate uma de minhas portas para lembrar que está aí; a chuva castiga com seus excessos, ou largas intermitências. O temperamento dos climas, o temperamento dos bichos.

Se em tudo que vejo há um quê de perigo, guardo para onde os olhos descansam, assim como a consciência, meu elogio: “deus, você acertou quando nos deu os sonhos”. Que belo trabalho. Há aqueles que preferem se restringir ao seu tempo e espaço e não vem à tona quando despertamos; mesmo a estes agradeço. Acordamos um pouco diferentes todos os dias sem saber por quê. Mesmo assim, talvez por características minhas – de certo, existem os que se assustam com os sonhos que têm e devem discordar de mim –, prefiro acordar trazendo o sonho comigo: recordar sob o chuveiro, enquanto ensabôo o corpo, a estranha história do macaco que, único habitante de uma ilhota perdida num oceano qualquer, atira bananas e cocos enquanto eu circundava aquele terreno dentro um minúsculo caiaque de volta ao continente. “O que será que tem esse macaco comigo?”, enquanto água e sabão vão levando ao ralo os detalhes desta história tão viva há segundos atrás.

E os sonhos dão-se de diferentes formas, graus, intensidades; têm seus caprichos, são adivinhos às vezes; ora sentem-se impregnados e são conduzidos por nossas angústias. E, do mesmo jeito que podem passear pelo nosso consciente durante os primeiros momentos em quê acordamos – é raro, mas acontece –, podem convidar nossa consciência para participar da fantasia.

Uma grande amiga de minha esposa trouxe outro dia à nossa casa uma história fantástica. Seu marido havia desaparecido. Segundo ela, quando acordou o sujeito estava às voltas pelo quarto; ora levava uma mão ao queixo, ora coçava a nuca. Nunca o vira acordar assim. Perguntou o que ele tinha; se estava bem. Quando ouviu sua mulher, finalmente ficou estático: “Querida, tive hoje a experiência mais fascinante de minha vida”. “Nunca o vi com aquele olhar”, dizia a mulher à minha esposa, enquanto eu assistia a história de longe. “Estavam todos lá” – repetindo as palavras e olhos do marido – “você, seu irmão, meu irmão, o cachorro da rua, a dona Sônia, a dona Maria, a dona Madalena, o homem da banca de jornal; o homem da banca de jornal!... todo mundo... meu chefe estava lá, meu estagiário; o cara da informática... Estávamos na chácara de seu pai. Mas não parecia a chácara de seu pai. Era como se quintal da casa onde nasci pertencesse à chácara de seu pai. Meu Deus, como era nítido. Estavam todos lá... até quem já morreu estava lá... meu pai, meus avós, meus cachorros, o periquito... ao fundo, bem escondidinhas, vi até as capivaras que desciam do barranco para o rio todo fim de tarde e que eu ia ver com a minha avó. Como pode ter sido tudo tão nítido?!?”. “Parecia um completo maluco”, parava às vezes para alguma consideração, o que me irritava muito, já que narrava e interpretava com a competência de um ator profissional, e estas interrupções tiravam fluência. Mas logo voltava ao papel do marido com mesma competência. “Eu estava sentado naquele banquinho que fica embaixo do limoeiro vendo as pessoas. Estava acontecendo uma espécie de festa, que às vezes parecia quadrilha, às vezes aniversário de criança... mas com todos lá... Sorridentes; sem dúvida era uma festa. Aí, algo foi acontecendo lentamente... pouco a pouco fui percebendo que se tratava de um sonho. Isso já tinha acontecido outras vezes, mas não como hoje! Geralmente, quando sei que estou sonhando, não tenho domínio da situação, sou um espectador ao lado de uma espécie de alter ego. Desta vez eu estava dentro de mim, era eu, como estou agora na sua frente, com total domínio de meu corpo e mente...”; “Como se ele parece ter total domínio da cabeça ali”, se interrompeu a mulher mais uma vez. “... Lembra daquele filme maluco que vimos outro dia, Waking Life? Lembra da cena que onde um cara diz que quando estamos sonhando e não sabemos se é sonho ou realidade devemos procurar um interruptor e tentar acender e apagar as luzes? Ele diz que se for sonho não acontece nada, lembra? Então, é balela. Eu sabia que era sonho, tinha certeza, e resolvi fazer o teste. Apaguei as luzes do quintal e levei a maior vaia da festa inteira... todos me vaiaram! As luzes se apagaram quando inverti o interruptor, entendeu? ... Que bela experiência que eu propus, se não tivesse consciente jamais faria isso: comecei a avisar a todos que estávamos num sonho, por isso poderíamos fazer o que quiséssemos. Seu irmão foi o primeiro a olhar para mim como se eu fosse um débil mental...”. “Ele nunca gostou do Rodnei”, fez questão de dizer à minha esposa. “Alguns riam, outros nem ligavam e continuavam a dançar. Mas agora eu sabia que tinha controle total do que estava acontecendo. Era como se eu fosse o Neo em Matrix! Primeiro, fiz o som parar com a força do pensamento. Todos ficaram emparelhados a mais ou menos quatro metros de distância de mim. Aquela menininha, filha do seu primo, foi a única a dizer algo: ‘olhem, um sapo’. Vinha um sapo saltando no corredor que se formou entre mim e as outras pessoas. Então eu disse: ‘Quero saibam que estamos diante de uma grande experiência; talvez única. Todos nós estamos em um sonho e se tivermos lucidez disso, podemos fazer o que quisermos. Eu sei disso e vou provar’. Todos permaneciam estáticos e eu disse: ‘Sapo, voe’. O sapo foi por sobre a cabeça das pessoas, como só pode acontecer em sonhos. Era incrível! mas o mais incrível é que as pessoas não acreditavam que era um sonho, começaram, quase que em coro, a dizer ‘mágico, é um mágico, tem poderes’ e eu insistindo, em vão, a tentar convencê-los de que era algo fantástico por ser um sonho. Me sentia desnorteado; não sabia mais o que fazer para convencê-los... então, resolvi eu mesmo voar... sei lá, Cristo foi pastor andando sobre as águas, talvez comigo voando funcionasse... Voava meio se jeito, como se precisasse de equilíbrio para se voar. ‘Mágica, que baita mágico, é mágica’, era só o que se ouvia lá embaixo... não agüentei e fui tomado, vaidoso, tendo a ignorância de todos como aliada de uma fantasia macabra, anunciei: ‘Não sou mágico, sou o deus de vocês!’... Quando vi que eles começavam a acreditar, tive medo de estar comprando meu lugar no inferno pela blasfêmia e acordei”.

Há dois dias a mulher não tinha seu marido de volta para casa, não soube se voltou. Sabia dizer até aquele momento que ele foi para o escritório naquela manhã e pediu demissão sob a alegação de ser uma fraude entre tantas outras. Seu chefe, amigo de infância, não aceitou, mandou-o de volta para casa para descansar. Saiu sem dizer mais nada e sumiu.

Que bela experiência a deste homem; um privilegiado. Bom, vou agora pegar meu caiaque e visitar meu macaquinho da ilhota. Quem sabe não encontre por lá este homem que quer fazer de seu sonho a prova de que todos vivemos a sonhar.

31 de outubro de 2008

Duas e vinte e três

Fechei meus olhos por dez minutos, não mais que isso. No entanto, o meu relógio ainda marca as mesmas duas horas e vinte três minutos da última vez que o notei. Devo ter cochilado; não me entreguei a sono profundo. As imagens que produzia, neste intervalo de dez minutos, não mais que isso, enquanto adormeci, escaparam apenas um pouco do que costuma mandar meu juízo; não eram totalmente soltas e intermitentes quanto nos sonhos em que desmaio. É tudo tão recente que ainda posso me lembrar de todos os passos do que percorreu em minha cabeça, ora em campo consciente, ora inconsciente, durante este estreito espaço de tempo.

Começou após me acomodar na espreguiçadeira, num daqueles pensamentos mais probos; bucólico, nada exige ou interfere – posto tratar-se de um cochilo de tarde de domingo – na vida de mais ninguém. Pensava, sobre a espreguiçadeira, no caminho que faria para o banho de mar da manhã seguinte. Típico, quando estamos prestes a adormecer, esqueci das sacolas que teria que carregar até a praia, e projetei-me pela avenida principal até a quitanda; projetei-me acariciando uma a uma as maçãs da quitandeira até chegar à preferida. Da quitanda, segui à praia, me acomodei numa rocha isolada de todas as outras rochas que havia sobre a areia e, que não se sabe por quem, tinha sido colocada ali para me encontrar neste semi-sonho. Por ali, deixei meu rosto ser coberto pelo vento. Aos poucos, com o vento, e o sal e a areia, a me castigar, saltei ao inconsciente e, aos poucos e pela primeira vez, a imagem de meu próprio rosto foi se formando nítida em minha mente. Mais nítida ainda que a imagem oferecida pelo espelho aos olhos; já que os olhos, como sabemos, enxergam apenas o que querem. Transformam signos imperfeitos em sutis traços – os amaciando diariamente durante o escovar de dentes de cada dia em que acordamos mais velhos. O vento, úmido com seus cristais, foram moldando em meu rosto uma máscara, como que de gesso, mas de sutileza microscópica; invisível, sensível apenas aos micro-nervos, que, até então, nem se quer sabia que existiam, e que, além disso, de uma hora para outra resolveram submeter seus estímulos aos lobos occipitais de meu cérebro. Meus cílios superiores, longos, se unem com os inferiores, e permitem à modelagem de minhas pálpebras: longas, parecem não ter fim, ao término dos olhos caídos, seguem abaixo, na vertical, como canaletas talhadas pelo curso das lágrimas até a minha boca. Boca, queijo, nariz, pêlos, orelhas, a testa proeminente; e a imagem de meu próprio boneco de cera foi se formando.

Tudo isso durou por volta de dez minutos; engraçado o relógio teimar. Teimei em ler um rascunho de uma história que mal consegui inventar, e o relógio marcava duas e vinte dois; tomei um copo d’água, voltei ainda às duas e vinte e dois; chacoalhei a espreguiçadeira e me sobrepus a ela. Meu último ato, em nome da consciência, que costuma acusar o tempo que desperdiço a cochilar, serviria para reforçar à minha memória o horário em que me entreguei à preguiça a fim de desdenhar minha consciência quanto, posto novamente em pé, fosse subtrair o horário apontado pelo relógio ao que via quando me deitei: já eram duas e vinte e três. Agora, além de confuso, me falta o remorso pelo tempo desperdiçado a sonhar. Falta aquela sensação que, atrás de diminuir o prejuízo causado pelo ócio, faz com que eu produza dobrado – na eterna mentira que conto a mim mesmo: que a paz que preciso chega pelo tortuoso caminho do trabalho a exaustão. Mas hoje não. Sonhei sem sair do espaço e tempo. Vou desta vez para a cama, onde o tempo costuma passar mais rápido, sem trabalhar na fantástica história sobre o desaparecimento do homem invisível, torcendo para que me traga outro sonho, desta vez, sem canaletas de lágrimas.

27 de agosto de 2008

Dia seguinte

O cigarro parecia ocupar suas duas mãos. Arcado, sentado, na cadeira de madeira no centro da sala, chorava sobre seu retrato. Como espasmos, às vezes interrompia aos olhos a imagem, levava as mãos à cabeça e saltavam, ornamentais, contíguas, cinzas de cigarro e caspas até pousarem no paletó preto, calça preta, retrato preto, dentro da sala cinza. Precisava tornar à fotografia para lembrar porque chorava, e tornava a chorar.

Quantos anos haviam passado? Quão rápido e ao mesmo tempo trabalhoso chegar onde chegou? E, ao voltar para a casa fria, encontrou pela primeira vez aquele retrato, coberto pela poeira, sobre a escrivaninha da sala, num canto onde seus olhos – fieis às suas ambições – procuravam não passar. Sabia que estava, mas um estranho desejo, tão cativante quanto aterrorizante, insistia por alguém a observá-lo. Desejava, aos soluços, que sua temida e famosa bravura fossem descobertas por mais alguém. Não esperava por sua mãe, irmã ou mulher, mas por um vizinho ou colega; precisava de alguém sem paixão, sem traquejo com os sentimentos. Alguém que o observasse, a princípio, com certa compaixão – mesmo sem entender o que se despertava dentro dele–, mas que logo desse lugar a um julgamento frio, injusto, e, por fim, lançasse desprezo com os olhos e ironia com nos lábios e semblante. Sem palavras. Que desse as costas e partisse, deixando apenas o sono dos que adormecem chorando e o pesadelo do dia seguinte.

Por fim, aceita o dia seguinte como o chão da sala aceita suas cinzas, bitucas e corpo. Mas não dorme ainda, jaz, cadáver acordado, sentindo (...) sensação sem pessoa correspondente. Quando o desejo pelo inconsciente vence e é permitido dormir, dorme e acorda logo. Feliz, sob os primeiros raios do dia, volta a ser o que sempre quis e sai sem saber que nunca mais se lembrará de procurar, caído, no chão, sob a escrivaninha da sala cinza, fria e suja, seu retrato – tão feliz quanto distante.

14 de agosto de 2008

Caderno Azul


Das anotações de seu diário, ele, que há muito deixou de acompanhar o calendário, vive seus últimos longos dias. Eram páginas amarelas de um diário antigo. No tempo, o mais comum era morrer moço e, nos diários, os dias seguiam em anotações que, muitas vezes, não eram da mesma pessoa que os iniciava: a vida reciclava-se nas anedotas interropidas pelos pais mortos que os filhos continuavam. Não é o caso de Caderno Azul, que inaugurou seu caderno, assim como a sua pena, assim que foi apresentado ao alfabeto e carrega até hoje, sob seus olhos vivos, o diário de sua vida. Este livro, de relatos em páginas amarelas cobertas por capa verde, registrou seu último depoimento no dia 05 de agosto de 1927. Desde então, na época com cinqüenta e nove anos, seu proprietário passa as suas horas lendo as linhas e busca compreender as entrelinhas de tudo que viveu até aquele dia.

A história de Caderno Azul é daquelas lendárias. Lendárias, pode-se dizer, em povoados que nada têm de mais lendário a produzir do que seus poucos personagens. Afinal, Azul nasceu e vive há mais de um século num pequeno vale que pertence somente a deus e ao diabo. Onde os governos com seus soldados, policiais, delegados, capitães – como bedéis da desordem urbana – (...) juízes e ministros não chegaram e a ausência deles nunca foi notada. Enfim, a população habita um dos poucos lugares onde ainda reina a paz, a ordem – em desordem honesta – e o bom-senso. Em qualquer grande cidade, boas histórias – como a de Caderno Azul – se perdem no zum-zum-zum dos dias de trabalhar.

Caderno Azul é conhecido mesmo antes de nascer. Seu pai, forasteiro, chegou ao vilarejo de sabe-se-lá-onde com vinte e três anos e, mesmo com toda a desconfiança que o cercava, logo anunciou que chegará para ficar e procurava uma boa mulher para ser mãe de Caderno Azul. Uma única aspirante a mãe de Caderno Azul apareceu logo. Mulher de belo corpo que, à época, com quase trinta, fazia crer que as belas curvas de seu corpo estavam com os dias contados. Os anos contrariam a expectativa. Caderno Azul iniciava sua adolescência e sua mãe ainda inspirava suspiros, em sua maioria, velados.


Registrado em dia dezenove de outubro de mil oitocentos e oitenta. Azul tinha doze anos, sua mãe quarenta e um: “Mamãe e eu passeamos para trocar a saca de arroz por umas galinhas e leite. As ofertas não agradaram mamãe, mas o que deu o que falar foi um moço que parecia oferecer um cabrito ranhento em troca de algo sussurrado ao seu ouvido. Uma grande confusão se armou. Um amigo de meu pai, que passava por lá na hora, quase deu com a mão no rapaz. Já em casa, obedecendo minha mãe, fui para o banho. Quando saí, papai estava furioso e o amigo que antes queria bater no rapaz tentava convencer meu pai a ficar calmo. Por fim, conseguiu acalmá-lo. Fiz as minhas lições para a aula da professora Joana”.


Há oitenta anos que a vida de Caderno Azul é baseada em anotações de cinqüenta e nove anos vividos. Lê e relê, linha por linha, suas anotações. Às vezes pára, olha distante com a mesma expressão que oferecia às páginas do diário, e curva-se outra vez às suas anotações. Certa vez, o mensageiro, que girava a matraca e convidava quem estivesse ao alcance de seu som para ouvir as notícias do mundo, calculou que Azul lia a última página de caderno a cada quatro meses. Mas não havia precisão no cálculo. A leitura de Azul, embora regular, não trazia linearidade.

Nunca ninguém leu ou entendeu o que levou Azul ao estado letárgico em quê vive. A população entende este personagem apenas como um velho, coberto por farrapos, com a pele carcomida por sol e chuva e as pernas plantadas sob a terra até a metade das canelas. Consumido, pouco-a-pouco, pela memória, pelo tempo e pela terra. Quem lesse o diário saberia, nas anotações da juventude, de suas súplicas esquecidas por Maria, dos desafetos com João e dos pecados com Sebastiana. Em algumas páginas, como as que homenageavam a morte dos pais, encontrariam pequenos círculos amarelados e enrugados. Se Azul permitisse expectador às anotações, saberiam que desenhava bem: tinha o altar, no dia do casamento, e o pequeno caixão de seu filho, meses mais tarde.

No entanto, mesmo que lessem, não entenderiam Caderno Azul – seu pé de raiz, seu diário roto, seu silêncio – isolado, plantado há décadas na praça central da cidade. Não foram os golpes ou galanteios da vida que o transformaram em excêntrico personagem lítico, mas a observação contundente de que, mesmo em sociedade das mais justas, o homem segue empresa daninha. Neste pequeno vale, sem governo, onde a ordem pública – ao contrário de uma, que, em nome da liberdade, admite inúmeras injustiças; ou de outra, em determinado momento, em nome da justiça, apresentou a severa face castradora, devorando a liberdade – oferece o mais sensato dos convívios, Azul se cansou das mesquinharias seguidas que o convívio com as outras pessoas oferecia diariamente. Sem Casa Verde para apropriá-lo, plantou-se em praça pública para assistir, em seu diário, repetida vezes sua vida e tentar encontrar o que o torna humano.

11 de junho de 2008

A gérbera e o calendário

Quando estava prestes a completar seu quadragésimo aniversário – comemorado no primeiro dia do ano – foi à papelaria para comprar o calendário. Desde criança – quando comprar o calendário-de-mesa era um evento entre pai e filho –, escreve, sobre o ano gregoriano, seu ano de vida: este era seu calendário quarenta e um. Consultar seu arquivo de calendários é como consultar um sumário, inteligível, de sua vida. Sem legendas, os dias são marcados por círculos, quadrados, xises; sublinhados. Claro, muitos passam despercebidos às canetadas. Nos dias marcados, fica ao olhar a curiosidade de “o que aconteceu neste dezessete de maio que mereceu este xis vermelho”, ou “vinte e cinco de março, riscado de ponta a ponta”. Ninguém sabe o que um círculo significa; ou um xis, ou quadrado. Ninguém sabe nem mesmo se há significado ou padrão para cada um destes sinais.

Há quinze anos, a residência do calendário vigente deixou de ser sua casa. Com vinte e cinco foi aprovado em concurso público e a Câmara Municipal recebeu o jovem relações públicas com seu calendário 26 debaixo do braço. Viveriam ainda lá o vinte e sete, o vinte e oito, o vinte e nove, até o, recém inaugurado, quarenta e um. Seu trabalho empolgou por pouco tempo; logo era “recorte e cole”. É responsável pela organização das cerimônias oferecidas pelos vereadores da casa a representantes públicos de outras regiões. Há, também, não tão raras, as cerimônias aos próprios munícipes. Com raras exceções, precisa apenas seguir uma lista de tarefas já preparada – por ele mesmo, em seus primeiros anos como servidor. Basicamente, seu trabalho limita-se em alterar a data, nome do evento e dos integrantes da mesa principal e imprimir cópias para os funcionários menores colocarem a mão na massa. O fornecedor chamado para preparar o coquetel era sempre o mesmo; os funcionários que cuidavam da limpeza e copa eram sempre os mesmos; e os enfeites de flores para as mesas eram sempre os mesmos.

Mas, enquanto respirava a primeira página do calendário quarenta e um em um de seus de seus trinta e um dias, o trágico despertou sua vida. O floricultor, e florista, encarregado – desde sempre – pelo fornecimento de flores para os enfeites do salão e mesas, durante jornada no campo de cultivo, foi atacado por um enxame de abelhas. Não resistiu a investida, sucumbindo em colapso pulmonar. O choque pela morte do veterano fornecedor teve que dar lugar à urgência por um novo. O relógio se aproximava das sete da noite quando recebeu a notícia. O evento, marcado para as nove da manhã do dia seguinte, receberia seus convidados a partir das oito, ou oito e meia, não faria menção à morte do floricultor com minuto de silêncio, ou sem um único arranjo como espécie de homenagem: “Sem você nada será como antes”. Dá-se pouca atenção à morte de floricultores nas Câmaras Municipais. Assim, não havia saída, senão brotar alguém que arranjasse os enfeites.

Conseguiu, por indicação de um poeta conhecido, o telefone pessoal de uma florista de uma cidade vizinha. A doze horas da cerimônia, acertavam as questões logísticas da entrega, assim como as financeiras. Pontualmente, às cinco horas da manhã, o relações públicas, de jaqueta jeans, soprava – a esquentar – as palmas das mãos em frente ao salão da Câmara; quinze minutos depois, já inquieto, viu a Kombi da floricultura, de faróis acesos, embicar à entrada. Os funcionários responsáveis pela entrega traziam, além das flores, um recado da chefa: só teriam rosas-colombianas para metade das mesas, por isso as gérberas. O relações públicas quis morrer de azia. Nem tanto por ele – era simpático às gérberas –, mas pela esposa do presidente da Câmara que, na última solenidade, o elogiara pelo bom gosto com as rosas. Podia parecer desdém, após o elogio, a mudança. A nota fiscal também não veio com os funcionários; isso era compreensível: não deu tempo das flores passarem pelo escritório da floricultura, vieram direto do armazém. De certa forma, foi um gesto de confiança da proprietária.

* * *

A casa era levemente desarrumada – o que não impedia suas belas manhãs, que invadiam sala, quartos e cozinha através de vidraças emolduradas pela poeira; belas tardes, um pouco mais amarelas que as manhãs; e noites, de amarelo-velho, das lâmpadas incandescentes. Uma extensão de seu trabalho, com muitos vasos de flores e plantas e algumas encomendas em papéis amontoados sobre a mesa principal. Quando o telefone tocou, ela borrifava solução de inseticida diluído em água nas folhas verdes de suas camélias. O telefonema interrompeu. Fez as ligações que garantiriam a entrega do dia seguinte e deitou-se com o som de sua antiga vitrola a cobrir-lhe.

A loja onde vendia as flores nasceu de uma sociedade com um antigo amor. Com o passar do tempo, as flores eram cada vez mais pálidas, as plantas opacas e seu sócio ausente. Enquanto ele buscava flores belas de outros jardins, ela passou a dedicar-se a criar sozinha novas espécies. Os polens misturados não davam em nada e as flores que o sócio trazia duravam pouco. Em pouco, não fazia mais sentido à floricultura flores novas de outros jardins; tão pouco, as que jaziam antes mesmo de brotar entre os dois.

Sozinha, deixou de dividir os lucros e dívidas da casa e da loja. Sozinha, logo um pólen fecundou e gérberas com pequenas pintas pretas começaram a nascer. Nunca entendeu bem por que. Enquanto isso, levou muitos amantes à casa amarela. Com o tempo a floricultura impôs um ritmo de vida decente, com o qual, vendia flores em quantidade suficiente para viver com o conforto que precisava. Com o tempo, sentia cada vez menos as ausências de qualquer um que, de qualquer maneira, já tivesse marcado sua vida amarela.

As flores não lhe faziam companhia. Eram, na loja, seu objeto de penhora com a vida; e, em casa, fonte de cuidados que a faziam esquecer dos seus. Tinha uns poucos caprichos de comerciante: num deles, agradava trocar seu cultivo por trocados contados de pobres-diabos. Enxergava nas flores que eles levavam uma ansiedade singular – singular, como o dinheiro que lá deixavam. Quando anunciavam quanto dinheiro tinham para agradar alguém – quase sempre amores platônicos –, ela tratava de animá-los.Contava a história e o que cada flor do arranjo queria dizer como quem põe na boca do namorado as ternuras que devem ser ditas ao amor. Os pobres-diabos saiam, sem saber, com arranjos que valiam dez, quinze vezes mais do que pagavam.


* * *

O evento consumiu a manhã toda e transcorreu bem – sem o elogio da esposa do presidente da Câmara. O relações públicas esperou o almoço para colocar tudo em ordem: o pós-evento. Aproveitou o intervalo para resolver alguns assuntos no banco. Quando voltou, encontrou sobre a mesa um envelope com a nota fiscal e um bilhete, escrito à mão, sob um pequeno vazo de gérbera:

Querido, (...).

Desculpe a falta das rosas-colombianas. A urgência de sua encomenda impediu providência junto ao meu fornecedor. Enviei gérberas, como deve ter notado. Mas as trouxe com uma motivação especial: são de uma espécie que criei. Repare, suas pétalas amarelas têm pequenas pintas pretas. As pintas são tão pequenas que não costumam notar a diferença entre estas e as que encontramos por aí. Mas, agora que sabe, gostaria que entendesse como são especiais para mim.
Espero que seu evento tenha sido feliz.

Atenciosamente,
(...)

Não estava acostumado com este tratamento. “Querido”? Este era o recado mais pessoal que recebia em anos. No entanto, o modo íntimo com que a floricultora o tratou, deu espaço a uma sensação, de tão antiga, desconhecida por ele. Providenciou que o pagamento pelos arranjos fosse realizado, ajeitou o vaso sobre a sua mesa e deixou as pequenas-tímidas-pintas-pretas saltarem aos olhos.

Dias, semanas e meses, continuam a seguir. Sem, no entanto, que o relações públicas se esqueça – toda sexta-feira –, quando a flor se inclina, murcha, e devolve aos seus olhos os dias vazios do calendário, de circular a próxima segunda-feira – quando deve visitar a florista para comprar a gérbera da semana seguinte. Murchando entre as flores, o tempo da florista também escorre, enquanto acha graça do senhor calado que toda semana leva um vaso de suas gérberas pintadas e não nota mais o tempo passar.

2 de junho de 2008

Pequeno livro de uma história de amor

Meses

Não precisaram de anos. Alguns meses, e já não eram mais. Uniram as costas, passagens nas mãos, e voaram, cada um, cinco horas para onde a testa apontava. Em cinco horas, estavam a dez um do outro; em poucos meses, tornaram os mesmos de antes.

A vida tornou a castigar cada um – como estava acostumada a fazer antes de colocar um frente a frente com o outro – a sua maneira. Ele conseguiu emprego só quando gastou suas últimas moedas no ônibus que o carregou à entrevista. Ela, em suas noites, dividia com os olhos o teto do quarto e com os ouvidos os gemidos de sua amiga e namorado no quarto ao lado. Ele se esparramou nos bares; aumentou os copos, as atrizes, os cólos e as cicatrizes. E, sem saber bem porque, acordava no dia seguinte. Às vezes, ela pretendia calar o quarto vizinho com o barulho do seu, mas soava falso.

* * *

Morte

Que poder a morte possui para unir as pessoas! De cara, é causa mor do anseio por viver. Sobre sua perene sombra, há milhares de anos, corpos e almas atiram-se a favor de outros corpos e almas. Mas há também outras formas; como foi o caso deste casal: chegou a um amigo comum dos desquitados. Os dois partiram juntos para o mesmo destino; de volta. Ele se esforçava para não esquecer o amigo morto, ela também: a lembrança, um do outro, insistia em atraí-los.

Ela receava o reencontro. Tinha medo da frieza, de se ver diante de nova amante; de ter sido esquecida. Pelo contrário, ele queria vê-la. Deixava seu coração acelerado o abraço que seguramente viria ao se verem: com gosto de lágrima de velório e saudade. No entanto, nenhum sabia se o outro conseguiria ir: ela imaginava que pudesse estar sem dinheiro; ele, que o trabalho talvez a impedisse.

* * *

Missa

A igreja recebeu o casal em missa com o corpo presente. Evidentemente cansados, ambos entraram pela porta principal da igreja sem se encontrarem e se acomodaram de maneira com que ele poderia vê-la: ele à esquerda no fundo; ela na cadeira que mais se aproximava do centro da nave, no entanto, pertencente ao bloco de cadeiras à direita.

Ele, nitidamente o mais cansado, sucumbiu ao sono. Ela, como se lembrasse de um dia ter sido católica, seguiu firme cada palavra do padre e, dê joelhos e olhos fechados, rezou até a igreja esvaziar; ou acreditar que estava só. Ele dormia com a cabeça quase encostada nos joelhos; parecia rezar. Mas, ateu desde a faculdade, trazia pendurado aos ouvidos tímidos fios de fones-de-ouvidos. Quando ela o encontrou, estavam sós. Sentou-se ao seu lado, puxou um dos fones e colocou em seu ouvido – ele permanecia entregue ao sono.

* * *

Música

João disse: Vai minha tristeza... Pareceu ser para ela; ela obedeceu. Soltou o fone sobre o banco, beijou seu rosto e mão e partiu para o vôo da noite. Enquanto ela descia os degraus da igreja, ele dormia e balbuciava: Não quero mais esse negócio de você longe de mim.

Mas...

27 de maio de 2008

Por causa de umas tantas placas

Caminha, nesta estrada, o mundo todo igual: as placas foram 120; agora, 80; e o mundo, com 90, 110, 100, 105, foi extinto. Morosas réplicas, imperfeitas réplicas, seguem sem ultrapassar o destino uns dos outros. Por causa das placas, anseios (quase sempre) distintos igualaram-se e os distintos destinos não cruzam mais como antes. Como antes, apenas, porque, mesmo com as placas, ainda existem alguns que vêem em 80 muito – e seguem a respeitá-lo como limite máximo, não como padrão – e os que ignoram as placas e caminham além delas. Ambos são exceções; ambos são criticados quando ultrapassam ou são ultrapassados. O normal agora é distância igual do início ao fim da estrada.

Armando, como a maioria, segue a 80 e segue a cartilha – há muito tempo vigente. Casou-se e intercala os fins-de-semana entre a casa de seus pais e a casa de seus sogros: em cidades opostas, casas geminadas, jardins suspensos, pouco riso, tudo rijo. Recebe um pouco de inveja que logo oferecerá aos desconhecidos como ele. Há muitos anos, seu pai leu de um doutor e Armando, a vida toda, não fumou. A mulher de Armando, tanto leu que o cabelo cacheou, cresceu, alisou, escureceu, amarelou. Ela, ao contrário de Armando, recebe de volta a pouca dose de inveja que antes dedicou.

Armando só lê o que está escrito para que todos leiam. Consulta o obituário e, esta semana, sabe que o gerente será promovido à vaga deixada pelo diretor, o coordenador será gerente e que ele será coordenador: mesmo que, no fundo, saiba que seu auxiliar merecesse - mais que ele mesmo - sorte melhor que o burocrático trabalho que assumirá. Todos caminham a trajetória idêntica de seu antecessor e dão o mesmo sorriso às novidades – em escala – a partir da morte de um diretor. Contam, logo que um obituário novo traz a boa nova: o novo diretor, primeiro à amante, depois à esposa; o novo gerente fala alto no bar e grita – para vizinhança escutar – em casa; o, agora coordenador, Armando leva a esposa para jantar – e deixa para ela a graça de contar aos pais –; e o ex-auxiliar só tem a mãe que vá escutar.

Todos sentam em frente à televisão, confortam-se pela inesperada promoção e deixam o jornal trazer a glória das placas que punem quem anda a mais de 80. Então, boa noite.

15 de maio de 2008

Ao fechar a mala, ainda é tempo de não partir

Ao fechar a mala, ainda é tempo de não partir. Roupas dentro, livros intercalam; par de sapatos. Depois, correr os zíperes; palma das mãos, sobre a cama, entre as peças de roupas que decidiram ficar; olhos fecham e trazem o caminho a seguir. Medo de soltar a cama, onde vive acordado também. Cama preparada, como está costumava a aguardar seu único hóspede.

Há a saudade, em pré-visão, enquanto os olhos ainda silenciam. Ainda é tempo de ficar: roupas de volta ao armário, poetas à estante, vida ao juízo, corpo à cama; certo constrangimento. Tudo passa. Os olhos voltam a acender, as mãos e ombros às alças das bagagens e o alívio de já ter passado pelas despedidas.

O avião torna ao chão – os dias correm –, o vazio das primeiras semanas é preenchido e a saudade é gostosa recordação: pode agora mandar notícias ao passado.

23 de abril de 2008

São Francisco, Estados Unidos, 13 de janeiro de 2003

Esta é a sexta carta entre dois irmãos chineses: um (eu - Tài Tai Li) de São Francisco (EUA), outro (Lao Peng Li) que foi à China devido a morte do pai. Acompanhe as cartas anteriores: primeira, de Aiko Koan, avisando a morte do pai; segunda, de Lao Peng Li, assim que chegou na China; terceira, de Tài Tai; quarta e quinta, Lao Peng.


São Francisco, Estados Unidos, 13 de janeiro de 2003


Como os fatos que sucedem algumas de nossas iniciativas podem ser cruéis. Você, por exemplo, escreve – sem ao menos saber se voltaremos a nos ver – com a mesma petulância, e aplicando a mesma força, com a qual me educou e manteve sob seu domínio durante a vida. A diferença desta vez, irmão, é que você está longe. Não que a distância me tire o respeito por você; mas agora, que não o tenho por perto para proteger-me, não posso tê-lo para temer. Sua ida para a China me colocou de frente com a vida que eu sempre evitei encarar amparado em sua proteção. Espero não causar má impressão: é, para mim, a referência de segurança, equilibro e razão – mas quando está por perto! Dar ouvidos às suas implicâncias, seria como prostituta pagar aposentadoria a cafetão; se permite a analogia.

Voltando ao início da carta. Por descuido, muitas vezes começamos processos que desencadeiam em situações que até então pareciam improváveis. Meu irmão, entre os dias que sucederam – entre a penúltima e a última carta que me enviou – aconteceram mais coisas que o seu arrependimento pelas duras palavras que me dedicou. Como pode imaginar, o entusiasmo por receber uma carta sua e a decepção pelo conteúdo de suas palavras muito me se sensibilizaram. Como pôde questionar meus princípios, ou bagagem que carrego da minha cultura e de meus antepassados? Como ousa projetar sobre mim, as comemorações dos ritos da passagem de ano ocidental se – e sabe bem disso - pouco ligo para o calendário que eles adotam. E se a curiosidade persiste a tirar-lhe o sono e queira saber como comemorarei o a entrada do ano-chinês 4637, no início de fevereiro, cuido para acalmá-lo: respeitarei os quinze dias de nossa cultura; não comerei carne no primeiro; rezarei por nosso pai, mãe, irmão e todos nossos antepassados no segundo dia; ficarei em casa, enclausurado, no quinto; lamentarei a distância de você - meu único parente vivo - no oitavo dia; e acompanharei a procissão das crianças com as velas e lamparinas para iluminar o ano do carneiro que se inicia no décimo quinto dia. Mas como dizia, três dias foi tempo demais entre suas ofensas e os pedidos de desculpas. Embora estivesse entusiasmado pela postagem, só a abri após fechar a lojinha – precisava do silêncio para absorver melhor suas palavras; nisso, infelizmente, fui feliz. Não preciso dizer que o golpe foi duro demais. Anestesiado, saí pela rua em direção de casa... passei, como que flutuando, por sua entrada; fui dar-me no balcão da boate das putas. Não queria conversa, nem programa. Queria beber onde estivesse escuro o suficiente para me sentir invisível: mesmo sabendo – e atestando mais tarde – que não era. O movimento da clientela, que se amontoava conforme a noite corria, me empurrou para uma mesinha redonda no fundo da casa. Eu estava para ir embora quando Tung chegou. Ela se sentou sem ao menos pedir licença; talvez estivesse um pouco bêbada, talvez apenas exausta. Pediu ao garçom duas doses de vodca, disse que era “por conta da casa”. Ficamos em silêncio até as bebidas chegarem. Quando o garçom as trouxe, Tung – com o copo em mãos, em riste – fixou os olhos em mim como te visse, ou quisesse ver. Pode ser que eu tenha olhado para ela com este mesmo anseio, vê-lo. Assim, os anseios de ambos – eu e ela –, formaram um espelho de teu rosto na mesa daquele cabaré. Viramos nossos copos. Meu irmão, não pude controlar a tristeza; as lágrimas tomaram conta quando ela me perguntou por você. “Como ele está?”, só isso. Diante do frangalho que me tornei com a pergunta, me debulhando em lágrimas, aquela mulher foi a pessoa mais gentil e generosa de toda a minha vida. Com a cabeça entre seus seios chorei como nunca antes. Comecei por chorar de raiva – em homenagem a carta que você havia escrito –, depois aproveitei o colo para chorar nosso pai, nossa mãe e irmão, e, por fim, (não se percebi ou) passei a chorar por mim mesmo. Ela ofereceu sua cama para que eu dormisse, rejeitei; no entanto, permiti me acompanhar até nosso apartamento. Eu ainda enxugava os olhos com as mangas, quando chegamos ao prédio. Foi com um beijo, de mãe que se despede do filho, que nos despedimos selando nossos lábios. Senti aliviado quando entrei em casa. No entanto, fervi durante toda a madrugada dando outra conotação àquele beijo. Durante os sonhos daquela mesma noite, éramos homem e mulher, eu e Tung, apenas. Nos dias seguintes, quarta – dia 8 – e quinta, não nos vimos. Apareceu, coincidentemente, com o carteiro que trouxe sua segunda carta, sexta-feira. Num almoço rápido, onde mal tivemos tempo para conversar, decidimos que ela tiraria a noite de folga na boate e iríamos nos encontrar para conversar. Sua carta, por sua vez, dormiu lacrada de sexta para sábado na loja: pode ser por medo de você e suas arrogantes insinuações e insultos; pode ser por medo de despertar uma consciência que eu não queria ter no desfecho daquele meu dia. Conto, até aqui, com detalhes, meu irmão, para diminuir as margens à sua imaginação pessimista, daninha. O que descobrimos, eu e Tung, na noite de sexta, é que somos carentes, de maneiras de distintas, de compaixão; de maneiras distintas, por amarmos você. Descobrimos, ou desconfiamos, que este fim-de-semana, que acabamos passando juntos, foi pouco; deu vontade de descobrir mais. Pensando bem, acho que faz mais sentido dizer que a primeira (das duas últimas cartas) carta chegou cedo demais, não foi a segunda que chegou muito tarde.

Após questionar minha origem, meu comportamento, meu sangue, e o sobrenome que carrego, não é difícil entender que tenha deixado a sua carta seguinte esfriar um pouco sobre o criado-mudo do escritório na loja. Esbocei, inclusive, um sorriso ao passar os olhos nas primeiras linhas – em seu pedido de desculpas. Mas não são desculpas de arrependimento; são de ocasião. Haja vista, como continua “Reafirmo que, do que disse, muito é verdade. Acredito, porém, que nossa união nesse momento de conturbação é mais importante que as prateleiras da loja ou seu comportamento ocidental”. Caso eu aceite, sem antes questionar, seu pedido de desculpa, terei que aceitar que envergonho nossa família e antepassados. E isso, em minha opinião, os últimos acontecimentos tratam de contrariar. Lamento, após tantos anos, discordar de você: acho que neste período devemos deixar nossa relação em ordem, mas isso não se dá passando por cima de todas as diferenças que nos cercam. A única coisa de bom que resta de sua última mensagem é que ela carrega notícias suas; não começa e termina em críticas gratuitas.

Sei que será difícil digerir todas as informações que esta carta carrega. Espero que saiba que nada faço para te prejudicar. Sinto-me liberto e talvez ainda não tenha aprendido a agir com tamanha liberdade. Ao mesmo tempo, não sinto te trair ao me aproximar de Tung, ou realizar mudanças na administração da loja. A propósito, ainda não fechei o caixa deste mês, mas, ao que tudo indica, ela dobrará sua receita este mês.

Desejo, do fundo do coração, que encontre a paz necessária para realizar a nobre empreitada que o levou de volta à China.

Fico contente que após todos os anos de distância você e Aiko estejam se entendendo. Espero que o encontro tenha sido agradável. Caso a reencontre outra vez, estenda meus cumprimentos, assim como estenderei os seus a Tung.

Rezo para que esteja iluminado para responder esta mensagem; rezo por você.



Tài Tai Li.

13 de março de 2008

Copo de leite

Só se sabe que ele estava só. No aposento, corpo no carpete, na casa; não tinha marcas, expressão, vontade, conforto; não tinha vida. Os pés – grudados às pernas que sonhavam de bruços – apontavam cada um para um lado: pareciam ter dado início a uma fuga onde discordaram sobre o lado que deviam seguir; o tronco, pesado, contorcia o quadril e pressionava o ombro esquerdo: diferente das pernas, da cintura para cima, dormia de lado. Notava-se que não quis se deitar. O peso lançado à base do braço esquerdo, e, pela posição do poeta morto, não parecia possível, mas o braço direito, durante a queda, chegou antes ao chão e fez-se fulcro da alavanca entre o ombro e a mão esquerda, rija, suspensa no ar: a quinze centímetros, um copo, inteiro, deitado derramava leite entre o carpete e o assoalho.

Sua poesia foi lida e comentada. Autor conhecido, não foi brilhante – embora se encontre, não poucas, passagens inspiradas em sua obra –, esteve entre os cinco escritores de sua geração que sempre eram citados nas conversas vazias nas mesas de estudantes de Comunicação. A herança deixada pelo pai – professor de escola de pública que economizava cada centavo para o futuro dos filhos – e pelo seu avô materno, ofereceu uma vida tranqüila onde trabalhou apenas para desenvolvimento pessoal. Mesmo assim, não costumava manter suas ocupações por mais de um ano: tempo estimado para o trabalho deixar de ser fonte de amadurecimento pessoal e se tornar perda de tempo.

Teve algumas mulheres que, de certo, choram o corpo que esfria no carpete. Para cada uma delas escreveu poesias: umas delicadas, outras pornográficas, muitas trovas e até sermões; sempre respeitando métrica e rima. Alguns destes textos foram publicados, outros nunca; mas é certo que hoje estas senhoras, na juventude musas do poeta morto, fugirão dos maridos, se trancarão em seus banheiros, ligarão seus chuveiros deixando à água confundir-se com o som das folhas que entornarão, aos seus seios, sussurros do outro amor. É certo que as águas do chuveiro servirão para levar a nostalgia, traidora da razão, e ao saírem do banheiro e encontrarem seus companheiros, também velhinhos, lembrarão pela última vez do poeta, morto, e só, no apartamento: para sorrirem e desfrutarem da vaidosa felicidade por terem sido mais felizes.

O círculo de amigos e parentes, que envolvia seu corpo, se enganava silenciosamente olhando o poeta e pensando nas paixões que o fez viver. O homem foi poeta na tortura da morte de cada uma de suas paixões e só pôde viver homem quando as esquecia. Seu único irmão – que já foi mais novo, mais velho e tinha a mesma idade do poeta quando morreu –, aventureiro anônimo de versos, se conformou um pouco mais com o leite derramado: quem carrega o conforto de um copo de leite da cozinha para o quarto matou muito antes o poeta.

27 de fevereiro de 2008

Campeonato de cambalhotas

Entre os vira-latas que passeavam soltos pelo Jardins, pelas Oscar Freire, Lorena e Tietê, ladeirantes da Bela Cintra, Consolação e Haddock Lobo, causava estranheza seus colegas, cães, com presilhas, tosas, coleiras e perfumes que alcançavam de longe seus focinhos acostumados às sobras dos dias do caminhão do lixo passar. Estranhavam, mesmo, conforme os dois jovens sarnentos notaram, a felicidade dos outros: que havia o que havia de feliz naquela vida cheia de pompons perfumados.

Sentiam falta da atenção dos homens vez em quando, mas, geralmente, quando chamavam atenção deles, tinham que escapar das vassouras, paus e pedras. E, observá-los, trouxe aos amigos soltos indagações. Passaram a discutir nos fins de tarde, enquanto aguardavam os pães envelhecerem nas padarias, sobre a estranha satisfação que aqueles cachorros arrastavam, enquanto arranhavam os asfaltos, querendo ir à frente, à árvore, à urina de seu antecessor; enquanto, presos às coleiras, estão empunhados pelos severos patrões de óculos escuros que os impedem de ir à frente, quando o desejo é este, ou os arrastam sob a pressão da enforcadeira quando param.

– Conheci, enquanto aguardava as sobras desta mesma padaria aquela semana que esteve naquela casa de família, uma fêmea de pêlos longos. Seus pêlos, aliás, brilhavam e cheiravam mais que os da dona que entrou na padaria e amarrou-a no poste aqui em frente. Eu estava ali, esperava os sacos de comida, e aquela cadela parecia para mim, nem mesmo sei dizer por que, mais um obstáculo para matar minha fome. Ela percebeu meu incômodo e tratou de me confortar: “Com licença, noto que minha presença o incomoda, mas saiba que sou adestrada, não disputo sua comida, não posso comer na rua”. Uma cachorra educada a não comer na rua!

– Educada ou adestrada? – perguntou o colega.

– Ela disse adestrada...

– Como me contou, com detalhes, palavra por palavra que a donzela – com tom irônico à última palavra – empregou, bem pode ser as duas coisas: educada e adestrada. No entanto, são duas coisas distintas: uma, oferece bons modos que resultam em boas – com ironia, outra vez, nas palavras ‘bons’ e ‘boas’ – maneiras; a outra, acusa treinamento que bitola as patas e os focinhos a não obedecer às vontades até que elas, as vontades, morrem.

– Não é possível. – Retorquiu, e continuou: – Como as nossas patas e focinhos, se treinados, podem abafar as nossas vontades e instintos?

O cão ia continuar, mas distraiu-se com um casal de pulgas que caminhavam de sua orelha esquerda às costas, onde resolveram brincar. Primeiro tentou acertá-las com as patas traseiras: primeiro a direita, depois a esquerda; não conseguia alcançá-las. Lançou a cabeça para trás, contorcido, tentava com os dentes encerrar o balé das pulgas. O colega compreendia a angústia do amigo em silêncio e aproveitou para observar três pequenos pássaros que pousaram a dois metros deles.

– Não seria lindo se pudéssemos voar? – O amigo ainda aplicava os dentes nas costas e rosnou algo que indicava que prestava atenção. Prosseguiu: – Nunca pudemos voar, estamos, como nossos colegas de coleiras, presos ao chão com nossas asas atadas. O que estes pássaros pensam de nós? O mesmo que os peixes pensam deles quando os vêem sobrevoando sem poder voar sob as águas.

O amigo que retomava o fôlego interveio ofegante:

– Mas a comparação não vale. Nós, nascemos cachorros; estes três, pássaros; e os peixes, peixes.

– E saltou para espantar os pássaros que voaram. Voltou para o seu canto abanando o rabo, mais feliz um pouco. – O que me incomoda é ver irmãos cachorros, passeando sem liberdade, amarrados a um metro corda.

– Aos meus olhos, parecem felizes.

– E isso não te surpreende?!?

Ambos quiseram diminuir a diferença entre os colegas soltos e os colegas amarrados, mas perceberam as atas que os impediam de tornar a vida entre os cães mais igual. Por piedade, decidiram privar a liberdade que gozavam para se divertir e criaram uma brincadeira que mesmo os cachorros amarrados, que aguardavam seus donos nas portas dos botequins, poderiam se divertir: o Campeonato de Cambalhotas. Brincadeira que não exigia brinquedo e o raio da corda aceitava. O problema para os dois amigos soltos, e, por terem criado a brincadeira, juízes dos saltos, é que sempre alguém interrompia a brincadeira a dar-lhes pontapés para não impregnar suas pulgas, carrapatos e cheiros nos felizes cães adestrados.

14 de janeiro de 2008

Jardim de pedras

Quando a casa foi arrendada, embora o céu cinza, havia azaléias brancas e vermelhas que impediam a entrada de quem quer que fosse. O portão era baixo e convidativo aos que desejavam na casa entrar. Uma casinha de desenho: como um V, às avessas, o telhado cobria a parede inicial – de frente pra rua – azul clarinha, com os intervalos em seu concreto onde cabiam a porta e a janela. Borboletas, também azuis, chegavam até a varanda de entrada.

A casa estava conservada. Uma moça morou lá pouco mais de um ano. Parece que mentiu ser feliz e as borboletas azuis e as azaléias brancas e vermelhas acreditaram e tornou, à vista, a casa um belo cartão de modéstia invejável. Pareceu tudo superficial ao novo morador. Vasculhou sótão e caixa d’água, reparou nas rachaduras da parede da lavanderia e no ruídos dos degraus de madeira da escada que leva ao segundo andar. Procurou vestígios de cupins, corredores de formigas, fezes de ratos e asas de baratas. Por fim, sua exigência encontrou o desespero do proprietário e fecharam negócio por um preço baixo.

Não havia completado duas semanas como morador da casinha e o pó que as janelas cuspiam engasgaram nas traquéias das borboletas e contaminaram o pólen das azaléias. Tudo jazia sob o pó e o tilintar de uma máquina registradora. Após um mês, nem mesmo mariposas arriscavam-se nas paredes da casa; as flores e plantas do jardim refletiam a cor cinza do céu que cobria tudo o que havia para se ver.

A madeira da escada não ousa mais gemer os pisões do proprietário, as formigas não fazem caravanas nas imediações da casa, nem sinal de ratos, baratas e asas voaram pra longe – junto com as borboletas –, azaléias sem pernas curvaram-se podres e foram arrancadas. O portão, que em outro tempo e era pequeno e mal se notava sua existência pelas flores brancas e vermelhas que invadiam suas frestas, hoje parece grande e tem semblante sério. Grande o suficiente para fazer sombra a um jardim de pedras, cujo único trabalho ao seu dono contente é o de carpir os capins que teimam em nascer por lá após os dias de chuva.

9 de janeiro de 2008

São Francisco, Estados Unidos, 28 de dezembro de 2002

Querido, irmão.

Causa tristeza acompanhar, pelas linhas que escreveu, o que tem passado em seu regresso à China. No entanto - talvez pela idade com que o abandonei -, não paro de pensar que a morte de nosso pai é menor que a separação que tive dele quando viemos pra cá; e, ainda menor, do que me separar de você agora. Com a mesma tristeza, sinto não poder ajudá-lo. Sinto falta de seu apoio na loja e de sua companhia nas noites com a tv. Sobre nosso pai, pobre, sôfrego que viu morrer mulher e filho morrerem, além de ter visto nós dois desperdiçá-lo pela fantasia de vida melhor na América, não me surpreende que trouxesse seu semblante fúnebre marcado.

Vejo em sua volta, após tantos e tantos anos, um grande desafio. Enterrar nosso pai, seus ensinamentos sóbrios e equilibrados, ao mesmo tempo severo na juventude que tive dele, é uma tarefa que eu não saberia cumprir. Ao mesmo tempo, encontro-me só. Separado de você. Com a loja, sua parte administrativa, me sinto confortável; na verdade, sua viagem, despertou em mim um prazer pelos afazeres da loja que até então não tinha. Espero que não se aborreça: mudei algumas prateleiras de lugar para enxergar melhor quem quer nos roubar, reajustei alguns preços de acordo com o uso bairro e coloquei placas que anunciam promoções na vidraça. A loja ainda fatura como antes, mas espero ter novidades logo.

Mas, irmão, o que tenho pensado dói diferente. Ao morrer – enquanto a alma de nosso pai se funde ao espírito universal e vislumbra a plenitude de seus karmas – nos deixa somente memórias distorcidas de sua filosofia, a influência wu wei e o exemplo de espiritualidade de desenvolvimento espiritual que carregou durante sua vida. Hoje somos comerciantes, meu irmão! Quais ensinamentos ele nos deixou? Acredita que o seu exemplo e a sua preocupação com nossa formação espiritual foi em vão?

E que diferença há entre a morte de nosso pai – para mim – e a separação pela qual sou submetido enquanto você está na China. O consulado diz que não será fácil que consiga voltar. Vivo a esperança de seu retorno como passo a viver a esperança que a minha morte me leve à companhia de meu pai outra vez. A separação, assim como a morte que dá vida à alma e enterra a carne, liberta um enquanto escraviza o outro. Estou como escravo de saudade, de passaporte, de dinheiro; sinto falta de sua companhia dura, de caminhar sob a supervisão de seu entendimento e de agir sempre com o aval de seu olhar.

Tenho freqüentado mais vezes as putas, e mesmo elas, sem você, não têm sido a mesma coisa. Tung, ao me ver só nestas visitas, não se aproximou. Acredito que minha presença sem você a incomode e cause algum constrangimento ao aproximar-se dela algum cliente. Mesmo assim, garanto ser vago caso ela pergunte por você.

Mande lembranças a Aiko.

Aguardo notícias suas.

Carregado pela saudade,

Tài Tai Li